O correlato da soberania de
Deus sobre todas as coisas e com a soberania
das esferas é o principium exlusae antinomiae (o princípio da antinomia
excluída). A prática e a ciência sempre deparar-se-ão com problemas, caso não
partam do princípio de que as antinomias estão excluídas no cosmos. Pois se
todas as áreas estão sujeitas à lei de Deus que lhes é particularmente válida,
então é evidente que nenhuma dessas áreas se encontra sujeita à outra lei, de
modo que toda tentativa humana de sujeitá-las a uma lei que não está adaptada
para a área em destaque está condenada ao naufrágio.
A luta, que tem sido travada
nos últimos anos na Universidade Livre de Amsterdã, contra a aceitação das
antinomias, é basicamente apenas a continuação dessa antiga luta contra a pseudo-soberania
da razão, a qual foi travada de forma tão corajosa nas outras regiões na
Holanda. O pensamento pagão sempre aceitou antinomias. E não poderia ser
diferente, pois tal pensamento foi o responsável por trazê-las à tona. Afinal,
tendo concebido o cosmos como o trabalho ordenado de Deus, o paganismo
refletiu, opinativo, que Deus foi confrontado com um caos que aguardava ser
posto em ordem – quanto mais fácil, melhor. Ora, Hans Driesch (em sua obra
Wissen und Denken, 1919) recentemente, de maneira honesta, ressaltou o ideal
monista de ordem, para então – de modo não muito diligente – reconhecer que ele
não se sustentava.
No entanto, mesmo onde se
reconhece uma variedade de funções, acaba-se reduzindo à velha concepção: não
se espera mais surpresas, mas tenta-se, tão logo descubramos uma nova distinção
de uma função específica, dividir tudo novamente em classes já descobertas.
Desse modo, o materialista distingue as superfícies espaciais e o movimento; o
vitalista, por sua vez, resguarda a distinção entre o “mecânico” e o
“orgânico”; e, por fim, torna-se conspícuo a outros que a vida emocional é algo
totalmente diferente da vida orgânica. Sendo assim, tem-se, consequentemente,
que as funções não se encontram nitidamente separadas entre si; pensemos, por
exemplo, na fusão da aritmética com a espacialidade. Todavia, sabemos como na
concepção grega do “Logos”, a função analítica e a linguística, bem como o
pensamento e o juízo, eram concebidos confusamente como uma só coisa – a
analítica ou lógica e a linguística até hoje sofrem por isso. O que podemos
esperar desse confronto? Todas essas áreas possuem a verdade a seu lado numa
proporção tal que cada uma delas percebe uma distinção de determinada função e
a mantém. Com efeito, o movimento não pode ser subsumido no espaço, nem o
orgânico, no movimento.
O emocional é, de fato, algo
totalmente diferente do orgânico, e, de semelhante modo, o analítico é distinto
do emocional. A criação é um livro escrito por Deus, e todas essas coisas são
igualmente capítulos individuais deste livro. Entretanto, todas essas
tentativas se encontram equivocadas na medida em que cada uma busca encaixar à
força a rica diversidade total dentro de um esquema de uma distinção específica
que tenha sido recentemente redescoberta, após ter caído em esquecimento nos
dias passados e é agora superestimada de forma totalmente injustificada.
Consequentemente, cremos, no que diz respeito à totalidade da história da
ciência até então, que podemos distinguir de pronto as seguintes funções: a
função aritmética, a espacial, a física (energética, incluindo a energia
cinética), a orgânica, a emocional ou psíquica, a analítica ou lógica, a
histórica, a linguística, a social, a econômica, a estética, a jurídica, a
ética e a pística [fé]. Nessa ordem, elas são as funções das coisas que se
encontram intimamente ligadas e sujeitas às leis de Deus, que são válidas para
elas.
1. Não menos importantes são
as “coerências” no cosmos. Há coerências tanto em uma mesma coisa
(intra-individual) e entre diferentes coisas (inter-individual). Primeiramente,
tratemos sobre a coerência intraindividual.
