Adoração
vã
Então
chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo: Por que
transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos
quando comem pão. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós,
também, o mandamento de Deus pela vossa tradição? (Mt
15.1-3).
Os fariseus eram líderes
religiosos respeitados do povo judeu. Eles criam ter a liberdade de fazer
adições aos mandamentos divinos. A lei de Deus continha diversas lavagens
cerimoniais para representar a purificação dos impuros. Os fariseus adicionaram
outras lavagens para destacar e “aperfeiçoar” a lei de Moisés. Não existe
mandamento expresso proibindo essas adições cerimoniais, exceto o Princípio
Regulador (Dt 4.2; 12.31). Elas não tinham fundamentação na Palavra de
Deus.
Jesus Cristo é o principal defensor do Princípio Regulador. Ele repreendeu fortemente os escribas e fariseus por fazerem adições à lei divina. O que acontece quando homens pecadores acrescentam regras e regulamentos à lei de Deus? Com o passar do tempo, a tradição humana substitui e pretere a lei divina: E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. (Mt 15.6).
A igreja cristã antiga acrescentou regras e cerimônias próprias ao culto a Deus e degenerou na Igreja Católica Romana pagã e idólatra. Se não mantivermos a linha divisória onde Deus a traçou, então, prova a história, a igreja degenerará posteriormente em algo um pouco mais bizarro que uma seita pagã. A repreensão de Cristo referente aos escribas e fariseus aplica-se hoje a quase todos (os chamados) ramos da igreja cristã: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens (Mt 15.8-9).
Outros
exemplos
O conceito de que apenas o que
Deus ordena em sua Palavra é permitido no culto encontra-se na Bíblia toda. O
rei Saul ofereceu um sacrifício ao Senhor sem autorização divina. Deus ordenou
aos sacerdotes, e não aos reis, o oferecimento de holocaustos. O reinado foi
retirado de Saul e de sua família para sempre (1Sm 13.8-14). Considere o rei
Jeroboão que estabeleceu um dia próprio de festa, bem como lugares sagrados e
ofertas no “mês que ele tinha imaginado no seu coração” (1Rs 12.32,33). O rei
Jeroboão era pragmático. Ele não percebia a necessidade de seguir as ordens
expressas do culto a Deus. O livro de Reis apresenta seu culto autônomo e não
autorizado — além da idolatria associada a ele —, como o paradigma do falso culto.
Se o rei Jeroboão foi considerado ímpio por estabelecer seu dia de festa (dia
santo), certamente a mesma designação é aplicável aos papas, bispos e ao povo
que estabeleceram o natal, a sexta-feira santa etc.
Paulo, na epístola aos
Colossenses, concorda com o ensino do Antigo Testamento referente ao culto. Ele
condena quem impõe leis dietéticas judaicas e dias santos à igreja (Cl 2.16).
Pelo fato de as leis cerimônias terem sido “sombras” que apontavam para o
“corpo” — Jesus Cristo —, elas foram abolidas; e dada a falta de autorização
para elas, tornaram-se proibidas. A advertência paulina a respeito da filosofia
humana é o pano de fundo da condenação do falso culto e das leis humanas
(legalismo):
Tende
cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs
sutilezas,segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não
segundo Cristo (Cl 2.8).
Paulo condena as doutrinas e
os mandamentos humanos: Se, pois, estais
mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de
ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não toques, não proves, não
manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e
doutrinas dos homens; As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria,
em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de
valor algum senão para a satisfação da carne (Cl 2.20-23).
Ele afirma que a adição à
Palavra de Deus é apenas uma exibição de “devoção voluntária [e] humildade”.
Trata-se de devoção “voluntária” em lugar do culto segundo a vontade de Deus.
As leis estabelecidas pelos homens suprimem a liberdade que temos em. A lei
moral de Deus é perfeita; adições são desnecessárias. Regras e regulamentos
humanos não “concedem honra” ao crente.
