No curso ministerial de
teologia da Igreja em que congrego – Igreja Reformada Ortodoxa, resolvemos
preparar e ministrar seis breves aulas sobre Teologia Reformada e política.
Inicialmente, as aulas seriam apenas para os que fazem o nosso curso. Mas, convencidos
da necessidade de toda igreja, resolvemos transformá-las em aulas abertas a
toda congregação. O artigo que escrevo é um sumário da parte que me coube, a
saber, o marxismo e sua relação com a realidade e com a Igreja. Evidentemente
não passa nem perto de ser exaustivo. É apenas uma contribuição a um debate que
tem sido levado a cabo por irmãos e pensadores muito mais capacitados!
Tratar de um tema tão candente
não é só oportuno, mas vital para os crentes de nossa época. Em que pese o
fracasso retumbante do marxismo como sistema econômico/político, suas
proposições, especialmente no campo das ideias, exigem uma firme resposta
cristã. Mesmo que os vestígios de sua glória estejam se desfazendo na poeira da História,
reduzidos a poucos exemplares esfarrapados, mas ainda cruéis, seu poder de cooptar corações e mentes
continua muito grande. Esse poder de convencimento é muito mais que apenas
suposições; ele sustenta, na verdade, uma visão de mundo. Ouso dizer que grande
parte da cosmovisão humanista dos nossos dias é subjacente ao marxismo, se
alimenta dele e é alimentada por ele. A maneira como as pessoas absorvem,
observam e operam na realidade é, essencialmente, marxista, mesmo que a imensa
maioria nem mesmo saiba. O próprio cristianismo tem sido influenciado pelas
suposições dessa ideologia, quanto mais não o são as redações de jornais,
revistas e TVs, a academia e os intelectuais que a formam, a arte e a família.
Tudo, praticamente tudo é contaminado pelo humanismo marxista e sua missão de
intentar contra Deus e a religião!
Mas quando começou ? Para responder, lanço mão de Herman Dooyeweerd,
que em sua obra Estado e Soberania, ensaios sobre cristianismo e política,
explica magnificamente a ascensão do que ele chama de biocosmovisão humanista:
O humanismo secularizou a
mensagem da liberdade cristã e da Criação, Queda e Redenção. A revelação das
Escrituras acerca da criação por Deus foi gradativamente substituída pela ideia do poder criativo da
ciência. A liberdade cristã foi metamorfoseada na liberdade soberana da
personalidade humana. A biocosmovisão humanista concentrou-se em dois
motivos-base: o ideal humanista da personalidade e o novo ideal de ciência. O
primeiro queria ensinar a autonomia absoluta, a 'determinação ética' auto
suficiente. O segundo tinha como intuito a construção da coerência temporal do
mundo, com base na autonomia do pensamento científico.
Pois bem, as suposições
humanistas do marxismo nascem da rebeldia do homem caído e de suas pretensões
de autonomia moral, epistemológica e metafísica. A consequência natural dessa
autonomia tripla foi a construção da ideia de que a redenção do homem só seria
possível através de um Estado que reunisse em si e para si o corpo de cidadãos.
Independente da filiação e da
raiz teórica a que a concepção de Estado esteja vinculada, seja ela absolutista como defendiam o jurista alemão
Samuel Pufendorff e o pensador inglês Thomas Hobbes ou anti
absolutista como queriam John Locke,
teórico liberal inglês e o filósofo prussiano Immanuel Kant, o Estado humanista,
como diz Rousas John Rushdooney, na
visão desses pensadores sempre é considerado capaz de agir em benefício do bem
comum, de estar acima de interesses parciais e limitados, e de, assim como
Deus, ser sempre justo em suas decisões. Obviamente, Rushdooney faz uma crítica
feroz, contundente e incisiva a tal concepção, inclusive comparando a
barbaridade jacobina de um Robespierre com a tirania dos Estados assassinos das
Repúblicas Populares Socialistas. Não causa surpresa que teólogos calvinistas que se debruçaram sobre
a questão do Estado e da necessidade de construir uma concepção cristã do
próprio como contraponto ao humanismo, tenham buscado na Revolução Francesa a
chave para a explicação e entendimento das implicações idólatras do Estado
moderno.
A derrocada do socialismo
real, como dito acima, não significou o fim da agenda ideológica do marxismo.
Reinventado que foi, ele insistentemente tem sido combatido por nós, cristãos
bíblicos, principalmente no formato que ele assume atualmente, denominado de
marxismo cultural. O termo foi cunhado para definir uma nova roupagem para uma
velha ideologia, pensada pelos próprios marxistas para responder não só
teoricamente, mas também praticamente a uma série de desafios às suas ideias,
especialmente a falência do modelo proposto e aplicado na URSS e seus satélites
políticos, a partir de meados do século XX.