Neste ponto, é preciso distinguir duas questões: uma coerência entre estados consecutivos de uma mesma circunstância. Já a coerência interindividual se torna prontamente patente quando pensamos, por exemplo, acerca da coerência entre uma inflamação orgânica e a dor associada a ela no nível emocional, ou ao contrário, quando pensamos sobre a tensão psíquica que acompanha as preocupações econômicas. As obscuridades somente virão à tona caso sigamos a tendência da filosofia atual que percebe algo como sendo o resultado de duas pseudo-coisas. Com tal afirmação, não pretendo criticar a análise técnica que é capaz de dividir novamente as coisas compostas em seus componentes originais. A atribuição do nome coisa aos materiais que o químico extrai dessa forma é totalmente justificada – eles são materiais que pertencem ao mesmo domínio, e de semelhante modo possuem as mesmas funções, i.e., uma função aritmética, uma espacial e uma física. Mas a questão é totalmente diferente quando tratamos das chamadas coisas, que permanecem com o filósofo quando ele divide uma coisa em dois grupos. Assim Demócrito dividiu a coisa física numa coisa espacial acrescida de movimento; e outros viram a planta como uma pedra mais a vida; um animal como sendo um organismo mais algo psíquico; e um ser humano como um animal e algo mais. Quem faz coro a isso nega a coerência existente entre as diferentes funções. Pois é exatamente por meio dessa conexão que as funções menos complexas num ser humano se desenvolvem muito mais plenamente do que num animal ou numa planta. As funções inferiores, tão logo surjam, são primeiramente direcionadas em coerência com as funções superiores – as inferiores “antecipam” as superiores.
Neste ponto, é preciso distinguir duas questões: uma coerência entre estados consecutivos de uma mesma circunstância. Já a coerência interindividual se torna prontamente patente quando pensamos, por exemplo, acerca da coerência entre uma inflamação orgânica e a dor associada a ela no nível emocional, ou ao contrário, quando pensamos sobre a tensão psíquica que acompanha as preocupações econômicas. As obscuridades somente virão à tona caso sigamos a tendência da filosofia atual que percebe algo como sendo o resultado de duas pseudo-coisas. Com tal afirmação, não pretendo criticar a análise técnica que é capaz de dividir novamente as coisas compostas em seus componentes originais. A atribuição do nome coisa aos materiais que o químico extrai dessa forma é totalmente justificada – eles são materiais que pertencem ao mesmo domínio, e de semelhante modo possuem as mesmas funções, i.e., uma função aritmética, uma espacial e uma física. Mas a questão é totalmente diferente quando tratamos das chamadas coisas, que permanecem com o filósofo quando ele divide uma coisa em dois grupos. Assim Demócrito dividiu a coisa física numa coisa espacial acrescida de movimento; e outros viram a planta como uma pedra mais a vida; um animal como sendo um organismo mais algo psíquico; e um ser humano como um animal e algo mais. Quem faz coro a isso nega a coerência existente entre as diferentes funções. Pois é exatamente por meio dessa conexão que as funções menos complexas num ser humano se desenvolvem muito mais plenamente do que num animal ou numa planta. As funções inferiores, tão logo surjam, são primeiramente direcionadas em coerência com as funções superiores – as inferiores “antecipam” as superiores.
Por outro lado, as funções
mais complexas são não apenas fundadas nas menos complexas, mas também se
remetem para as inferiores: elas retrocipam. Antecipações e retrocipações
existem, pois, em virtude apenas da coerência vertical de uma variedade de
funções numa mesma coisa. Tal coerência deve ser claramente distinguida da
coerência horizontal entre funções iguais de coisas diferentes. As funções são
sempre “funções-das-coisas”, mas jamais podemos apresentar um grupo de funções
como se fosse uma coisa. Aqui há, pois, uma segunda coerência intra-individual:
uma coisa perpassa diferentes estados em todas suas funções. Ela existe no
tempo; possui um passado, um presente e um futuro. Tais estados não existem
desconectados um do outro. O último [o futuro] está contido no primeiro
[passado], embora o presente não possa ser predito a partir do passado, nem o
futuro possa ser profetizado a partir do presente. Isso indica uma coerência
bastante peculiar entre o anterior e o posterior: o primeiro claramente envolve
um número de possibilidades que abrangem também o último, embora este, por sua
vez, ainda inclua várias possibilidades ausentes no primeiro.
