Publicado em Mededelingen van het Vereniging voor
Calvinistisch Wijsbegeertež Sept. 1953, p. 6-9.
INTRODUÇÃO
O tema mencionado no título
deste artigo não deve ser identificado com o outro acerca da Escritura e filosofia. Naturalmente, este último artigo se encontra aqui pressuposto,
todavia, nosso uso das Escrituras é algo totalmente diferente das Escrituras em
si. Pois as Escrituras são divinas, mas o uso que dela fazemos continua sendo
humano; ao passo que as Escrituras são santas, nosso uso permanece sempre
contaminado pelo pecado. Ora, o uso das Escrituras, portanto, se encontra no
nível da vida humana pecaminosa, envolvida com as Sagradas Escrituras.
Destarte, se tratamos acerca
do uso das Escrituras e a filosofia, logo tudo se resume a esta questão: “Como
devemos usar as Escrituras quando nos ocupamos com a filosofia?”
Tal questão, evidentemente, somente é
levantada num ambiente cristão – ora, num lugar onde não se leva Deus e Sua
Palavra em consideração, tal questão certamente não encontra espaço.
Entretanto, mesmo que essa
indagação ocorra apenas em círculos cristãos, não está plenamente claro se a
intenção com a qual é proposta justifica-se em todos os casos. É preciso
cautela com a palavra “uso” aqui, pois uma concepção equivocada pode – ainda
que não necessariamente – se configurar como a base desse conceito. Ora, este é
o caso quando alguém se afasta de si mesmo e indaga: “Como posso me ater às
Escrituras?”. Todavia, conforme dito anteriormente, tal concepção, que
evidentemente deve ser considerada um equívoco, não se configura como uma
necessidade, de modo que tal questão pode ser presentemente ignorada.
Mais importante do que isso é
que, em primeiro lugar, não nos ocupemos filosoficamente com as Escrituras: a
elas devemos nos dirigir primeiramente não como seres humanos filósofos, mas
sim como seres humanos sem títulos, sem pretensões.
As Sagradas Escrituras se
direcionam primariamente à vida prática. Ao ensino e admoestação, mas
simultaneamente ao conforto, a fim de que tenhamos esperança; a fim de que,
como cristãos, tenhamos uma visão voltada para cima; com o intuito de que há,
na vida, uma porta por meio da qual Deus Se comunica à raça humana – uma porta
através da qual, nós, mediante nossa resposta à Palavra Divina, somos capazes de
nos direcionar a Deus.
Em segundo lugar: essa Palavra
nos faz perceber a totalidade do mundo, tal como criada por Deus. Ora, ela nos
diz que o universo foi criado por Deus, de maneira que jamais devemos tomar
algo deste mundo como sendo divino. Também esse ensino se destina primeiramente
à prática: a proibição da idolatria tanto das coisas quanto de seres humanos!
Ademais, Deus sujeita o mundo à Sua lei: a obediência amorosa é aquilo que, em
primeiro lugar, nos é exigido.
Em tudo isso não há inicialmente
nenhuma indagação com respeito às ciências especializadas ou com a filosofia. A
prática é concorde com isto: há milhões de pessoas que reconhecem as Escrituras
como sendo a Palavra de Deus, as quais aprenderam a confiar em Deus na Sua
Palavra; e, mais de 95% dentre esses milhões de indivíduos não participam do
âmbito das ciências especializadas e da filosofia.
Todavia, as Escrituras
Sagradas têm algo a ver com a filosofia. Mas como, precisamente, se dá essa
relação?
O USO DAS ESCRITURAS E DA
FILOSOFIA VISTOS A PARTIR DA HISTÓRIA DO PENSAMENTO
A fim de respondermos a tal
questão, devemos, antes de tudo, analisar a história.
O
pensamento-síntese
O passado nos ensina que, nos
círculos cristãos, essa relação se estabeleceu na maior parte das vezes de
forma equivocada. Alguns partiram de uma concepção originariamente pagã e,
então, se voltaram para as Escrituras. O resultado foi uma combinação de conceitos
pagãos com temas bíblicos. Em outras palavras: uma síntese.
