Já discutimos sobre os efeitos
devastadores da Queda sobre a conduta humana. Primeiro, vimos que a Queda perverteu
a imagem de Deus segundo a qual o homem havia sido criado e que, em consequência
disso, a pessoa humana agora age pecaminosamente em sua relação com Deus, com
os outros e com a natureza.1 A seguir, discorri sobre a
universalidade do pecado2 e mostrei, em continuação, que a condição dos
seres humanos após a Queda, à parte da graça redentora de Deus, é de depravação
generalizada e de incapacidade espiritual.3
Se essas descrições são
verdadeiras, a vida na terra hoje, a nosso ver, teria de ser virtualmente
impossível. Por causa da Queda, cada ser humano é fundamentalmente egocêntrico
e sem amor, odiando Deus, odiando os outros e devastando a natureza. Se isso
fosse tudo, o que existe hoje não passaria de um inferno na terra.
É interessante observar que
tem havido ultimamente uma mudança de pensamento na avaliação da conduta dos
seres humanos. Houve um tempo no pensamento ocidental em que a natureza humana
era idealisticamente descrita como fundamentalmente boa, e os seres humanos
eram considerados capazes de conduta nobre e altruísta, desde que recebessem
correta instrução e formação. Essa ideia foi ensinada por diversos teólogos
liberais nas primeiras décadas do século XX.4 Mas essa visão
romântica e otimista da natureza humana não está mais em voga. Começando com as
obras de Walter Rauschenbusch ( 1861-1918) e, depois, com os escritos de Karl
Barth (1886-1968) e Reinhold Niebuhr (1893-1971), surgiu uma visão muito mais
realista do homem como fundamentalmente pecaminoso e egocêntrico. Esse
pensamento sóbrio e não lisonjeiro tem encontrado eco também entre romancistas
mais recentes e tem aparecido em outras obras além das de ficção, nas quais a
natureza humana é apresentada como pecaminosa e hipócrita.5
Ilustra também essa mudança um
livro fascinante, publicado em 1966, Shantung Compound, escrito por Langdon
Gilkey.6 Gilkey era um teólogo liberal que aprendeu no seminário que
o homem era fundamentalmente bom e altruísta. Durante a Segunda Grande Guerra,
foi preso e mantido pelos japoneses em um campo de concentração na China.
Designado para cuidar do alojamento, Gilkey tentou melhorar as condições de
vida no campo, que reunia pessoas de diferentes países, apelando à generosidade,
prestatividade e boa vontade dos demais prisioneiros. Mas foi tudo em vão. Para
seu espanto, aprendeu, por meio de muitas experiências frustrantes, que os
seres humanos são fundamentalmente egocêntricos, muito embora não gostem de
admiti-lo. A vida provou que a sua teoria estava errada. Uma frase inesquecível
resume a sua conclusão: “Tais humanistas que afirmam que os homens são
naturalmente sábios e suficientemente bons para serem virtuosos pareciam-me ser
continuamente refutados pela manifesta persistência do ruinoso egoísmo entre
pessoas de boas intenções”.7
É preciso concordar, pois, à
luz do ensino bíblico e da observação humana, que o homem decaído é
fundamentalmente egocêntrico. Em vista disso, homens e mulheres precisam ser
regenerados, passar por uma mudança básica de comprometimento e de um novo
centro de lealdade para que possam viver a vida altruísta para a qual Deus os
chama.
Deparamos, nesse momento, com
um problema. Vivendo neste mundo, não parece que experimentamos, ao menos não
de forma consistente, a maldade e depravação humanas como descritas acima.
Muitos de nós temos bons vizinhos. Constatamos que, na maioria das vezes, podemos
confiar em pessoas com quem fazemos negócios. Muitas vezes, conhecemos pessoas –
e nem todas são cristãs – que parecem ser amáveis, prestativas e altruístas.
Como é possível explicar isso? Que explicação se pode dar para a bondade que,
em certa medida, constatamos nos seres humanos, para a verdade parcialmente
presente nos escritos dos incrédulos, para a quase perfeição estética produzida
por músicos, pintores, poetas e escritores que não são, ao que sabemos,
cristãos?
Agostinho tinha uma resposta a
essa pergunta. Quando seus adversários pelagianos mencionavam as virtudes dos
pagãos, chamava tais virtudes de "vícios esplêndidos" (splendida
vitia), visto não serem praticados para a glória de Deus, mas em função de
amor-próprio e louvor humano.8
Calvino, no entanto, embora
estivesse basicamente de acordo com Agostinho, não estava inteiramente
satisfeito com essa resposta. Estava tão profundamente convencido da
pecaminosidade e corrupção do homem decaído quanto Agostinho. Mas Calvino
fazia mais uma pergunta: como se pode explicar os rudimentos de verdade,
bondade, beleza, civilização e ordem que encontramos neste mundo caído e pecaminoso?
Certamente não podemos atribuir tais coisas à capacidade natural do homem,
visto que é incapaz de fazer qualquer bem por sua própria força. Devemos,
portanto, necessariamente atribuir tais coisas boas à graça de Deus – uma graça
que restringe o pecado na humanidade decaída muito embora não remova a
pecaminosidade do homem. Calvino distinguiu essa graça da graça particular e
salvadora pela qual a natureza do homem é renovada e, dessa forma, ele é
capacitado a voltar-se para Deus em fé, arrependimento e grata obediência.
