A inversão axial da relação culto/cultura
Podemos afirmar ousadamente
que aqueles que não cumprem o Princípio Regulador do Culto, ou que, no afã
aparentemente louvável de diluir os elementos do culto na cultura local,
alteram suas liturgias, são não apenas idólatras e insinceros, mas também solapam
quaisquer tentativas de redenção cultural.
Ora, Kuyper já havia dito que
uma cultura pode subsistir sem a arte (o que a empobrece, evidentemente), porém
não sem a religião. Russel Kirk já atentara para o fato de que toda cultura
(como a própria etimologia aponta) provém de um cultus. Dito de outro modo, a
religião é o embrião de toda civilização, assim como o cimento que coere seus
indivíduos organicamente. Não cabe aqui explorar todos as nuances e
complexidades dessa questão – Christopher Dawson, o grande historiador
católico, já estabeleceu e explorou tais princípios em seu livro Progresso e
religião.
Destarte, se a cultura procede
de um culto, aqueles que buscam moldar seu culto segundo a cultura estão
efetivamente invertendo a ordem lógica e até mesmo antropológica da questão.
Não estamos afirmando que a liturgia é um elemento abstrato e desencarnado que
exige a supressão (impossível) de nossas tradições e costumes. Pelo contrário,
o cristianismo é encarnacional: diferentemente do islamismo, ele não suprime a
cultura “receptora”, antes, a redime. Isso é evidente ao longo de toda a
história da Igreja – a Escola de Alexandria, dada a influência mística dos
sábios que ali habitavam, praticavam uma exegese mais alegórica e
espiritualizada, ao passo que a Escola de Antioquia, na Síria, também devido às
influências, apresentava uma hermenêutica mais literalista. Até mesmo dentro de
uma mesma tradição, há diferenças cruciais; basta compararmos as igrejas
reformadas escocesas e as holandesas. Portanto, não reivindicamos a supressão
de traços culturais dentro dos cultos, todavia, protestamos resolutamente
contra a primazia da cultura sobre a liturgia.
Conforme dito, Deus, com
efeito, deu ao homem aquilo que os neocalvinistas chamaram de Mandato Cultural,
ordenado desde a criação do homem: E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a
terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e
sobre todo animal que rasteja pela terra (Gn 1:28). A criação está prenhe de
possibilidades e potencialidades (At 14:17), que devem ser exploradas e
descobertas pelo homem, desenvolvidas segundo os princípios normativos de Sua
Lei e direcionados à glória de Deus (1Co 10:31-33). Ora, estruturalmente toda a
criação é boa, conforme assevera o relato de Gênesis, entretanto, nas palavras
de Albert Wolters, o homem pode conduzi-la segundo uma direção transgressora da
lei divina e corruptora de sua (da criação) bondade intrínseca. É interessante
notar que logo após o relato da descoberta da música – o nome de seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam
harpa e flauta (Gn 4:21) –, o livro de Gênesis nos apresenta de forma quase
imediata os efeitos da depravação, que se estendem até mesmo a essas
potencialidades que o SENHOR embutiu na Sua criação:
E
disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me; vós, mulheres de Lameque,
escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz
porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta
vezes sete (Gn 4:23-24).
Lameque, com seu coração
pervertido pelo pecado, conspurca a musicalidade, criando para si um cântico
que exalta uma retaliação totalmente desproporcional à injúria sofrida. A cultura, embora se
fundamente, em última instância, na revelação, caso não seja direcionada
segundo as diretrizes proposicionais da lei de Deus, certamente será deturpada
pela pecaminosidade humana. Ora, nesse sentido, o Princípio Regulador do Culto
se configura como um parâmetro objetivo, que nos resguarda das alterações e
deformações do culto dedicado a Deus. Nas palavras de Michael Bushell, citado
por Brian Schwartley, “de modo particular, o Princípio Regulador do Culto pode
ser visto como uma inferência natural da doutrina da depravação total [...]
