10 de novembro de 2015

Deus deleita-se com a arte não-cristã?


Essa é uma grande questão, mas vamos começar com alguns pontos básicos.

(1) A origem do impulso artístico humano não pode ser explicado humanamente. Comparando teorias sobre a origem da arte, Herman Bavinck, teólogo holandês do século XIX, escreveu: 

Hoje, existem muitas ideias divergentes, assim como existiam antigamente: alguém explica a arte a partir do teatro, outro a partir do desejo sexual, um terceiro a partir do ritmo, um quarto a partir de sentimentos e ações que também acontecem com animais, e por aí vai. Porém, mais e mais, a convicção que ganha terreno a respeito da arte, assim como da religião, é que devemos aceitá-la como um impulso humano original, e como um desejo que não podemos explicar a partir de outras inclinações ou atividades (Essays, p. 252-253). 

Exatamente. Existem muitos fatores que influenciam os artistas, mas nada pode explicar a origem do impulso artístico. Nascemos com ele. 

(2) O impulso artístico é espiritual. Novamente, Bavinck escreve: 

Com o senso de beleza, lidamos com um fenômeno que é parte da natureza humana: uma predisposição e suscetibilidade da alma para encontrar prazer e deleitar-se em coisas que preenchem certas condições (Essays, p.251). 

Exatamente. O impulso artístico é uma realidade espiritual. E, por “espiritual”, Bavinck não quer dizer que a arte pode salvar pecadores de seus pecados. A arte não tem influência salvífica a parte de um entendimento de Cristo e do Evangelho. É somente à luz do Evangelho que a arte tem algum poder salvífico, por exemplo, no testemunho dramático de Peter Hitchens.

(3) A expressão artística do homem é uma reflexão da expressão artística de Deus neste mundo. Abraham Kuyper celebremente escreveu: 

O mundo dos sons, o mundo das formas, o mundo das cores e o mundo das ideias poéticas não pode ter outra fonte senão Deus; e é nosso privilégio, como portadores de sua imagem, ter uma percepção deste mundo belo, para reproduzir artisticamente, para gozá-lo humanamente (Calvinismo, p. 128). 

O mundo é povoado por artistas porque Deus é O Artista.

Permita-me acrescentar uma importante qualificação antes que tratemos da questão. Neste curto post, não posso definir o que constitui “verdadeira” arte e o que não. Obviamente, por “arte”, eu não quero falar de arte que glorifica o mal (por exemplo, pornografia). Sem entrar na estrutura inteira da beleza, o que daria outro post, estou me referindo à “beleza de bom gosto”, o tipo de beleza manifesta no riff de uma habilidosa banda de jazz ou nas pinceladas de um pintor francês do século XVII, ou na prosa reveladora de um escritor russo do século XIX. Em certo grau, penso que todas elas qualificam-se como arte. Por questão de espaço, estou assumindo que estamos falando de “bela arte”.

Assim, chegamos ao centro da questão: Deus deleita-se com a arte, mesmo se for realizada, escrita, ou pintada por um não-cristão? Ou, colocando a pergunta de outra forma, o fato de um pecador ser não-redimido e estar debaixo da ira de Deus torna a sua arte repulsiva para Deus?

Foi durante a leitura de He Shines in All That’s Fair: Culture and Common Grace, de Richard Mouw, que cheguei à primeira vez nessa discussão. Mouw diz que Deus pode deleitar-se – e deleita-se – com a arte não-cristã. Ele escreve:

Penso que Deus deleita-se no humor de Benjamim Frankilin, nas tacadas de Tiger Woods, e nos parágrafos bem construídos de Salman Rushdie, mesmo que essas realizações sejam, na verdade, alcançadas por não-cristãos. Estou convencido de que o deleite de Deus nesses fenômenos não surge porque levam os eleitos à glória e os não-eleitos à separação eterna da presença divina. Acredito que Deus se agrada dessas coisas pelo próprio valor delas.

Aqui está o centro do argumento:

Os exemplos citados do deleite de Deus não envolvem necessariamente a aprovação moral das vidas “internas” dos não-eleitos. Quando um poeta incrédulo faz uso de uma bela metáfora, ou quando um jogador desbocado faz uma jogada sensacional, podemos pensar em Deus agradando-se desses eventos sem necessariamente aprovar qualquer coisa a respeito dos agentes envolvidos – assim como elogiamos a retórica de um político cuja visão política desprezamos.