Na perspectiva de Karl Marx e
de seus seguidores, o socialismo era uma verdade inexorável, que seria
infalivelmente vitoriosa ainda nos estertores do século XIX e no alvorecer do
XX. As contradições inerentes ao capitalismo, catapultadas pelo que eles julgavam
ser o motor dialético da História, a luta de classes, levariam a ruína do
capital e a vitória final do comunismo. A perspectiva clássica marxista era que
o conflito mortal entre a burguesia detentora da propriedade privada sobre os
meios de produção e o proletariado produtor da riqueza, mas alienado dela e do
resultado final de seu trabalho, geraria uma nova sociedade governada pelos
interesses do proletariado, o socialismo. Note que o socialismo, para os
marxistas, ainda não seria o fim da História; o fim só seria alcançado na
“plenitude” comunista, a perfeita e escatológica sociedade.
Marx não via sua doutrina como
ideologia. Para ele ideologia tinha um sentido bastante negativo, na medida em
que era uma ferramenta para falsear a realidade a serviço da classe dominante.
Ele a via como uma cosmovisão. Seus seguidores também a veem assim. Portanto,
acham-se capazes de explicar a totalidade do mundo a partir de suas suposições.
Fazendo assim os marxistas escapam de sua própria definição pessimista de ideologia,
removendo de sua doutrina o que eles
pensam ser uma inadequação, já que
ideologia adultera a realidade. Dessa maneira, elevam, arrogantemente, o
marxismo à condição de pensamento capaz de
elucidar toda a existência. O marxismo é
uma ideologia que possui um
fundamento religioso por mais paradoxal que possa parecer por ser idólatra,
gnóstico e oferecer um simulacro de redenção e de escatologia. Idólatra porque
retira Deus da Sua primazia; gnóstico porque enxerga parte da criação como
intrinsecamente má; falsamente redentor porque credita ao homem a auto redenção
e deposita no comunismo a esperança do fim da História.
No seu modo mais clássico, o
marxismo alimenta a ideia que todo modo de produção é formado por uma imbricada
teia de infra e superestrutura. Resumidamente, a infraestrutura seria a base
econômica e a superestrutura as relações sociais, políticas, jurídicas e
culturais. Em última análise, a infraestrutura determinaria a superestrutura.
Entretanto, essa visão materialista da História foi colocada em xeque ainda no
começo do século XX. Na Europa, o socialismo Fabiano, os reformistas da social
democracia, a própria Igreja Romana e as protestantes propuseram um caminho
distinto, marcadamente reformista e pacífico. Ao fim da primeira guerra, os
marxistas que esperavam uma explosão revolucionária tiveram que contentar-se
com a experiência russa de 1917, experiência que derrubou de vez o princípio
marxista clássico de que o socialismo se daria em um capitalismo plenamente
desenvolvido e prenhe de contradições. A revolução russa ocorreu em um país
agrário e atrasado. O que surgiu dessa experiência foi uma aberração
totalitária, burocrática e assassina, que recebeu o nome de marxismo-leninismo.
É assim, contextualizado, que
devemos entender o surgimento do chamado marxismo cultural ou neo marxismo. O
marxismo cultural nasceu da combinação dos pensamentos do marxista italiano
Antonio Gramsci e da Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais marxistas
que se reuniu nessa instituição para repensar o marxismo e sua aplicação.
Gramsci, após viver na URSS e de sua experiência sob o fascismo de Mussolini,
entendeu que era necessário uma releitura do marxismo, já que o modelo clássico
de Marx e a aplicação da doutrina na Rússia agrária foram um completo fracasso.
Ele percebeu que o proletariado tinha outras lealdades que não só de classe
(família, religião, esporte, etc.) e que havia sido "corrompido"
pelas "benesses" capitalistas e já não se encontrava tão disposto a
aventuras revolucionárias. Propôs, então, uma reavaliação que se traduziria na
inversão da equação infraestrutura determinando a superestrutura. O ponto
central a ser atacado não seria mais, segundo ele, as condições materiais ou
objetivas, mas as condições subjetivas, isto é, a cultura no seu sentido mais
amplo. Gramsci defendeu a formação do que ele chamou bloco histórico, formado
pelo proletariado, minorias oprimidas e intelectuais orgânicos, dirigido pelo
partido comunista. Tal bloco histórico deveria alcançar uma hegemonia cultural,
disputando com a burguesia os corações e mentes das "massas
oprimidas". A disputa pela hegemonia cultural seria a nova estratégia
revolucionária.