Embora Calvino mesmo tenha usado vários termos para descrever a graça geral de
Deus que refreia o pecado sem renovar os seres humanos, teólogos posteriores na
tradição Reformada vieram a chamá-la graça comum.
A
doutrina da graça comum
Seguem alguns exemplos de como
Calvino descreveu a operação da graça comum:
Mas, aqui, deve-nos ocorrer
que no meio desta corrupção de nossa natureza há algum lugar para a graça de
Deus; não para a graça no tocante a purificá-la, mas a restringi-la
interiormente. Assim, Deus, por sua providência, refreia a perversidade natural
para que não irrompa em ação; mas não a purifica interiormente.9
Seguem-se, então, as artes,
tanto as liberais como as manuais. O poder da sagacidade humana também se
mostra no aprendizado dessas porque todos nós temos certa aptidão. Em vista
disso, com boa razão somos compelidos confessar que seu princípio [isto é, o
princípio de aptidão ou talento nas artes] é inato à natureza humana. Pois essa
evidência claramente testifica em favor de uma apreensão universal de razão e
entendimento implantados por natureza nos homens. No entanto, tão universal é
esse bem que cada ser humano está obrigado a, nele, reconhecer por si mesmo a
singular graça de Deus.10
Sempre que deparamos com essas
coisas [contribuições de valor na arte e na ciência] em autores seculares,
permitamos que esta admirável luz de verdade que brilha neles nos ensine que a
mente humana, embora inteiramente decaída e pervertida, é, não obstante, revestida
e ornada com os dons excelentes de Deus. Se considerarmos o Espírito de Deus
como a única fonte da verdade, não rejeitaremos a própria verdade, nem a
desprezaremos onde quer que ela apareça, a menos que desejemos desonrar o
Espírito de Deus. Pois, tomando os dons do Espírito em pouca conta, desdenhamos
e difamamos o próprio Espírito.11
Podemos resumir aqui o que
Calvino diz nessa última citação: (1) os incrédulos podem ter a luz da verdade
brilhando neles; (2) os incrédulos podem estar revestidos dos dons excelentes
de Deus; (3) toda verdade vem do Espírito de Deus; (4) portanto, rejeitar ou
desprezar a verdade quando proferida por incrédulos é insultar o Espírito Santo
de Deus. Num outro lugar, Calvino diz:
Não nego que todas as notáveis
qualidades que se manifestam entre os incrédulos sejam dons de Deus... Pois
existe tamanha diferença entre o justo e o injusto que ela aparece mesmo em
seus retratos. Porque, se confundimos essas coisas, que ordem restará no mundo?
Por isso, o Senhor não só gravou a distinção entre atos honrados e ímpios na
mente dos próprios homens, mas também a confirma muitas vezes pela dispensação
de sua providência. Pois vemos que concede muitas bênçãos da vida presente
sobre aqueles que cultivam virtudes entre os homens ... Todas essas virtudes – ou
antes, imagens de virtudes – são dons de Deus, visto que nada é de algum modo
louvável que não venha dele.12
Calvino, portanto, realizou um
trabalho inédito nessa área do pensamento teológico. Embora não tenha
apresentado uma doutrina da graça comum plenamente elaborada, ensinou
claramente que há uma graça de Deus que restringe a manifestação do pecado na
vida humana sem remover a pecaminosidade humana, permitindo que incrédulos
profiram muitas verdades (mesmo embora eles não conheçam a verdade) e produzam
muitos frutos culturais que são bons.13
Um dos teólogos reformados
modernos que fez contribuições significativas para a doutrina da graça comum é
Herman Bavinck. Por ocasião de sua posse como diretor do Seminário Teológico da
Gereformeerde Kerken [Igreja Reformada] na Holanda, na cidade de Kampen em
1894, proferiu um discurso presidencial (rectorale rede) intitulado Graça Comum
(De Algemeene Genade). Em seu discurso, expôs o seguinte: a doutrina da graça
comum fundamenta-se nas Escrituras, foi ensinada pela primeira vez por Calvino
e é ainda de grande importância e valor. As citações seguintes indicarão o quão
importante era essa doutrina para Bavinck:
Desta graça comum procede tudo
que é bom e verdadeiro que ainda vemos no homem decaído. A luz ainda brilha nas
trevas. O Espírito de Deus vive e trabalha em tudo o que foi criado. Logo, ainda
permanecem no homem certos traços da imagem de Deus. Há ainda intelecto e
razão; todas as espécies de dons naturais ainda estão presentes nele. O homem
ainda tem uma percepção e uma impressão da divindade, uma semente da religião.