Qualquer obra das mãos do próprio homem, que ele presume oferecer a Deus em
adoração, é poluída pelo pecado e é, por essa razão, totalmente inaceitável”
(SCHWARTLEY, Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto, p. 42).
Em Êxodo 20:25, o SENHOR dá
instruções tão precisas e concisas relativas à construção do altar dedicado ao
Seu nome, que o simples desvio era, por si só, considerado profanação:
Se me levantares um altar de
pedras, não o farás de pedras lavradas; pois, se sobre ele manejares a tua ferramenta,
profaná-lo-ás (Êxodo 20:25, ARA).
Um dos possíveis motivos dessa
prescrição (que também pode ser vista em Deuteronômio 27:5-6) é a diferenciação
que se pretende traçar entre o altar israelitas e os altares pagãos. Os
santuários das nações vizinhas estavam repletos de desenhos e entalhes
minuciosos idólatras e não raro eróticos (Ezequiel 8:5-18). Dessa forma, a
simplicidade e rusticidade do altar do SENHOR seriam um nítido contraponto com
as demais religiões. Além disso, o fato de não poderem cortar as pedras com
instrumentos de ferro demonstra que os israelitas (que naquela época não
dominavam a técnica da metalurgia) não deveriam depender de nenhuma nação pagã
circunvizinha (os cananeus, por exemplo, eram mestres na siderurgia) para
auxiliá-los na adoração a Deus.
Ora, ademais, o altar bruto
nos ensina que nossa cultura, por mais refinada que seja, não deve aparar,
ornamentar, burilar ou remoldar o culto a Deus. Pelo contrário, a simplicidade
do culto é a condição essencial para a restauração e evolução cultural. O meio
reformado se encontra premido por dois posicionamentos – primeiramente, aquilo
que já abordamos na primeira parte deste artigo, a saber, o gramscianismo que
se quer passar por kuyperianismo, “valorizando” e acolhendo em suas comunidades
todos os tipos de monstruosidades teológicas e estéticas que se querem fazer
passar por música ou arte cristãs. Alguns chegam ao ponto de elencar o
brilhante Schaeffer como seu mestre e orientador, como se esse grande pensador
cristão, admirador da alta cultura e da cosmovisão bíblica, fosse admitir que a
mentalidade reformada fosse conspurcada por elementos como DJ’s, cultos jovens,
apresentações teatrais, motoclube, etc.
Em segundo lugar, o meio
reformado enfrenta também o perigo do empobrecimento cultural e artístico, como
no caso da ala neopuritana, a qual chega a proibir até mesmo as representações
iconográficas de Jesus Cristo, com o argumento de que se constituem como
transgressão do segundo mandamento. Creio que, ainda que essa mentalidade dominasse
inteiramente nosso Ocidente, seus defensores teriam certa dificuldade em
incinerar e arruinar a vasta quantidade de quadros, representações, mosaicos,
afrescos, telas, etc., que estão presentes nos grandes museus da Europa e
Américas, movidos por uma estranha espécie de futurismo puritanista, no afã de
apagar a história, que passa a ser concebida como uma simples sequência de
eventos idólatras, ao invés do locus da Providência. Tudo isso, podemos dizer,
para que, ao fim de seu esforço iconoclasta, percebam aquilo que Nathaniel
Hawthorne, brilhante escritor puritano, já havia entrevisto em seu conto
Earth’s Holocaust [O Holocausto da Terra], no qual as pessoas se reúnem perante
uma grande fogueira, uma espécie de conflagração cósmica, a fim de lançar ao
fogo todos os livros, pinturas, objetos, etc. que os lembrassem do passado – a
conclusão do conto:
“O Coração – o Coração – havia
ainda essa pequena mas ilimitada esfera, na qual subsiste o erro primordial, do
qual o crime e a miséria deste mundo visível são simplesmente tipos. Purifique
essa esfera interna; e as várias formas de mal que assombram o exterior, e que
presentemente aparentam ser a quase totalidade de nossas realidades,
tornar-se-ão em meros espectros sombrios, desparecendo por contra própria”
(Nathaniel Hawthorne, Tales & Sketches, p. 906, tradução nossa).