A Escola de Frankfurt absorveu
e aperfeiçoou a nova estratégia. Intelectuais marxistas como Max Horkheimer,
Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Erich Fromm, fundadores da instituição,
levaram adiante a ideia não só da subversão, mas da destruição da cultura,
através da desconstrução das tradições familiares, religiosas, políticas e
jurídicas. Um dos principais objetivos era e continua sendo destruir a crença
em Deus. Deus é o entrave que os impede de desorganizar, subverter e destruir a
cultura e as tradições. A estrutura familiar tradicional, conforme criada por
Deus, também deveria e deve ser, segundo eles, destruída. Os constantes e
agressivos ataques a heterossexualidade e
ao papel masculino numa sociedade chamada por eles de patriarcal, também
é parte da estratégia de destruição da ordem vigente. O feminismo
igualitarista, a teoria dos gêneros, o movimento negro radical, o
“ambientalismo” violento e a militância LGBT, fazem parte do pacote marxista
travestido de movimentos justos e aceitáveis. Todos eles têm em comum o fato de
sustentarem-se em minorias oprimidas e que seriam vítimas da opressão
capitalista. A agenda de tais movimentos é anticapitalista e claramente
marxista.
Fica bastante claro que as
manifestações do marxismo cultural em nossa época são indiscutíveis. O Brasil é
governado por marxistas que têm a perspectiva estratégica do marxismo cultural.
O PT a aplica com extrema eficiência; seus aliados são movidos pelo mesmo
objetivo. No entanto, o maior perigo para os crentes está na absorção desses
ideais revolucionários e antibíblicos pela Igreja. Desde o século XIX, a Igreja
tem sido permeável ao marxismo. Dói na carne constatar que um dos principais
veículos de propagação do marxismo nas Igrejas são pastores e teólogos de
confissão tradicional. Por exemplo, o Evangelho Social do pastor
americano/alemão Walter Rauschenbusch, no século XIX, que ao priorizar, mesmo
que bem intencionado, o papel social da Igreja (sob a pressão das péssimas
condições de vida durante a segunda revolução industrial) se equivocou ao
desfocar o objetivo da mesma, que é, sobretudo, adorar a Deus.
Na fé Romana, o marxismo
encontrou receptividade. Desde a publicação da encíclica Rerum Novarum pelo
papa Leão XIII, em 1891, os católicos já expressavam sua preocupação com as
questões sociais e, ao mesmo tempo, com a necessidade de responder aos desafios
propostos pelo marxismo numa Europa marcada pelas demandas sociais geradas pela
Revolução Industrial. Entretanto, é nos anos sessenta e certamente fruto das
tensões sociais, inquietações políticas e revolucionárias da época, que o
marxismo atuou mais intensamente na Igreja Católica, especialmente no Concílio
Vaticano II, que aprofundou as doutrinas sociais católicas, agora muito mais
influenciadas pelo liberalismo teológico e pelo próprio marxismo. As bases que
permitiriam o surgimento da Teologia da Libertação estavam dadas. Na América Latina,
liderados por teólogos católicos como Leonardo Boff, Jon Sobrino e Juan Luis
Segundo, a Teologia da Libertação aprofundava seu diálogo com o marxismo sob a
égide de que o evangelho exige a opção preferencial pelos pobres,
estigmatizando Jesus como um líder revolucionário e reduzindo-o a um ativista
político. A Teologia da Libertação foi responsável no Brasil pelo
aprofundamento do antibíblico e improvável diálogo entre cristianismo e o
marxismo. A partir dela foram lançadas as bases para o surgimento do PT e da
CUT, já que parte da liderança esquerdista brasileira nasceu nos movimentos
sociais católicos.
"A Teologia da Missão
Integral é uma variante protestante da Teologia da Libertação"! Essa
afirmação não é minha, mas de um dos principais teólogos da TMI (Teologia da
Missão Integral). A TMI é uma pretensa renovação missionária protestante na
América Latina, baseada na perspectiva do diálogo entre o marxismo e a Igreja
de Cristo, na necessidade de ampliar a tarefa missionária com ações sociais e na preocupação com as condições de vida do
evangelizado. Porém, não a partir das Escrituras, como deveria ser, mas de
pressupostos marxistas como classes sociais, luta de classes, estatismo e
consciência crítica. Os fundamentos da TMI e da TL são os mesmos: transformar o
evangelizado em um potencial soldado das transformações sociais. O missionário
cristão não deve, segundo eles, pregar a Palavra Redentora somente, mas
influenciar as organizações sociais e a consciência, tornando-a crítica e
anticapitalista, sob um verniz de caridade e atenção aos pobres. Não que Deus
não nos tenha ordenado cuidado com os mais pobres, mas o fez sob a lógica única
e inerrante de sua Palavra.