Deus concedeu à sua igreja um
livro de salmos e um dia santo (o dia do Senhor). Pode o homem aperfeiçoar o
culto instituído por Deus? Claro que não. É o ápice da arrogância e estupidez
imaginar que homens pecaminosos possam melhorar as ordenanças de Deus: Isso é
provocar a Deus, porque reflete sobre sua honra, como se ele não fosse sábio o
suficiente para designar a forma do próprio culto. Ele odeia todo fogo estranho
oferecido em seu templo (Lv 10.11). Uma simples cerimônia pode, com o passar do
tempo, conduzir ao crucifixo. Quem contende pela cruz no batismo, não pode
obter também o óleo, o sal e o unguento?12
A
necessidade do Princípio Regulador
A história da igreja tem
demonstrado que o povo pactual de Deus tem sido desviado, não raro, da
simplicidade do puro culto evangélico para todos os tipos de inovações humanas.
Dada a natureza humana decaída e sua inclinação ao pecado, era inevitável que a
autonomia humana relativa ao culto pervertesse e suplantasse o culto
verdadeiro: E as franjas vos serão para
que, vendo-as, vos lembreis de todos os mandamentos do Senhor, e os cumprais; e
não seguireis o vosso coração, nem após os vossos olhos, pelos quais andais vos
prostituindo. Para que vos lembreis de todos os meus mandamentos, e os
cumprais, e santos sejais a vosso Deus (Nm 15.39,40).
Muitas pessoas afirmam que o
Princípio Regulador divino é bastante restritivo. Declaram que ele confina o
espírito humano e reprime a criatividade humana. Dizem tratar-se de uma reação
exagerada aos abusos cometidos pelo catolicismo romano. Todavia, examinemos as
implicações lógicas da permissão de qualquer coisa não proibida pela Palavra de
Deus no culto divino.
A primeira consequência é a
substituição da simplicidade e da natureza transcultural do culto puramente
evangélico por uma variedade quase infinita de inovações humanas. Pelo fato de
Deus não estabelecer mais a linha divisória entre o conteúdo do culto e suas
cerimônias, o homem poderia traçar e retraçar essa divisão como lhe agradasse.
A igreja desobediente ao Princípio Regulador divino considera impossível
impedir o fluxo de novos conceitos e inovações no culto. As denominações
presbiterianas e reformadas que abandonaram o Princípio Regulador no final do
século XIX e início do século XX provam a veracidade deste ponto. O padrão da
perversão segue mais ou menos dessa forma: Inicialmente, hinos concebidos por
seres humanos (não ordenados) são cantados em conjunto com os salmos inspirados
por Deus (ordenados); a seguir, em uma geração ou duas, os salmos são
completamente substituídos por hinos ou por salmos parafraseados ao extremo.
Os hinos antigos, após certo
tempo, são substituídos por composições avivalistas “carismáticas”. No início,
as igrejas reformadas cantavam os salmos sem acompanhamento musical, pois os
instrumentos foram usados apenas no período do templo e, portanto, deixaram de
ser usados como um aspecto da lei cerimonial. Muitas igrejas reformadas
abandonaram o cântico de salmos a capella e passaram a usar órgãos. Então,
dentro de uma geração ou duas as igrejas começaram a usar outros instrumentos,
orquestras e até mesmo grupos de rock. Essas inovações descritas são apenas a
ponta do iceberg. Pode-se encontrar também nas igrejas chamadas presbiterianas
e reformadas: celebração de dias santos (Natal, Páscoa etc.), corais, liturgias
complexas, dança litúrgica, grupos de rock, peças de teatro, vídeos de rock,
calendário litúrgico, figuras de Cristo, cruzes etc.
