A busca cada vez mais ávida
por experiências extáticas, transes, teofanias, arcanos e mistérios tornou-se
efetivamente a chave hermenêutica para se compreender a caoticidade de alguns
segmentos carismáticos – e, de fato, seríamos intelectualmente desonestos caso
não afirmássemos que não poucas linhas dentro do pentecostalismo têm realizado
um importante trabalho evangelístico, acompanhado de uma capacitação
ministerial mais profunda e de uma liturgia mais ordenada. Todavia, o que ainda
infelizmente impera é a exacerbação mística, a catarse emocional e a tentativa
de ressignificar a “liberdade do Espírito” (Gl 5:1), transformando-a em
desordem carnal. Conforme já disse John McArthur, em seu livro Caos
carismático, é possível, por vezes, atribuir a certos grupos pentecostais a
alcunha de “neo-montanistas” – gnósticos que dualizam os cristãos em duas
categorias, espirituais (pneumáticos) e carnais (sárquicos), conforme era
costume entre os coríntios, e que reivindicam uma suposta superioridade
espiritual mediante um conhecimento (gnosis) exclusivo (na maioria das vezes o
domínio da “língua dos anjos”).
No entanto, a gnose não é
simplesmente uma heresia deslocada, facilmente erradicável e diagnosticável.
Pelo contrário, já nos dizia Charles Hodge que a história da igreja é a
constante luta entre a gnose e o que podemos chamar anacronicamente de
“calvinismo”, ou dito de outro modo, o eterno embate entre a autonomia e
autosoteria humana e heteronomia e heterosoteria provenientes de Deus. Desse
modo, a gnose sempre ressurgiu ao longo da igreja, sempre reerguendo-se após
ter sido mortalmente ferida; basta, pois, contemplar panoramicamente a história
para se deparar com os já citados montanistas, os cátaros ou albigenses, a
Cabala no século XII em Provença, e, mais hodiernamente, as modernas
ideologias, especialmente o marxismo. Ora, a afirmação de que modernas
ideologias e cosmovisões seculares que deliberadamente buscaram esvair os
princípios religiosos são, na verdade, movimentos gnósticos chocam, num
primeiro momento, a sensibilidade e a racionalidade do homem atual. Entretanto,
como já vários cientistas políticos analisaram, as ideologias, em especial os
movimentos revolucionários, nada mais são do que heresias gnósticas com um
fundo religioso mascarado.
Eric Voegelin dedicou grande
parte de sua obra à análise dos elementos ordenadores da História e da
sociedade, chegando, por fim, à conclusão de que a “ordem da história (nome
inclusive de sua magnífica pentalogia) é a história da ordem”, isto é, a
tentativa do homem de alcançar a harmonia entre quatro princípios: Deus,
cosmos, homem e civilização. Nesse sentido, Voegelin afirma que a escatologia
proposta pelos movimentos revolucionários nada mais é do que uma “imanentização
do eschaton”, ou seja, uma tentativa de “terrestralizar” a consumação final
cristã, uma busca por criar, aqui e agora, os novos céus e nova terra.
Portanto, os movimentos revolucionários são apenas a versão atual da antiga
torre de Babel, como já disse Dietrich von Hildebrand em sua obra The New Tower
of Babel: modern man’s flight from God [A Nova Torre de Babel: o homem moderno
fugindo de Deus]:
O emblema da presente crise é
justamente a tentativa por parte do homem de se libertar de sua condição de
criatura, de negar sua situação metafísica e de se desembaraçar de todos os
laços que o ligam a algo que é maior do que ele. Ora, o homem moderno busca
construir uma nova Torre de Babel [Tradução nossa]
As ideologias revolucionárias
negam, portanto, toda forma de transcendência, mutilando, assim, a natureza
espiritual do homem. Entretanto, como já disse Herman Dooyweerd – seguindo o
pensamento de Calvino, o homem é um ser congenitamente religioso; a Queda não
eliminou o sensus divinitatis (o senso da divindade) e a semen religionis (a
semente da religião), antes, a obscureceu, corrompendo-a a ponto de
transformá-la num impulso idolátrico. Desse modo, as modernas ideologias não
são antirreligiosas (embora a maioria seja anticristã), mas, sim, religiões
distorcidas, idólatras e que, acima de tudo, depravam a Revelação.