De qualquer maneira, diante
dos desafios postos a nossa frente, não é possível que não respondamos a
altura. Somos bombardeados todos os dias pela investida ideológica marxista. Na
construção do ideário coletivo, as mentes e corações se tornam cativos de uma
ideologia que é a base de toda cosmovisão humanista na atualidade. A resposta
deve estar em partirmos do pressuposto bíblico que tudo foi criado e vive sob a
soberania de Deus, revelada, como diz Dooyeweerd, na plenitude religiosa no
reino supratemporal de Cristo e destinada a refulgir a partir dessa comunidade
radical em todas as formas sociais temporais.
Abraham Kuyper é ainda mais
claro, quando afirma que num sentido calvinista nós entendemos que a família,
os negócios, a ciência, a arte e assim por diante, todas as esferas sociais que
não devem sua existência ao Estado, e que não derivam a lei de sua vida da
superioridade do Estado, mas obedecem a uma alta autoridade dentro de seu
próprio seio; uma autoridade que governa pela graça de Deus, do mesmo modo que
faz a soberania do Estado.
O Estado, o deus marxista, não
deve sobrepor sua soberania sobre outras soberanias. Elas devem ser autônomas,
interdependentes e sustentadas na universalidade coerente que compõem todas as
esferas da realidade temporal criada. Devem formar uma sociedade livre e capaz
de refletir a pluralidade da criação. Somos convocados a não restringir nosso
cristianismo a vida privada, destruindo, dessa forma, a coerência da criação,
mas a intervir na realidade a partir de pressupostos bíblicos capazes de
explicá-la completamente. Travamos um confronto entre princípios, como diz
kuyper!
Concluo afirmando que não há
possibilidade de um diálogo entre o marxismo e o cristianismo. São
fundamentados por pressupostos antagônicos e irreconciliáveis. O cristianismo
bíblico sustenta-se em uma premissa fundante, irrevogável, eterna e perfeita,
isto é, no próprio Deus. O marxismo é uma ideologia constitutiva de uma
cosmovisão antropocêntrica, essencialmente falha e idólatra. Os crentes, por
sua vez, devem se preocupar e se envolver com a política, mesmo porque cremos
que tudo pertence à soberania de Deus e tudo o que Ele fez é bom. A ideia
falaciosa de que há partes na criação que são estruturalmente más deve ser
evitada. Calvino, nas "Institutas", via com apreço a ideia de que o
governo civil sendo servo de Deus devia ser considerado e obedecido, desde que
não fosse tirânico e impertinente com a lei divina. Para o cristão reformado
não há separação entre o sagrado e o profano, por isso, debater e intervir
politicamente na sociedade é saudável e vital. Temos uma contribuição fundamental
para dar, especialmente porque confessamos uma doutrina que não se restringe a
esfera eclesiástica e dogmática, mas que prima pela concepção total da criação
como obra perfeita de um Deus amoroso e soberano. Kuyper em sua obra
"Calvinismo" diz, esclarecedoramente, que o impulso religioso
do calvinismo também colocou debaixo da sociedade política uma concepção
fundamental toda própria dele, precisamente porque ele não apenas podou os
ramos e limpou os troncos, mas alcançou a própria raiz da vida humana.
Evidentemente que nossa
intervenção deve ser balizada pela Palavra de Deus. Se estivermos fundamentados
nEla, nossas predileções partidárias, nossas escolhas políticas e nosso voto
excluem qualquer possibilidade de aproximação com partidos de esquerda ou com
posições de extrema direita inclinadas ao fascismo e a violência. No fim, todas
as coisas devem ser feitas para glória de Deus, inclusive a política. Mesmo que
nenhum sistema econômico ou regime político sejam perfeitos em razão da queda,
podemos nos voltar para políticos e propostas que se aproximem da vontade
soberana de Deus, irrevogavelmente encontrada nas Escrituras Sagradas.
SOLI DEO GLORIA!
NOTAS:
1. Herman Dooyeweerd. Estado
e Soberania
2. Abraham Kuyper. Calvinismo
3. João Calvino. As
Institutas
4. Rousas John Rushdoony. O Ateísmo na Igreja Primitiva
Autor: Davi Peixoto