Caso se dê ao homem pecador
autonomia para escolher como cultuar, o padrão histórico é claro. O ser humano preferirá
o culto centrado no homem. O homem pecador é sempre atraído pelo entretenimento
(daí a popularidade das “palmas”, e o “pisar forte” do estilo de culto
“carismático”, grupos de rock, peças de teatro, corais, solos musicais, e
cantores populares e sertanejos13 etc.) e pelo ritual e pompa
(catedrais, incensos, velas, sinos, dias santos, vestimentas papistas,
liturgias etc.). Quando as inovações humanas terão fim? Elas não cessarão até
que a igreja obedeça ao Princípio Regulador do Culto. Deus ordenou um
mandamento que o homem não pode ignorar: “[O] modo aceitável de adorar o
verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria
vontade revelada, que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e
invenções dos homens [...] nem sob qualquer representação visível, ou de
qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras”.14 O falso
culto tem origem na mente humana, de acordo com sua imaginação. O culto
verdadeiro origina-se na mente de Deus e é revelado na Bíblia:
Mas
isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e
vós sereis o meu povo; e andai em todo o caminho que eu vos mandar, para que
vos vá bem. Mas não ouviram, nem inclinaram os seus ouvidos, mas andaram nos
seus próprios conselhos, no propósito do seu coração malvado; e andaram para
trás, e não para diante (Jr 7.23,24).
Calvino, no comentário sobre
Jeremias, usou este versículo para condenar todas as inovações perversas do
culto papal:
Além do mais, caso se
considere a origem de todo o culto papal, perceber-se-á que os primeiros a
conceber superstições tão estranhas, foram impelidos apenas por sua audácia e
presunção, a fim de poder calcar sob os pés a Palavra de Deus. Portanto, todas
as coisas foram corrompidas; porque eles colocaram em operação todas as
invenções de seu cérebro. Vemos que os papistas são tão apegados a seus erros
até o dia de hoje que preferem a si mesmos e às suas quinquilharias que a Deus.
E o mesmo acontece com todos os hereges. O que se pode fazer? Como disse, a obediência
deve ser mantida como base da verdadeira religião. Caso desejemos render o
culto aprovado por Deus, aprendamos a lançar fora
tudo o que é nosso, para que a autoridade divina prevaleça sobre todas as
nossas razões.15
O VERDADEIRO CULTO
Apenas
o que Deus ordena em sua Palavra é permitido;
Culto
centrado em Deus;
O
conteúdo do culto é a Palavra de Deus objetiva;
O
culto permanece puro, simples e sem adulteração;
O
culto baseado na Palavra de Deus possui parâmetros limitados;
Completamente
bíblico;
O
culto evangélico puro é transcultural. Desconsiderando-se as barreiras
linguísticas, membros de igrejas fiéis ao Princípio Regulador podem visitar
igrejas da mesma mentalidade em qualquer lugar do mundo e, imediatamente,
sentir-se bem e em casa. No século XVII, puritanos ingleses ou americanos,
presbiterianos escoceses ou irlandeses e holandeses reformados cultuavam a Deus
de modo muito similar. Isso não resultou de algum ato de conformidade, mas
porque criam no Princípio Regulador e obedeciam a ele. No futuro, quando a
doutrina e o culto puros forem revividos, e nações inteiras forem convertidas e
entrarem na aliança estabelecida por Deus, a natureza transcultural do puro
culto evangélico será muito útil e importante para turistas e homens de negócio;
Historicamente,
o culto das igrejas reformadas e presbiterianas era puro, até ser abandonado ou
redefinido a ponto de se tornar insignificante;
O
culto bíblico é centrado em Deus e em sua Palavra;
Os
homens têm liberdade sob a Palavra de Deus;
O
puro culto evangélico incentiva o ecumenismo bíblico e a comunidade.
O FALSO CULTO
Tudo o que não é expressamente
condenado pela Bíblia é permitido;
Conduz ao culto centrado no
homem;
O culto se torna cada vez mais
subjetivo ou místico;
O culto é alterado, evolui e é
adulterado por tradições humanas;
As formas e o conteúdo do
culto público são teoricamente infinitos;
Basicamente pragmático: o que
aparentemente funciona e agrada às pessoas será usado;
O falso culto alimenta a
autonomia humana pecaminosa. Portanto, ele é uma mistura de paganismo e
cristianismo. Pelo fato de possuir teoricamente opções infinitas, as pessoas
têm de adaptar, aprender e ajustar o falso culto a cada circunstância cultural
e denominacional. Os anglicanos altamente litúrgicos provavelmente se sentem
desconfortáveis com os cultos sem programação prévia das comunidades
evangélicas de negros. Existem milhares de hinários e de liturgias diferentes.