Agora, nos livros didáticos relevantes, o
costume é discutir bastante brevemente a história da filosofia de síntese. É
compreensível, pois aquele que não está interessado na relação entre as
Escrituras e a filosofia não considerará o pensamento de síntese e seus
resultados suficientemente interessantes. No entanto, esse ponto de vista não
pode estar correto, já que a síntese coloca vários temas novos na agenda. A
despeito disso, a síntese dominou o pensamento da Europa ocidental e meridional
por cerca de quinze séculos. São, portanto, dois motivos que nos impedem de
conceber tal questão de forma leviana.
Analisada mais detidamente,
essa era aparentemente cobre três períodos. O primeiro deles é aquele do
pensamento do cristianismo primitivo; o segundo, o pensamento da Idade Média; e
finalmente o pensamento pré-Reforma e o humanismo “cristão”.
A primeira síntese foi a mais
original: a Idade Média retrabalhou seus resultados na Escolástica, de modo
bastante acadêmico, ao passo que o terceiro período tentou – contrapondo-se à
Escolástica e contornando a Idade Média – reviver o pensamento do cristianismo
primitivo, decepcionando-se, todavia, ao falhar nesse propósito.
Contudo, podemos não nos julgar
por satisfeitos com essa distinção de períodos somente, pois já no primeiro
período tornou-se manifesto que a síntese ocorrera de diversas maneiras. É
possível, pois, distinguir nesse ponto principalmente três tipos de relações.
O mais antigo deles é o método
do embutimento e exegese. Os adeptos desse método buscavam, nas Sagradas
Escrituras, algum elemento filosófico, e encontravam nelas, como acreditavam,
uma ideia que algum filósofo já tivera antes. Isso acontecia involuntariamente
– não devemos pensar que os cristãos primitivos se colocavam esta questão:
“Como faço para combinar meu sistema com as Sagradas Escrituras?”. Para isso,
contribui ainda o fato de que o Antigo Testamento era lido na sua tradução para
o grego [A Septuaginta] e que o Novo Testamento fora escrito também nessa
língua. Um único exemplo deve ser suficiente. Alguns já se tornaram adeptos de
uma filosofia na qual o termo “Logos” ocupa um lugar de destaque. Quando eles
começaram a ler João 1, encontraram o termo “Logos”, mas num sentido totalmente
diferente. Todavia, isso não foi percebido, de modo que facilmente se
transferiu tal conceito – que trouxeram de sua educação e estudo – para as
Escrituras. Evidentemente isso não é exegese, mas um “embutimento”: isto é, a
transferência de um conceito para dentro das Escrituras sem que se perceba
isso. E desse modo se declara que o escritor defendia essa ideia filosófica
prévia, que passa, então, a ser fortalecida, visto que não se baseia na
autoridade humana, mas na autoridade da Palavra de Deus.
Esse método evidentemente
terminou num cul-de-sac [beco sem saída], pois automaticamente não se conteve
com apenas uma única concepção que se pensava ser confirmada pela Escritura: na
verdade, o número de filosofias “cristãs” que se originaram dessa forma logo se
tornou tão vasto quanto o número de concepções pagãs que existiam
anteriormente. Dentre elas houve algumas rejeitadas pela igreja, e outras que
não foram condenadas por ela.
Nesse ínterim, alguns cristãos
perceberam que aquilo que traziam consigo [pela educação e formação] era algo
inteiramente diferente daquilo que as Sagradas Escrituras apresentavam.
Portanto, tais indivíduos passaram a demonstrar aversão pelo método exegético
de “embutimento”. Todavia, mesmo eles afirmavam: há somente uma única
filosofia, a greco-helenística, e nisso insistiram. Não obstante, buscava-se
também crer naquilo que as Escrituras apresentavam, e assim se percebeu que
existiam alguns conflitos em certos pontos. Consequentemente, julgou-se que a
verdade das Escrituras e da filosofia se encontravam num relacionamento
paradoxal. Esse era o ponto de vista de um pensador como Tertuliano.
Havia também uma terceira
concepção: a natureza e graça. É deveras antiga, pois já a encontramos expressa
no sínodo de Orange (529 d.C.). Ora, de acordo com essa concepção, é preciso
distinguir entre “natural” e “sobrenatural”; Adão, em seu estado de retidão,
recebeu o sobrenatural, que lhe foi retirado através de sua queda no pecado;
mediante a graça, o sobrenatural é recuperado no cristão. Nesse sentido, a
filosofia que se tomara dos pensadores pagãos pertencia ao domínio do natural.
