Texto
base: Marcos 8.22-26
INTRODUÇÃO
Depois do episódio da primeira
multiplicação de pães e peixes (6.30-44), Jesus recomenda aos discípulos que
embarquem para Betsaida, onde mais tarde se juntaria a eles. Em vez disso, os
discípulos desembarcam em Genesaré (6.53). Após encontrar com os discípulos,
Jesus percorre vários lugares naquela região, a fim de evangelizar e curar os
enfermos (6.53-56; 7.1-23). Por conseguinte, Jesus e os discípulos seguem para
as regiões de Tiro e Sidom (7.24.37) para realizarem a obra de Deus. Mais
tarde, chegam a Betsaida, onde
havia ocorrido o milagre da alimentação dos cinco mil (Lc 9.10; Mc 8.22-26).
Todavia, existem duas cidades
chamadas Betsaida. A primeira era uma cidade que ficava localizada ao oeste do
mar da Galiléia e ao Sul de Cafarnaum (Mt 11.21). A segunda, por sua vez, era
uma pequena “aldeia” (vs.23) que havia se tornado uma cidade (Lc 9.10), sendo
chamada de Betsaida Júlia, em homenagem a filha do imperador César Augusto. Foi
reedificada por Felipe, o tetrarca (Lc 3.1). Ficava localizada ao norte do mar
da Galiléia e a leste do rio Jordão, perto de Cafarnaum. Era a cidade natal de
Felipe, André e Pedro. Tendo sido uma “vila” por um longo tempo, Betsaida ainda
continuou a ser chamada de “aldeia” por algum tempo.
A cura do cego de Betsaida é singular. Aparece
somente no evangelho de Marcos. Sendo assim, o esboço analítico desta perícope
pode ser dividido em três aspectos:
1) A incapacidade de ir até Jesus (8.22)
2) A cura para a cegueira espiritual é uma obra soberana de Deus
(8.23-25)
3) Uma solene recomendação (8.26)
ARGUMENTAÇÃO
1) A incapacidade de ir até Jesus (8.22)
Alguns homens trazem um cego
até Jesus e suplicam a ele que o tocasse, para que tivesse a visão restituída.
Havia um índice bastante considerável de cegueira naquela região. “A cegueira
era uma das grandes maldições do oriente. Era provocada por forte resplendor
do sol e também por falta de higiene pessoal”.1
Podemos observar no texto a
fé daqueles que trouxeram o cego até Jesus. Eles não duvidaram de que apenas um
toque do Senhor poderia restaurar a visão dele. Não é relatado que o cego de Betsaida demonstrou fé como outros cegos que foram curados por Jesus demonstraram (Mt
20.29-34).
APLICAÇÃO PRÁTICA
A cegueira espiritual é tão
funesta quanto à cegueira física. O diabo cegou o entendimento dos incrédulos
para que não enxerguem a luz do evangelho que liberta e transforma vidas (2Co
4.4; Jo 8.32). Eles não podem ver Jesus. Como aqueles homens trouxeram o cego
até o Senhor e intercederam por ele, devemos levar os cegos espirituais até
Jesus. Esse é o papel da igreja. Como fazer isso? Evangelizando! E assim rogar
ao Senhor que restaure a visão deles através do novo nascimento.
2) A cura para a cegueira espiritual é uma obra soberana de Deus
(8.23-25)
Jesus pega o cego pela mão e o
leva para fora da aldeia. Qual foi a razão de Cristo levar esse homem para fora
da aldeia? O texto não relata o motivo, porém existem algumas possibilidades. Talvez
Jesus não quisesse que uma multidão fosse atrás dele rogando-lhe por curas. Ou
quisesse proteger o cego, para que ele ficasse mais à vontade e convergisse
toda sua atenção nele. Ou, ainda, “porque a cidade de Betsaida já havia sido
julgada por sua incredulidade (Mt 11.21-24), e não receberia mais outra
demonstração do poder de Deus”.2
As três alternativas são
possíveis, especialmente a terceira. No entanto, em conexão com o evento de
7.33 – a cura de um homem surdo e gago – onde Jesus retira o homem da multidão,
acredito que a segunda alternativa é a mais plausível.
Jesus costumava curar uma
pessoa liberando uma palavra, como no caso do paralítico de Cafarnaum (Mc
2.1-12), do jovem possesso (Mc 9.14-29), do servo do centurião de Cafarnaum,
que estava doente (Lc 7.2-10), o filho da viúva de Naim, que estava morto e
ressuscitou (Lc 7.11-17), a mulher que esteve encurvada por dezoito anos (Lc
13-11-16), entre outros casos. No presente episódio, Jesus aplica saliva nos
olhos do homem cego. Temos aqui o mesmo procedimento que ele utilizou na cura
do homem surdo e gago. O Senhor aplicou saliva na língua dele (7.31-37). “O
mundo antigo tinha uma curiosa crença no poder curativo da saliva”.3
Em seguida, Jesus impõe as mãos sobre o cego. A imposição das mãos indicava uma
ação que antecedia a cura, sendo assim um indício de esperança para aquele
homem.