As duas coerências
intra-individuais não são idênticas, em suas naturezas. Não é que uma função se
encontre em relação à outra como uma potencialidade está para uma realidade,
embora essa relação ocorra em todas as funções. Tanto na vida quanto nas
Sagradas Escrituras não somente o que acima discutimos se encontra em destaque,
mas também as coerências inter-individuais. Ambas (a vida e as Escrituras)
estão atentas para o importante lugar que a coerência entre as coisas
individuais ocupa no cosmos – uma percepção que muitos, recentemente, quase
perderam sob a influência do individualismo. Tratemos brevemente da coerência
entre sujeitos e sujeitos e, então, a coerência entre sujeitos e objetos
presente em meio à riqueza apresentada pela obra do Criador. Coisas
individualmente diferentes que pertencem ao mesmo “domínio”, por exemplo, duas
plantas ou dois seres humanos, são similares no seguinte sentido: ambos possuem
funções sujeitas à mesma esfera de lei. Tais funções não se encontram
desconectadas, mas estão em coerência uma com relação à outra – uma coerência
que, certamente, apresenta o caráter da esfera de lei em questão. Desse modo,
duas linhas se entrecruzam; na esfera física, uma forma de energia se
transforma em outra; e assim alguém me indica a suspeita na área
analítica. Onde quer que a linguagem desempenhe um papel, essas coerências
assumem o caráter de co-operação, por meio dessas coisas inter-humanas tais
como sociedade, empresa, estado, família, comunidade religiosa. Essas
coerências são diferentes entre si, visto que o objetivo particular de cada uma
não reside na mesma esfera de lei. Não é necessário me demorar no que diz
respeito à necessidade de distinguir essas coerências claramente e do esforço
desempenhado por parte dos calvinistas nisso.
Frequentemente essa coerência
é discutida somente na epistemologia – o que é um equívoco. Ainda que não
caiamos no erro do positivismo, de tornar a existência dos objetos dependente
da investigação realizada sobre eles, ainda existe outros perigos, mesmo que se
separe um lugar independente para o objeto, dentro da epistemologia. Ora, o
fato de algo tornar-se objeto não depende de sua investigação, pois objetos –
independente se a atenção se dirige a eles ou não – se apresentam onde quer que
uma função inferior se repete numa função superior. Assim, o ponto é, no âmbito
espacial, a repetição da descontinuidade do número; dessa forma, há –
“objetivamente” – no âmbito físico, trajetos imutáveis que são descritos por
coisas mutáveis; de semelhante modo, a estimulação biótica ocasionada pela luz
se repete no âmbito físico como cor; e, desse modo, somos confrontados com
vir-a-ser independente de determinado objeto quando o espaço, que em si mesmo
não é euclidiano, se torna euclidiano no âmbito físico, ao mesmo tempo que atua
como espaço de percepção.
E por fim, tratemos ainda
acerca da transição de uma coisa da coerência inter-individual para a coerência
intra-individual e vice-versa. A primeira transição pode ser encontrada dentro
de um mesmo domínio, por exemplo, na fusão química de diferentes materiais, e
entre diferentes domínios, por exemplo na absorção de determinado nutriente por
parte das plantas, animais e seres humanos. Transições nas direções opostos
aparecem, por exemplo, na coerência genética. Por esse conceito, entendemos o
desenvolvimento de uma coisa a partir de uma ou mais coisas dentro do mesmo domínio.
Tal desenvolvimento ocorre de modo totalmente diferente do ensinado pelos
adeptos da teoria funcionalista da evolução: de acordo com eles, as coisas com
funções superiores poderiam se desenvolver a partir de coisas com funções
inferiores. O estudo do desenvolvimento real restringe essas especulações e
estudos apenas àquilo que se encontra no cosmos, o que se implica, conforme já
dito, na origem de uma coisa a partir da outra dentro do mesmo domínio. Tomemos
um exemplo: um elétron, que anteriormente se encontrava numa coerência
intra-individual com os demais elementos do átomo, está agora ligado com os
mesmos elementos numa coerência inter-individual. A questão se torna um pouco
mais complicada quando – como na reprodução sexual – a coisa que é ejetada
entra numa coerência intra-individual com outra, com a qual se encontrava
anteriormente apenas inter-individualmente ligada. Somente caso alguém realmente
estude o desenvolvimento em si (o que seria de fato uma felicidade), será
possível construir um conceito decente de “tipo” [i.e. espécie]. Aquilo que
hoje em dia é apresentado como tal nada mais é do que uma similaridade
percebida na “forma” das coisas; e há ainda certa disputa se existe
efetivamente uma forma geral que possa ser usada como critério, ou se isso é
apenas o produto da ação abstrativa de nosso pensamento.