Destarte, todas as ideologias
invariavelmente usurpam símbolos transcendentais e escatológicos cristãos para,
em seguida, imanentizá-los. Ora, a escatologia marxista, sob o governo de um
proletariado abstrato, na qual todas as desigualdades econômicas e sociais
desaparecerão – ao mesmo tempo em que todas as potencialidades humanas
aflorarão plenamente (nos dizeres de Marx e Engels, um indivíduo pode caçar
pela manhã, pescar pela tarde e fazer crítica literária à noite, sem, no
entanto, ser pescador, caçador ou crítico); tal escatologia configura-se como
uma versão imanentizada da nova terra. Ou podemos citar ainda a ideia
sustentada por alguns vegetarianos radicais, segundo a qual a raça humana
eventualmente deixará de consumir carne, adotando uma dieta essencialmente
herbívora; tal concepção nada mais é do que uma secularização, um esvaziamento
simbólico da descrição feita por Isaías a respeito do novo estado inaugurado
pelo Messias: “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao
cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um
pequenino os guiará” (Is 11:6).
Portanto, não há neutralidade
neste ponto: é impossível ao homem escapar de sua condição inerentemente
religiosa; as ideologias se sustentam sobre um fundo inegavelmente religioso; e
tal constatação parte inclusive de ateus confessos, como John Gray – em seu
livro Missa Negra: Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias. Assim, a gnose é
um elemento muito mais sutil do que primeiramente pode se pensar, até porque
não se trata de um ponto isolado na mentalidade secular, mas, sim, uma
cosmovisão integral, um modo de contemplar e interpretar a realidade. Nas
palavras de David Koyzis, em seu livro Visões e ilusões políticas: uma análise
& crítica cristã das ideologias contemporâneas: “[...] as diversas
ideologias se baseiam numa visão gnóstica da realidade, atribuindo a origem do
mal a algum elemento da criação de Deus e buscando a redenção num outro aspecto
da criação” (p. 82).
Em suma, a gnose é uma espécie
de inversão da ordem da criação, é a rejeição absoluta da estrutura da
realidade tal como criada por Deus. Semelhantemente ao grito de Mefistófeles,
no Fausto de Goethe, o gnóstico cria para si mesmo uma espécie de realidade
postiça, com uma estrutura engendrada segundo suas próprias preferências, e não
segundo as leis eternas de Deus:
O Gênio sou que sempre nega!
E com razão; tudo o que vem a ser
É digno só de perecer;
Seria, pois, melhor, nada vir a ser
mais.
Por isso, tudo a que chamais
De destruição, pecado, o mal,
Meu elemento é integral (GOETHE, Fausto,
2010, p.139, Editora 34).
Porém, alguém pode
presentemente indagar-se acerca da relação entre ideologia, pentecostalismo e
gnose, bem como a razão desse périplo acima nas várias teorias religiosas e
políticas. Ora, nesse momento adentramos num domínio já vislumbrado por alguns,
comentado por poucos e raramente criticado, a saber, a presença de ideologias marxistas dentro de igrejas
históricas e formalmente reformadas. Todos são prestos em criticar a gnose
descarada nos cultos e práticas pentecostais, mas muito ciosos em apontar os
famosos “cristãos esquerdistas” e pastores marxistas dentro das Presbiterianas,
Batistas e igrejas reformadas independentes.
Com efeito, ao passo que Roma
tem sido assolada pela chamada Teologia da Libertação, nós, protestantes, dado
que Deus é hábil para desenvolver cruzes para seus seguidores (A.W. Tozer),
somos açoitados pela Teologia da Missão Integral. No entanto, esta corrente é
deveras popular somente nos meios teológicos acadêmicos, de forma que, na sua
vida prática, nossa eclesiologia se vê afligida por outro flagelo, dissimulado
sobre uma máscara de neocalvinismo de Kuyper, a saber, a execrável “liturgia
aberta” (assim denominada pelos seus “teóricos”) organicamente unida ao não
menos nefando “louvor contemporâneo” (epíteto para canções de teor massivamente
sentimentalista emolduradas por melodias homogêneas e simplórias).