Ora, a religião, e em especial
um de seus elementos, a liturgia, não devem castrar a arte – isso é confusão de
esferas de soberania, e, portanto, transgressão das leis criacionais de Deus.
Como já disse Rookmaaker, “a arte não precisa de justificativa”. Tal afirmação,
no entanto, não implica na autonomia da arte ou seu desprezo pela cosmovisão
bíblica; pelo contrário, toda e qualquer esfera somente realiza e concretiza
suas potencialidades quando se encontra pautada nos pressupostos bíblicos,
levando em consideração os pilares do macrodrama da história salvífica:
Criação, Queda, Redenção e Consumação. Portanto, afirmarmos de fato que o
Princípio Regulador do Culto deve exercer sua autoridade e vigilância de forma
intransigente – mas na área que lhe cabe: o culto público e privado (no lar e
na devoção particular). Jamais deve transgredir os limites de sua própria
esfera, com o risco de se tornar pietismo ou iconoclastia gnóstica. Em suma, não
se pode negar, todavia, o excelente trabalho litúrgico, incluindo a publicação
de obras teológicas que enfatizam e explanam o Princípio Regulador do Culto,
livros que se fazem extremamente necessários nesse nosso contexto eclesiástico
sincrético e idolátrico, que efetivamente precisa ser purificado por uma nova
reforma direcionada pelo Espírito de Deus.
Herman Bavinck, em uma de suas
palestras sobre a relação entre Revelação e cultura, lança as bases de um
pensamento que se apresenta como uma alternativa ao atual dilema do meio
reformado. Para o teólogo holandês, a religião não é o cão de guarda da
cultura, e esta, por sua vez, não é autônoma nem livre para conceber uma ética
alheia à Lei de Deus. Nas palavras de Bavinck:
A ciência, arte e moralidade
são cognatas em origem, essência e sentido à religião, pois todas se baseiam na
crença num mundo ideal, cuja realidade é assegurada e garantida somente pela
religião, isto é, da parte de Deus por meio da revelação.
Indubitavelmente tem havido um
empenho para tornar a cultura ética independente da religião. Todavia, tal
tentativa é ainda nova e restrita a um pequeno círculo e provavelmente há de
ter pouco êxito. É sem dúvida uma desonra para a religião servir como um agente
policial ou como um cão de guarda da moralidade. Religião e moralidade não
estão unidas nesse modo externo e mecânico, mas estão em aliança entre si de
forma orgânica, por causa de suas naturezas íntimas. O amor a Deus inclui o
amor ao nosso próximo, e este se reflete naquele, pois o bem se apresenta a
todos nós, desde nossa tenra idade, na forma de um mandamento. Nem a ética
autônoma nem a ética evolucionista podem mudar algo nisso. A criança não cria
gradualmente leis morais por meio do instinto ou reflexão, antes, ela cresce
num círculo que possuía anteriormente essas leis e que as impõe sobre ela com
autoridade. À medida que olhamos para as nações e examinamos a história da
humanidade, testemunhamos muita hesitação e variedade, no entanto, sempre encontramos,
por toda parte, um fundo de leis morais. Todo homem reconhece que, na
moralidade, existe uma lei que lhe é sobreposta, obrigando-o, em sua
consciência, à obediência. Se de fato é assim, então, nesse surpreendente
fenômeno, estamos lidando ou com uma ilusão, ou com um sonho, ou como uma
fantasia da humanidade, ou, ainda, com uma realidade que se eleva bem acima do
mundo empírico e nos preenche com a mais profunda reverência (BAVINCK,
Philosophy of Revelation, p. 260-261, tradução nossa).
Se queremos de fato renovar a
nossa cultura já degradada, será necessário primeiramente desistir de nossas
pretensões idolátricas de renovação do culto. Um culto que não se sustenta
sobre as firmes bases das Escrituras, deixando espaço para a autonomia humana,
produzirá eventualmente uma cultura também autônoma, que se opõe a tudo que
está relacionado à Lei de Deus.