No que tange à raça humana, no primeiro caso (a forma geral) alguns pensadores elevaram seu próprio ideal a uma norma para os demais, e olharam com desdém para aqueles que não satisfaziam esse ideal [como no caso do racismo e eugenia]. No outro caso, a questão descamba para o cosmopolitismo. Quão diferente é a concepção das Sagradas Escrituras! Ela não apresenta esses ideais acima citados, mas também não aponta na direção do cosmopolitismo; todavia, ensina que de um só fez todas raças humanas (At 17:26); quando trata acerca das almas dos descendentes, que estavam “nos lombos” ou “quadris” dos ancestrais, ela toma o desenvolvimento de forma totalmente concreta (ex. Gn 35:11; Ex 1:5; Jz 8:30; 1 Rs 8:19; 2 Cr 6:9; At 2:30; Hb 7:5). Por essa razão, ela também dá grande importância para as genealogias que remontam a Adão, que, com exceção de Jesus, foi o único ser humano que não veio à existência por meio da união sexual. O primeiro ser humano teve origem na criação, e, então, a partir de um ato criativo particular de Deus, no qual Ele insuflou o sopro da vida (Gn 2:7), de modo que lhe foi possível, quando a luz da palavra pregada de Deus chegou até ele (Adão), testar suas próprias ações e o comportamento dos outros com base na Lei de Deus (Pv 20:27) e na execução de seu ofício humano: dominar sobre as obras das mãos de Deus – isto é ser a “imagem” (Gn 1:26-27) e o “filho de Deus” (Lc 3:38)
II
A filosofia pautada nas
Escrituras concebe a religião como um pacto, um unio foederalis, que se torna
conhecida pela raça humana através da revelação da Palavra, ainda antes mesmo
da Queda.
1. Com essa afirmação, a
filosofia calvinista se dirige contra toda tentativa de interpretar a religião
como uma submersão substancial ou funcional do homem em Deus. Por essa razão,
na filosofia calvinista, até mesmo a religião é tratada como um tópico
separado, pois não há fundamento nos associarmos com as concepções atuais, de
acordo com as quais a religião pode ser resumida naquilo que citamos
anteriormente. Todavia, é exatamente isso que não podemos fazer. Se alguém
iguala a vida no pacto divino com uma ou outra função, então tal pessoa acaba
sendo conduzida – quer queira ou não – ao universalismo: fé, vida espiritual,
consciência ou qualquer outro termo com o qual se queria nomear isso, torna-se
raios do ser divino, cristalizações do Logos ou algo do tipo. Portanto, não é
possível entender fé e descrença como oposições restritas; a especulação
imediatamente se apresenta a fim de relativizar essas oposições. Caso não
queiramos seguir essa última posição, então a afirmação de que a religião é uma
função humana conduz consequentemente à não atribuição dessa função (a
religião) a todo mundo: a fé se torna um donum superadditum, que fica
totalmente sem uma associação imediata com relação às outras funções. A
fatídica negação da coerência entre pensamento e fé é, pois, o resultado
inevitável desse posicionamento. Roma tomou um caminho diferente. Ao passo que
rejeitam tanto a separação entre fé e razão e universalismo, eles, nessa
questão, buscam basear a alternativa “fé versus descrença” na relação mantida
pelo ser humano com os oficiais da igreja instituída. Isso é um equívoco, pois
embora essa relação não seja, em si mesma, uma função, contudo, ainda reside na
área funcional: é a associação entre o âmbito devocional e o âmbito do poder na
área pística [da fé], que também está presente nas religiões não-cristãs.