Mas tal filosofia também refletiu acerca de Deus, possuindo, portanto, sua
própria representação da Divindade, que destoava da representação da igreja, a
qual estava parcialmente ligada às Sagradas Escrituras e parcialmente ao método
exegético de embutimento. Mediante isso, deparou-se com uma dualidade também
neste ponto, assim como na relação paradoxal. Ainda assim, não havia um total
acordo com esta relação: o relacionamento mútuo entre a visão pagã e a visão da
igreja não se configurava como paradoxal – antes, chamavam tais visões de
“preliminar” e “cumprimento”, respectivamente.
A filosofia de síntese
apresenta, pois, esses três modos de associação. Todos eles permaneceram como
tais mesmo posteriormente; é possível reconhecê-los no conflito tri-modal
durante a Idade Média, o qual efervesceu, de uma maneira escolástica, entre
pensadores como William de Champeaux, Pedro Damião e Lanfranco de Cantuária. O
recrutamento do poder desses três modos alterou gradualmente o curso da
história, pois por meio disto o tema natureza-graça, que já tinha
relativamente alguns adeptos durante a era dos Pais da Igreja, assumiu a
proeminência quando do florescimento do Escolasticismo. Todavia, os dois outros
temas permanecerão vivos ainda. E ainda hoje os humanistas bíblicos seguem o
método exegético do embutimento; os seguidores de Kierkegaard vivem do
paradoxo, e não apenas os pensadores católico-romanos mas também os
protestantes seguem o tema da natureza e graça.
Aquele que percebe isso
compreende quão extenuante será nosso esforço a fim de alcançarmos uma
filosofia escriturística livre de todas as sínteses.
Filosofia
escriturística
Mas o que queremos dizer com o
termo filosofia escriturística?
Em primeiro lugar, queremos
dizer que não vamos às Escrituras com nossas próprias concepções a fim de que
estas sejam sancionadas por aquela, mas sim permitir que as Escrituras tenham a
palavra em nossas vidas, desde a tenra idade.
Ora, ninguém nasce filósofo.
Todos vêm ao mundo como crianças, todos iniciam sua vida de conhecimento com o
conhecimento não-científico da experiência diária. O infante aprende algo de
sua mãe, ele é um pequeno ser humano. O adulto não pode exigir muito da alma da
criança. Entretanto, por outro lado, deve-se rejeitar a representação das
crianças como sendo efetivamente pequenos animais que nada podem fazer a não
ser perceber com seus sentidos e notar o calor e alimento provenientes de sua
mãe. Ora, no pequenino – justamente por ser um ser humano – há também amor e
confiança. Esse é o modo pelo qual as Sagradas Escrituras veem o pequeno ser
humano. Davi sabia disso – pois ele confiava em Deus enquanto ainda era um
infante (Sl 22:10). Evidentemente não se trata de uma fé que possa ser expressa
em palavras, mas há uma dedicação a Deus por meio da confiança da fé dos pais;
há por vezes uma ligação direta na confiança em Deus, um fortalecimento em Seu
amor.
E então crescemos e passamos a conhecer nossos
pais, nossos irmãos e irmãs, nosso ambiente: primeiramente o berço, em seguida,
o quarto, logo, o jardim, a rua, os amigos, a escola.
Tudo isso se configura como
conhecimento não-científico. Eis, portanto, a beleza disto: esse conhecimento
não é uma fase passageira. Muito de nossa infância passa, todavia, o
conhecimento não-científico permanece: conhecemos um ao outro como homem e
mulher com o conhecimento não-científico; realizamos a maior parte de nossos
afazeres com esse mesmo conhecimento.
Gradualmente uma visão se
desenvolve, uma unidade da contemplação, que não é, de modo algum, uma ciência
nem, portanto, uma filosofia, mas sim uma biocosmovisão: a qual as pessoas
chamam ora de “humanismo”, ora “catolicismo”, “luteranismo” e “calvinismo”.
Autor: Dirk H.Th Vollenhoven
Tradução:
Fabrício Tavares
Divulgação:
Reformados 21