Após realizar todo o
procedimento, Jesus pergunta ao cego se ele enxergava alguma coisa. É
interessante observar que, em nenhum outro relato de cura, Jesus pergunta
alguma coisa ao doente. Geralmente ele curava a pessoa de imediato (veja
5.34; 7.29).
Prosseguindo, depois de recuperar
a visão, o homem outrora cego responde, dizendo que via homens, provavelmente
os discípulos, mas como árvores que andavam. A cura da cegueira foi parcial. Aquele
homem estava com o discernimento visual indefinido, ambíguo, pois enxergava os
homens como árvores (vs.24). A visão daquele homem ainda estava obscurecida;
contudo, “sua percepção ou observação mental foi correta: aqueles objetos que
estavam se movendo eram, de fato, pessoas. Ele não era um cego de nascença. Consequentemente,
ele conhecia a aparência das pessoas”.4
Não obstante, Jesus impõe as mãos
sobre o homem mais uma vez, que passou a enxergar nitidamente. A visão dele foi
plenamente restaurada (vs.25). Hendriksen observa que esse ato de cura não está, de
maneira alguma, de acordo com as curas lentas dos nossos dias, que requerem
várias visitas ao “médico”. No caso aqui registrado, o processo completo de
cura aconteceu em alguns momentos, alcançando um resultado pleno: a mudança de
uma cegueira total para uma visão perfeita.5
Normalmente, as curas realizadas
por Jesus eram imediatas e completas, mas aqui, temos uma situação diferente,
insólita: uma cura progressiva, incompleta. Wiersbe salienta que os evangelhos registram a
cura de pelo menos sete homens cegos e mostram que Jesus usou várias
abordagens. Talvez pelo ambiente de incredulidade de Betsaida (veja 6.5-6), talvez
pela própria condição espiritual do ser humano, ou por alguma outra razão
desconhecida, o homem não estava pronto a enxergar instantaneamente, de modo
que Jesus o restaurou gradualmente.6
Por outro lado, Calvino
ressalta que Jesus não curou aquele cego instantaneamente, como ele geralmente
costumava a fazer, com o propósito de provar, no caso deste homem, que tinha
plena liberdade em sua maneira de proceder, e não foi restringido a uma regra
fixa, de modo a não recorrer a uma variedade de métodos no exercício de seu
poder.7
Matthew Henry, de modo similar,
escreve que Jesus não queria prender-se a um único método, mas queria mostrar
com que liberdade Ele agia, em tudo o que fazia. Ele não curava de acordo com
uma regra, e segundo um roteiro, mas de modo variado, conforme julgasse
adequado. A Providência chega ao mesmo fim de diversas maneiras, para que o
homem possa atender aos seus impulsos com uma fé implícita.8
APLICAÇÃO PRÁTICA
O Senhor Jesus não está
limitado a uma só forma de curar. Muitos crentes pensam que Jesus cura somente de
forma sobrenatural, imediata e sem meios. Estão enganados! Deus e´soberano! Conforme vimos, uns
ele curou liberando uma palavra, outros tocaram nele, como a mulher que sofria de uma hemorragia há doze anos (Mt 9.20-22; Mc 5.24-34; Lc 8.43-48), e alguns ele mesmo tocou, como aquele homem surdo e gago e o cego de
Betsaida. Houve casos, porém, em que Jesus exigiu fé para que a cura acontecesse (veja
alguns exemplos em Mt 15.21-28; Mc 10.46-52; Lc 8.43-48; 17.11-19),
e em outros casos ele mesmo decidiu curar sem exigir a fé do doente (veja
alguns exemplos em Mt 12.9-15;
Lc 22.51; Jo 5.1-3, 5-9; 9.1-12, 35-38; 11.1-46).
Além de curar de modo
sobrenatural, sem o auxílio de meios, Jesus também pode curar uma pessoa
utilizando medicamentos, que são formas de cura. É possível! Imagine um
tratamento que duraria cerca de um ou dois meses para que a pessoa ficasse totalmente
curada. Como resposta de oração, o Senhor pode antecipar o processo de cura
total para quinze ou vinte dias. A pessoa ficaria restabelecida em menos
tempo. Deus não é menos soberano porque decide curar pessoas utilizando meios,
nem a cura através de meios é inferior à cura sobrenatural. Os dois modos de
cura são demonstrações multiformes do agir providencial de Deus na vida de cada
um de nós.
Ora, no caso do homem de Betsaida, podemos observar que ele viveu três fases: a cegueira, a visão
parcial e a visão perfeita. Antes de nossa conversão, estávamos cegos. “Não
enxergávamos o Senhor”! Cristo é a luz que veio para dar vista aos cegos
espirituais. O evangelho é a luz que ilumina e dissipa as nossas trevas!