A identificação da religião
com uma função não nos leva a lugar nenhum e, de semelhante modo, não está de
acordo com o parâmetro das Escrituras. Mas as Escrituras mostram um caminho que
torne possível compreender a religião? A mesma Escritura, que com sua intimação
acerca do castigo eterno, denuncia o universalismo, mas que, por outro lado,
não separa a religião da vida, nem, segundo o modo romanista, identifica a
religião com a relação entre “leigos” e oficiais”; essa mesma Escritura nos
mostra o caminho na medida em que, de maneira simples, fala acerca do coração,
de onde procedem as fontes da vida (Pv 4:23). Com isso, a coerência do coração com as funções também nos é indicada: as funções são a estrutura na
qual e através da qual se expressa o coração do homem. E aquilo que se aplica a
todas as funções também é válida para função pística [da fé, da confissão]: até
mesmo aquilo no qual um indivíduo crê depende, em última análise, do tipo de coração que ele possui. Ora, todos aqueles que estão familiarizados com as
Escrituras sabem que podem encontrar a base dessa distinção entre “coração” e
fé” ao longo de toda a narrativa bíblica (At 16:14). Essa mesma concepção é
ainda mais essencial para a distinção entre regeneração e conversão.
A fé, como uma função, está
presente em todas as pessoas, mas ao passo que tal função, nos cristãos, leva
em conta a Palavra de Deus, nos não-cristãos, a fé (como função) os leva a
substituir as Escrituras por alguma outra coisa. Neste último caso, o ser
humano cria seu próprio e suposto conhecimento daquilo que por vezes proveio de
uma suposta descoberta do coração humano e a respeito das questões que o
cristão conhece por meio da Palavra de Deus. Assim, o descrente, em última
análise, vive e morre como um produto de sua própria cultura. Se o Espírito de
Deus, contudo, redireciona a direção básica da vida humana e a traz à
obediência da Palavra de Deus, então no desenvolvimento ulterior da vida, essa
Palavra adquire cada vez mais sentido. Ora, esta Palavra exonera o indivíduo da
determinação daquilo que é, de fato, a religião. As Sagradas Escrituras a veem
como um “andar com Deus” (Gn 5:22-24), um “guarda e conservação da aliança” (Êx
19:5; Dt 33:9; Sl 25:10, 103:18, 132:12; Is 56:4-6; Dn 9:4), etc. Essa aliança
não é um vínculo que se encontra necessariamente dentro dos limites do cosmos.
É um relacionamento entre Deus, que de forma alguma pertence ao cosmos, e o ser
humano, que de todas formas, pertence ao cosmos.
2. Somente – e com isso
chegamos ao segundo raciocínio que está incluído em minha afirmação – as
coerências que existem dentro do cosmos se incluem na aliança. Consequentemente
a Palavra de Deus não “aconteceu” apenas aqui e ali, ou ora com relação a isto
e aquilo no que diz respeito àquele “indivíduo”. Não! A Palavra de Deus foi
pregada a toda raça humana, primeiramente a Adão, então a ambos nossos
ancestrais (Adão e Eva) antes de terem pecado; posteriormente a Noé, e
finalmente aos patriarcas e a todo Israel. É necessário estar atento aos
hábitos e deveres dos pais em proclamar essa Palavra a seus filhos (Sl 78:3,4; Dt
4:9 e 6:7). Por essa razão, a Palavra que é pregada num momento posterior nem
sempre repete a que foi pregada anteriormente, mas, pelo contrário, se liga a
ela – e mesmo a Queda não implica numa ruptura com essa ligação. Com efeito,
somente após a Queda, a Palavra obteve o status de palavra da graça. Contudo, o
Salvador, cujo advento ela agora proclama, foi Ele mesmo o Criador do mundo,
que salva Sua própria obra, o Qual derrama Seu espírito sobre toda carne – tal
como no estado em que foi criada. Santificados justamente por esse Espírito, a
fé na Palavra de Deus cresce novamente na vida do homem – e também a fé em Suas
promessas para os crentes e seus descendentes. Por conseguinte, a vida em lugar
algum é tão poderosa como nessa instância, na qual o indivíduo crê em Deus a
partir diretamente de Sua Palavra.
III
Com relação às circunstâncias
após a Queda no pecado, a filosofia pautada nas Escrituras admite: (1) a
depravação total do ser humano; (2) a morte como punição pelo pecado; (3) a
revelação da graça do Deus soberano no Mediador.
1. Aquele que acompanhou as
questões precedentes compreende que a filosofia pautada nas Escrituras aceita a
Palavra de Deus também naquelas partes em que ela expressa suas duras verdades.