Em outras palavras, já é
habitual participarmos de cultos presbiterianos e batistas que são regidos não
mais por um princípio regulador, mas pela supremacia do sentimentalismo barato;
mas não apenas isso – argumentando estarem pondo em prática os princípios de
redenção da cultura e graça comum propostos por Kuyper, Bavinck e mais
recentemente Richard Mouw, alguns pastores inserem em seus cultos e comunidades
versões “samba” ou “reggae” de hinos tradicionais, afirmando que, mediante a
redenção realizada por Cristo, até mesmo esses ritmos populares se tornam
pertinentes ao culto. Ora, não é nossa intenção presentemente discutir sobre a
neutralidade ou não dos ritmos musicais (Michael Horton já tratou disso no seu
artigo “Is style neutral?” [O estilo musical é neutro?]), mas sim, analisar se
esse era efetivamente o pensamento dos neocalvinistas.
Na verdade, basta uma análise
superficial para notar que a aceitação indiscriminada de toda sorte de ritmos
sob o pretexto de cumprimento do mandato cultural soa mais como Gramsci do que
Kuyper. O receio de postular um parâmetro objetivo do belo e consequentemente
uma hierarquia estética tem levado não somente os acadêmicos incrédulos a
aceitarem como arte todo tipo de experimentalismo e obras disformes, mas também
aos pastores e líderes cristãos a admitirem em suas congregações o relativismo
estético marxista, que, como tudo o mais, repudia quaisquer padrões objetivos e
imutáveis que possam determinar ou avaliar nosso comportamento ou feitos. E
nesse sentido, portanto, são gnósticos ou, no mínimo, intelectualmente desonestos.
Kuyper, em seu livro Wisdom
and Wonder: common grace in Science & Art, repudia qualquer forma de
relativismo estético; e a redenção da cultura e da arte diz respeito, antes de
tudo, à alta cultura (termo cada vez mais raro). Com isso não se pretende dizer
que se descarta de antemão qualquer participação ou produção popular, afinal,
era notório o cuidado e o empenho de Kuyper em trazer as camadas populares
(kleine luyden, a "gente pequena") a uma maior participação política
e social. Na verdade, como o próprio teólogo afirmou, para Deus devemos dedicar
os melhores frutos de nosso trabalho, incluindo, pois, as mais sublimes
produções estéticas. Ora, comparar Hillsong United ou "corinhos de
fogo" com os Salmos metrificados de Goudimel ou as composições de Isaac
Watts é, no mínimo, sinal de uma completa obnubilação do senso estético – isto
para não dizer que se trata de uma depravação do gosto. A liturgia de igrejas
que se dizem reformadas deve necessariamente seguir a linha histórica, pois
qualquer tentativa de rompê-la, refazendo-a inteiramente, constitui-se antes
como ato revolucionário (e, portanto, gnóstico) do que inovador. Nas palavras
do teólogo holandês:
Na igreja de Cristo, Ele é o
Rei, e é necessário que tudo O sirva. Um organista tocando seu instrumento
apenas para si mesmo não compreende, por conta disso, seu chamado; e o cantor
que não compõe suas letras segundo a linha histórica da tradição cultual não se
santifica, mas peca, caso o som de sua voz sirva apenas para estimulá-lo, e
caso, ao conduzir o canto, não se entregue completamente à adoração de seu
Senhor e Rei.
Nada é mais irrisório do que
coristas cantando como se fossem pássaros, e não pessoas; ou músicos que não
sentem absolutamente nada daquilo que estão cantando, os quais estão simplesmente
perdidos nas notas musicais. Mas, contanto que essa espécie de performance
artística seja evitada, a arte da música e da canção permanece indispensável para nossa adoração. Em Genebra, Calvino convergiu todo empenho para que o
canto congregacional soasse cerimonioso, natural, animado e belo.
Todos que são suficientemente
humildes hão de admitir com franqueza que ninguém, ao se assentar no santuário,
possui o fervor apropriado para a adoração. Nesse momento, a arte da música e
do canto deve ser o meio para içar a alma do adorador para fora do ordinário
e do mecânico em direção à paixão e atividade. Canto e melodia devem falar ao
coração humano na plenitude do culto de uma forma que o estimule à adoração.
Tal objetivo não será atingindo caso falte ao canto o ardor santo, e à música,
uma vivacidade mais imponente [Tradução nossa]
Naturalmente, alguns
argumentarão que há necessidade de adaptarmos a liturgia à cultura ou que é
imperativo atualizá-la, a fim de não nos transformamos em adoradores anacrônicos.
Se Deus assim o permitir, trataremos futuramente dessas e outras argumentações.
Que Deus nos livre, pois, da
gnose em suas mais diversas formas.
Autor:
Fabrício Tavares
Divulgação:
Reformados 21