Mas, como isso pode ser verdade? Que provas encontramos na Escritura e na teologia?

Eu pedi a um amigo meu – um calvinista comprometido terminando sua dissertação sobre um preeminente teólogo puritano – que explicasse um pouco mais esse conceito. Ele concorda com Mouw porque sua visão é baseada no entendimento de que todos os homens são criados à imagem de Deus. Isso significa que, em algum grau, todos os homens refletem a imagem de Deus. Em um e-mail, ele me explicou mais ou menos assim:

A ideia central aqui, creio, envolve a imago dei. Deus é o amante mais perfeito de sua imagem. A imagem reside dentro da humanidade na alma humana substancial. Assim, ela brilha na cultura de maneiras infinitamente diferentes. É impossível que Deus veja tais reflexões de sua glória e não se absorva em deleites cognitivos. É ele quem vê sua própria imagem da maneira mais elevada. É ele quem se deleita nela de maneira mais profunda.

Assim, em certo sentido, a arte é o reflexo da imagem de Deus no homem. E onde a imagem de Deus resplandece na sociedade, podemos presumir logicamente que isso traz deleite Àquele que valoriza Sua própria imagem. É como um reflexo de Si mesmo.

Portanto, Mouw pode argumentar extensamente que o fundamento deste deleite não se encontra na grandeza inerente do atleta, pintor, poeta ou romancista. De fato, temos um impulso de glorificar o artista humano mais que o Artista supremo. É bem mais possível que sejamos tentados a louvar a grandiosidade do artista menor. Mouw, pelo contrário, ensina-nos uma importante lição. O fundamento do deleite de Deus na arte não-cristã acontece porque ela é um reflexo de Si mesmo.

Para entender isso, precisamos compreender a dignidade do homem ao lado de sua miserabilidade. De alguma forma – misteriosamente, me parece – o homem pode refletir a imagem de Deus, ainda que essa imagem esteja agora “terrivelmente deformada” (Calvino) devido ao pecado. A morte espiritual não pode apagar completamente a imago dei. De fato, é difícil não perceber a ironia no fato de que cada um de nós possui uma língua maliciosa e depravada, que usamos para amaldiçoar nossos semelhantes, portadores da imagem de Deus (Tg 3.9). O homem é maligno e esplêndido. A maldade nunca é mais evidente que quando expelimos ódio em direção a um portador da imagem. É o esplendor dos dons do homem que tornam seu pecado tão escandaloso. Assim, de alguma forma, homens não-redimidos podem ser terrivelmente deformados e, ainda assim, serem um reflexo do Criador. Isso é um mistério, mas eu o enxergo na Escritura.

Em seu livro The Road from Eden: Studies in Christianity and Culture, John Barber faz alguns ajustes na posição de Kuyper/Mouw e muitos deles são úteis (p. 445-460). Por exemplo, Barber discorda de Mouw sobre Deus manter “propósitos divinos múltiplos”, um propósito para a Igreja antes da queda, e outro propósito estabelecido pela Criação após a Queda.

Ainda assim, a despeito da discordância, quando se trata de Deus deleitar-se na arte não-cristã, Barber concorda com Mouw:

… uma vez que a obra cultural dos não-regenerados é vitalmente importante para o progresso do mundo e para o plano redentivo de Deus, e uma vez que esta obra origina-se nos dons que Deus concedeu, o produto da cultura não-regenerada é agradável a Deus. Entretanto, essas observações não diminuem a “antítese” de que Kuyper falou – o fato de que existe, e sempre existirá, uma diferença fundamental entre o agente cultural cristão e o não-cristão, pelo poder da Cruz. (453)

Assim, Deus realmente deleita-se com certas obras não-cristãs, argumenta Barber. Ainda assim, se você estiver lendo cuidadosamente, pode ouvir nessas palavras uma advertência. Isso acontece porque a habilidade artística dos artistas não-cristãos está limitada pelo pecado. A respeito de Pablo Picasso, por exemplo, Barber escreve: 


Enquanto da perspectiva humana, seu conjunto da obra pode ser considerado ‘grandioso’, o pecado o reduziu a mero vestígio da imagem de Deus, o que significa que sua obra nunca alcançou todo seu potencial (452).