Após a conversão, enxergamos,
mas parcialmente. Esta é a condição do crente antes da glorificação, que se
dará por ocasião do regresso de Cristo. “Vemos o Senhor”, sabemos discernir
entre o que agrada e desagrada a Deus, entre o que é certo e pecado, mas ainda
não o vemos perfeitamente, claramente (1Co 13.12). Nossa visão e entendimento
são limitados por causa do pecado que ainda reside em nossa natureza humana.
Quando foram chamados por
Jesus, os discípulos já não eram mais cegos espirituais; enxergavam, mas não
claramente, pois ainda não entendiam os propósitos de Deus, que Jesus tinha que
morrer, e que, no terceiro dia, ressuscitaria (Lc 9.44-45; 18.31-34). Mas com o
tempo, depois da ressurreição e ascenção de Jesus, do pentecostes, os apóstolos
passaram a ver as coisas de Deus com muito mais clareza. O amadurecimento é um
processo gradativo que perdura a vida toda.
O mesmo acontece hoje. Apesar
de não sermos mais cegos espirituais, ainda não vemos algumas coisas nitidamente.
Muitos crentes, especialmente os pentecostais e neopentecostais, têm uma visão ofuscada de Deus. Possuem um entendimento confuso
sobre vários aspectos teológicos, sobre doutrinas essenciais da fé, sobre eclesiologia,
teologia do culto e vida cristã. Em consequência disso, são equivocados em
muitas questões.
Depois da glorificação, nossa
visão será perfeita. Veremos o Senhor nitidamente! Estaremos livres da presença
do pecado e de erros que ainda turvam a nossa visão!
3) Uma solene recomendação (8.26)
Após ser curado, Jesus tece
duas advertências ao homem que era cego. Primeiro, ordena que ele vá embora
para a sua casa, segundo, que ele não entre na aldeia novamente. Este homem não
era de Betsaida. Portanto, qual a razão destas admoestações? Talvez Jesus não
quisesse que as pessoas o vissem como um “milagreiro”, “provedor de alimento” e
um revolucionário político, mas sim, como o divulgador do evangelho e redentor
de pecadores. Essa era a sua missão (1.44; 7.36).
Com efeito, não sabemos o
motivo de Jesus ter sugerido que o homem fosse para a sua casa e não entrasse
na aldeia. “Entretanto, é possível que, ao enviar esse homem direto para sua
casa, Jesus também tenha tido em mente o interesse do próprio homem, que queria
ir para casa, e meditar calmamente na grande bênção que tinha recebido. Teria também
a chance de testemunhar, sem interferência, para aquelas pessoas mais próximas
a ele, e juntos, poderiam glorificar a Deus (5.16)”.9
APLICAÇÃO PRÁTICA
Conforme vimos, Betsaida foi
uma cidade marcada pela incredulidade. Decerto, a aldeia representa o mundo descrente, a sociedade afastada de Deus.
Após ter sua visão restaurada, Jesus orientou aquele homem a ir para a sua casa
e não entrar na aldeia. Da mesma forma, nós, que tivemos nossa visão espiritual
restaurada pela regeneração, não devemos voltar a nos envolvermos com as coisas
do mundo que são contrárias aos padrões de Deus estabelecidos na Escritura. Não
devemos regressar para uma vida de pecados e de companhias indevidas (2Co 5.17;
Ef 4,17-19, 25-29; 1Ts 4.7; 1Pe 1.14-16)!
CONCLUSÃO
A conversão é uma iluminação,
uma mudança das trevas para a luz, da cegueira para a visão do reino de Deus. No
entanto, poucas pessoas, logo ao se converterem, veem as realidades espirituais
de forma distinta. A natureza e a proporção das doutrinas, das práticas e das
ordenanças do evangelho, são percebidas de forma ofuscada e são imperfeitamente
compreendidas.
Os recém-convertidos são como o
cego que este relato enfoca, o qual, a princípio, via os homens como árvores
andando. A visão dos recém-convertidos mostra-se ofuscada e desacostumada com o
novo mundo ao qual foram introduzidos. Somente depois que a atuação do Espírito
aprofunda-se, é que a experiência deles, em alguma medida, amadurece, e
tornam-se capazes de ver as coisas com maior clareza e de dar a cada aspecto da
religião cristã o seu devido lugar.10
NOTAS:
1. Barclay. Marcos, pág 191.
2. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico do Novo Testamento,
volume 1, pág 178.
3. Barclay. Marcos, pág 191.
4. Hendiksen. Evangelho
de Marcos, pág 410.
5. Ibid, pág
411.
6. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico do Novo Testamento,
volume 1, pág 178.
7. Calvin. Comentary
on Matthew, Mark, Luke, volume 2, pág 242. Grand Rapids, MI: Christian
Classics Ethereal Library.
8. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Novo Testamento, Mateus
a João, pág 447.
9. Hendiksen. Evangelho de Marcos, pág 411.
10. J. C. Ryle. Meditações no Evangelho de Marcos, pág 100-101.
Autor:
Leonardo Dâmaso
Divulgação:
Reformados 21