Há grupos de rock e de teatro, orquestras, declamação de poesia, vídeos,
apresentações de palhaços, comediantes, humoristas, talkshows, danças
litúrgicas, recitais de órgão, dias santos diversos e calendários litúrgicos
diferentes etc.
O falso culto fragmenta a igreja;
O falso culto fragmenta a igreja;
Historicamente, isso tem
levado a igreja ao declínio, à heresia e idolatria. A igreja apostólica
degenerou posteriormente no papismo;
O culto centrado no homem tem
por norte o ser humano e seus sentidos. Daí sua degeneração no entretenimento
ou nas cerimônias e nos rituais pomposos;
Os homens perdem a liberdade
sob seu padrão mutável e arbitrário;
O falso culto divide a igreja
em milhares de facções. Pelo fato de o conteúdo e estilo do culto “evoluírem” e
se modificarem, os membros mais velhos das igrejas são separados dos mais novos.
A palavra liturgia procede do vocábulo grego “leiturgia”, e significa “o
trabalho ou serviço pessoal”. Portanto, em certo sentido, todo o culto cristão
é litúrgico. Ao mencionar a liturgia em sentido negativo, faço referência à
liturgia usada, por exemplo, pelos católicos romanos, episcopais/anglicanos,
luteranos e ortodoxos russos (dentre outros).
Em sentido negativo, faço
referência à liturgia baseada nas tradições eclesiásticas e humanas, por
exemplo: o uso obrigatório de livros de oração, do calendário litúrgico, de
vestimentas sacerdotais especiais, velas, incensos, dias santos, ajoelhar para
receber a comunhão, catedrais, figuras de Cristo e dos santos, música para a
igreja, corais etc. The Book of Common Order [O livro de ordem comum] designado
pelos historiadores como a liturgia de Knox, foi usado pelos escoceses até
1645. Ele tomava por base a ordem do culto das igrejas reformadas de
Estrasburgo, Frankfurt e Genebra. A atitude de John Knox e dos primeiros
presbiterianos para com as “orações comuns” da Order [Ordem] era limitar seu
uso ao treinamento dos ignorantes na arte da oração extemporânea:
O uso contínuo e imperioso da
liturgia desarmoniza com o espírito dos reformadores, que confiavam na
inspiração do Espírito Santo na oração.16 Os substitutos sem
formação dos ministros — que requeriam essas muletas mentais, como o Book of
Discipline [Livro de disciplina] — admitiam: “até atingir maior perfeição...”.
Em termos similares, o bem instruído historiador Calderwood declara: “Ninguém está
preso às orações desse livro; elas foram estabelecidas apenas como exemplos…
Colocadas como modelos”.17
NOTAS:
12. Thomas Watson, A Body of Divinity (London:
Passmore & Alabaster, [1692]1881), p. 267.
13 No original a referência é
ao estilo “country” de música, o equivalente em popularidade ao estilo
sertanejo nacional. [N. do T.]
14. Confissão de fé de
Westminster, XXI.I.
15. Calvin’s Commentary, sobre Jr 9.21-24 (Grand
Rapids: Baker, 1989), vol. 9, p. 398 (ênfase adicionada).
16. A expressão “inspiração do
Espírito Santo” não significa que os primeiros presbiterianos criam que suas
orações eram “sopradas por Deus” e inerrantes como as Escrituras. Ela significa
apenas “com o auxílio ou ajuda do Espírito Santo”.
17. J. King Hewison, The Covenanters (Glasgow: 1908),
vol. 1, p. 41-4.
Autor: Brian Schwertley
Tradução: Rogério Portella