Esse potencial total requer um artista vivendo sob o senhorio de Cristo e desenvolvendo obras que procuram glorificar a Deus.

Porém, a despeito dessa falta de potencial total, o dom artístico de Picasso encontra sua origem em Deus. Artistas não-cristãos nos mostram, nas palavras de Calvino, “quão longe os raios da divina luz têm brilhado” e nos revelam “os excelentes dons do Espírito que estão espalhados por toda a raça humana” (Comentário em Gn 4.20).

As implicações de tudo isso são explicadas nas palavras de Anthony Hoekema em Criados à Imagem de Deus:

Nós, como cristãos crentes, portanto, podemos aprender muito de grandes obras da literatura escritas por incrédulos, mesmo que não compartilhemos o compromisso último deles. Podemos apreciar o que foi produzido por não-cristãos em diferentes áreas de esforço artístico, como arquitetura, escultura, pintura e música, uma vez que seus dons vêm de Deus. Podemos, assim, desfrutar dos produtos culturais de não-cristãos de uma maneira que glorifiquemos a Deus através deles – mesmo que tal louvor a Deus não fosse parte da intenção consciente desses artistas.

O que torna possível aos cristãos deleitarem-se nesses dons artísticos de não-cristãos é um entendimento da origem desses dons. Eles vêm de Deus. Eles refletem o caráter de Deus. E, quem melhor para reconhecer a origem de dons artísticos em não-crentes que o próprio Deus?

Artistas cristãos devem buscar o serviço à igreja pelo uso de seus dons artísticos. Mas, isso não significa que a arte desconectada da vida da igreja não reflete a Deus. Pode refletir. E é por isso que podemos deleitar-nos nas belas expressões artísticas de artistas não-cristãos, pois, como tentei mostrar a partir de teólogos confiáveis, é um fato que o próprio Deus assim o faz. Como Deus, podemos separar o dom refletido da depravação do espelho, podemos enxergar além da língua e do coração ímpio e, ainda assim, reconhecer o caráter de Deus no reflexo da beleza.

Conclusão

Me parece que, a não ser que estejamos abertos à ideia de que Deus deleita-se na manifestação de belas artes pelos não-cristãos, encontraremos dificuldade em glorificar a Deus através da arte que vemos. Isso é especialmente verdade em artífices que não são cristãos, que portam as marcas de seu Criador, enquanto permanecem sob a culpa de seu pecado, e estão em desesperada necessidade de um Salvador.

Aqui está um breve resumo do que aprendi em meses de leitura sobre o assunto:

1. O dom artístico no homem é intrínseco.
2. A criatividade artística de Deus manifesta-se em sua criação.
3. O impulso artístico humano é, pelo menos em parte, um reflexo da imagem de Deus.
4. Deus deleita-se em Si mesmo e, portanto, deleita-se no reflexo de seu próprio caráter, sendo a beleza artística uma reflexão dEle em nossa cultura.
5. Artistas não-cristãos, enquanto permanecem em um estado de inimizade contra Deus, nunca alcançarão o mais alto de seu potencial artístico.

Essa perspectiva oferece ao cristão um grande fundamento para a apreciação da arte não-cristã das seguintes formas:

1. Abre nossos olhos para a graça comum de Deus na arte ao nosso redor.
2. Lembra que, em cada artista presenteado com dons, vemos um reflexo do Artista, a fonte de toda bondade, verdade e beleza.
3. Ajuda a apreciar os dons de artistas não-cristãos e a beleza da arte não-cristã.
4. Protege-nos de glorificar os espelhos brilhantes ao invés do Sol.
5. Lembra que o potencial artístico dos não-cristãos, por maior que seja, é tragicamente limitado.
6. Lembra que, enquanto há beleza para ser apreciada na arte não-cristã, a arte não é um “território neutro” que pode ser acompanhado sem uma preocupação a respeito de Deus e da verdade.
7. Finalmente, lembra que o propósito maior de Deus para a arte é uma bela obra, que nasce de um artista que vive e labora sob o temor de Deus e sob o senhorio de Jesus Cristo, e que expressa este talento artístico com o objetivo de trazer glória ao Artista.




Autor: Tony Reinke
Tradução: Josaías Jr.
Via: Reforma21