Em última análise, há mais a se ganhar com isso do que caso nos recusarmos a
encarar a realidade. Não é tarefa da filosofia mudar algo na realidade; antes,
ela deve somente buscar compreender o cosmos a partir da luz da Palavra de
Deus. Por meio da comunicação do Espírito Santo, somos confrontados, em
primeiro lugar, com o fato de que a raça humana está depravada pelo pecado.
Assim, a morte não somente afeta Adão, mas ao mesmo tempo todos aqueles que
estão incluídos nele (1Co 15:21). Ninguém pode dizer isto com plena
consciência, sem que sua afirmação se torne (como no caso de Paulo) uma queixa: pois todos pecaram e carecem da glória de Deus; é precisamente do coração do
homem que procedem os maus pensamentos e toda sorte de horrores que o
corrompem (Mt 15:18-19). Se a graça de Deus intervém, inflama-se, então, no
coração do homem, a luta entre o antigo ódio e o novo amor, entre a “carne” e o
“espírito” – uma oposição que, como vemos, não tem nada a ver com a oposição
entre “espírito” e “vida”, a qual não ocorre na vida cristã e que também, de
modo nenhum, é antitética.
2. Ora, torna-se claro, portanto, como o
pensamento pautado nas Escrituras deve compreender a morte. Nessa questão, as
Escrituras Sagradas apresentam uma dualidade (Ap 20:14, 21:8, cf. também Ap
2:11, 20:6): a primeira e segunda morte.
Aparentemente, a filosofia da
Antiguidade possuía essa mesma ideia, mas mediante uma análise mais
pormenorizada torna-se evidente que se tratam de duas concepções totalmente
diferentes. A filosofia clássica, para a qual o ser humano era tanto o ponto de
partida e o fim, concebia a morte como uma separação desejável no nível
funcional. Destarte, a morte era concebida como uma separação entre o “soma”
[corpo] inferior e a “psyche” [alma] superior; posteriormente, passou-se a
ensinar que, na segunda morte, a parte suprema da “psyche”, que se libertou da
prisão do “soma”, abandona sua parte inferior na lua, a fim de retornar ao sol.
O pensamento básico das Escrituras é completamente diferente. O ponto de
partida e o destino não se encontra no ser humano, mas sim em Deus. O destino
supremo do ser humano é viver na aliança com o Pai celeste, como um de seus
filhos. A morte pode ser qualquer coisa, menos algo desejável; ela foi imposta
sobre a humanidade como castigo por todas suas transgressões (Gn 2:17). Isso se
aplica tanto à primeira quanto à segunda morte. Ora, a distinção entre ambas
consiste disto: que a primeira morte se estende a todos em Adão, ao passo que a
segunda morte coincide com o castigo eterno que se aplica a todos aqueles que
não foram salvos em Cristo (1Co 15:21; Ap 21:8).
Torna-se claro, portanto, que
essa caracterização da morte e tal distinção entre a primeira e a segunda morte
– dado que é religiosamente concebida – não possui relação alguma com as
especulações pseudo-religiosas de um Plutarco. Ademais, com relação à descrição
mais pormenorizada da morte, as Escrituras Sagradas não a concebem de maneira
funcionalista, em contraposição aos filósofos. Por certo a morte é separação,
mas primeiramente é a descontinuação da coerência na qual o ser humano, como
“alma vivente”, mantinha com seu ambiente (Jó 14:10; Ec 9:5-6). Todo o resto é
secundário – isto já é evidente a partir do fato que essa descontinuidade
ocorre somente com a primeira morte; na segunda morte, o coração ou alma já se
encontra novamente unido ao corpo. Ademais, na concepção bíblica, o corpo não é
a vida animal do homem – algo que as Escrituras desconhecem por completo –, mas
a totalidade das funções, que Paulo compara com uma veste.
3. O que é graça? Qual é a
relação que mantém com a “natureza” e “pecado”? É lícito associar a palavra
“graça” com a representação de uma área, e desse modo falar a respeito da “área
da graça?”. Também nessa questão, a exposição positiva pode assumir a
proeminência. “Graça” significa, em primeiro lugar, “demonstração de
benevolência”: no relacionamento de Deus com o pecador – “o perdido
favorecido”. Nesse relacionamento, a graça sempre procede de Deus. Seu oposto
não é a “natureza” nem o “pecado”, mas a “ira de Deus”. A resposta à questão do
relacionamento entre natureza e graça depende do sentido no qual o termo
“natureza” é utilizado. Por vezes significa o “modo” (por exemplo, a “natureza”
divina e a “natureza” humana de Cristo); em outros casos, significa “o
original”. De semelhante modo, frequentemente significa o ser humano que está
em Adão: “o homem natural” se tornou uma “natureza depravada”, e assim
permanece, a não ser que o Espírito de Deus intervenha salvificamente.
Portanto, devemos compreender o ensino paulino: Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus (1Co
2:14).
Porém o povo de Deus, que
nasceu de novo mediante o Espírito de Cristo, percebe muito claramente aquilo
que vem do Espírito de Deus; e a estas pessoas, Paulo fala acerca do relacionamento
que, por um lado, tinham com Adão, e, por outro, com Cristo: Mas não é
primeiro o espiritual, e sim o natural; depois, o espiritual (1Co 15:16).
Nesse sentido, a natureza é o oposto da graça! Para se perceber o grande perigo
que nesse ponto reside, basta olhar para o uso que Roma faz das palavras
“natureza” e “graça”: observemos simplesmente como a “graça” é identificada com
“os meios de graça”. Poderíamos também, nesse contexto, nos referir ao jogo de
palavras em Leibniz, que identifica graça com aquelas funções do ser humano que
não estão presentes nos animais. As Escrituras apresentam uma concepção ainda
mais simples do “pecado”. Originalmente, o termo significa “privação” ou
“insuficiência” na destinação do ser humano por meio da transgressão do
mandamento, embora o ser humano permaneça sob a lei. A graça, com relação ao
pecado, é, portanto, “perdão” ou “remissão”. A oposição "graça versus ira”, na
parte de Deus, possui um correlato no lado humano: perdão versus pecado
mantido/retido. Ora, não há objeção contra o tratamento das “áreas da graça” em
si mesmas. Todavia, é preciso resistir de forma restrita à tentativa de
delinear rigorosamente essa área, bem como lembrar claramente que tal área se
identifica com aquilo que foi criado, uma vez que e na medida em que Deus vê
isso (a criação) com benevolência (perdida após a Queda no pecado). A área da
graça é muito maior do que a Igreja como corpo de Cristo: mesmo às tribos mais
recônditas, Deus ainda concede a certas pessoas Sua rica graça para que ordenem
a família e a vida de determinado povo. Isso é o que os calvinistas sempre
perceberam e consequentemente chamaram de “graça comum”, após a Queda.
A distinção entre a área da
graça comum e a área da graça particular é problemática somente quando alguém
permite com que ela se coincida com um dualismo na vida de uma mesma pessoa.
Pois se alguém segue esse caminho, logo adentra na concepção gnóstica ou na
concepção romana de natureza e graça, com a qual o calvinista não tem nada em
comum – portanto, possivelmente seja melhor falar, dentro da linha das
Escrituras, de “vasos” [de graça] ao invés de “áreas da graça” (cf. Rm 9:23).
No entanto, mais importante do que essas questões terminológicas, é
evidentemente a questão de como a graça chega até o ser humano. Respondemos:
“por meio da Palavra”. Contudo, como deveríamos compreender isso? Se alguém a
define como a palavra pregada, então acaba identificando também a graça que doa
livremente a vida com a arte da magia ou bruxaria. É preciso, pois, distinguir,
por um lado, entre a Palavra Divina criativa [isto é, o Logos divino, Cristo],
que pregou, enviou seus profetas e finalmente apareceu em Pessoa, e, por outro,
a Palavra do Evangelho pregada que – desde que direcionada aos seres humanos –
Lhe (isto é, a Palavra Divina) anunciou em linguagem humana e ainda o faz. Dito
de outro modo, por detrás da Palavra como conhecimento comunicado, está a
Palavra que Se amalgamou de uma forma única com Aquele que (concebido pelo
Espírito Santo e nascido da virgem Maria, não é o primeiro Adão, mas) é Ele
mesmo o segundo Adão, o qual (a despeito de Seu ligação com a raça humana
caída), mediante Sua coerência indissolúvel com Deus e por meio da unção com o
Espírito Santo, carrega toda a linha adâmica perdida que Lhe pertence, através
de todos as oposições, rumo ao seu destino eterno.
Autor:
D. H. Th. Vollenhoven