A razão é um dom inestimável. A filosofia é um dom admirável de Deus. A música
também é um dom de Deus. As artes e as ciências são boas, proveitosas e de alto
valor. O estado foi instituído por Deus... Há ainda uma aspiração por verdade e
virtude, também pelo amor natural entre pais e filhos. Em assuntos que dizem
respeito a esta vida terrena, o homem é capaz ainda de fazer muitas coisas
boas... Pela doutrina da graça comum os Reformados têm, por um lado, mantido o
caráter específico e absoluto da religião cristã, mas, por outro lado, ninguém
os tem ultrapassado em sua valorização do que for bom e belo como dádivas de
Deus aos seres humanos pecaminosos.14
O pecado é um poder, um
princípio que penetrou profundamente em todas as formas de vida criada...
Teria, caso entregue a si mesmo, devastado e destruído tudo. Mas Deus interveio
com sua graça. Pelo uso da graça comum, Deus restringe o pecado em sua ação
desintegradora e destrutiva. Mas essa [espécie de graça] ainda é insuficiente.
Ela subjuga, mas não muda; ela restringe, mas não domina.15
Dez anos depois dessa preleção
de Bavinck, seu ilustre contemporâneo, Abraham Kuyper, publicou o primeiro
volume do mais extenso tratado sobre a graça comum já escrito, De Gemeene
Gratie (Graça Comum).16 O Volume I, contendo a seção histórica, é um
estudo bíblico-teológico que traça a história da graça comum desde a aliança
com Noé até o final da era do Novo Testamento, sendo que os capítulos finais
tratam da importância da graça comum para a vida futura. O Volume II, o volume
doutrinário, discute a relação entre a graça comum e a criação, a predestinação,
a história
do mundo, a igreja, a providência, a maldição e a cultura. O Volume III, a
seção prática, aplica o conceito de graça comum a tópicos como governo, igreja
e estado, família, educação e sociedade.
G. C. Berkouwer, que trata da
doutrina da graça comum no capítulo 5, "Corruption and Humanness"
[Corrupção e Natureza Humana], de Man: The Image of God [Homem: a Imagem de
Deus], reconhece a contribuição de Kuyper para o estudo da graça comum. Segundo
Berkouwer, Kuyper
segue os passos de Calvino em
sua ideia da graça geral ou graça comum de Deus... Segundo Kuyper, esse ensino forma
uma parte indispensável da doutrina reformada. Tem sua origem na confissão do
caráter mortal do pecado e não de alguma tentativa de relativizar a extensão da
corrupção. Kuyper, semelhantemente a Calvino, está encantado com as belas e
imponentes realizações humanas fora da igreja. Esse fato inegável, diz Kuyper,
coloca-nos diante do aparente dilema de ou negar todas essas realizações ou,
então, de ver o homem como não sendo, apesar de tudo, totalmente decaído. Mas
a doutrina reformada recusa-se a escolher qualquer uma das alternativas do
dilema. Por um lado, esse bem não pode e não deve ser negado; por outro lado, a
inteireza da corrupção não pode ser diminuída. Há somente uma solução: que a
graça está em ação mesmo no homem decaído, para reprimir a destruição que é
inerente ao pecado.17
Os que reconheceram que a
graça comum existe, diz Berkouwer,
quiseram levar em conta o fato
de que na vida real não encontramos uma antítese entre a maldade absoluta e a
santidade perfeita, mas que mesmo na vida dos incrédulos podem se ver ações que
revelam inegável semelhança às boas obras dos que creem.18
Nem todos os teólogos
reformados, no entanto, concordaram com Calvino, Bavinck e Kuyper sobre a
questão da graça comum. Nos Estados Unidos, os pastores reformados Herman
Hoeksema e Henry Danhof não reconheceram o conceito da graça comum como
bíblico. Sua posição, brevemente afirmada, era a seguinte: (1) A graça de Deus
é sempre particular e nunca comum. Somente os eleitos (os escolhidos para a
salvação desde a eternidade) recebem graça da parte de Deus; os não-eleitos,
chamados "reprovados", não recebem graça de Deus. (2) Não existe algo
como uma graciosa restrição do pecado da parte de Deus nas vidas das pessoas
"reprovadas". (3) Os irregenerados não podem fazer o bem de forma
alguma. Mesmo as assim chamadas virtudes dos irregenerados, porque erroneamente
motivadas, são realmente pecado.19
Seguiu-se um acalorado debate
em tomo dessa questão na Igreja Cristã Reformada, refletida pela publicação de
muitos artigos, panfletos e livros sobre esse assunto. Discordando de Hoeksema
e Danhof, o Sínodo de 1924 da Igreja Cristã Reformada da América do Norte
adotou os três pontos seguintes: (1) Há, além da graça salvadora de Deus
demonstrada somente aos que foram eleitos para a vida eterna, também um certo
favor ou graça de Deus para com as suas criaturas em geral. (2) Deus restringe
o pecado na vida do indivíduo e na sociedade. (3) Os irregenerados, embora
incapazes do "bem salvador" [uma espécie de bem do qual uma pessoa
regenerada é capaz] podem realizar o "bem civil" (burgerkijk goed)
[um tipo relativo de bem que se conforma a certas normas externas de conduta
social].20
A Igreja Cristã Reformada,
portanto, por meio dessas decisões, apoiou o conceito da graça comum e rejeitou
as idéias de Hoeksema e Danhof. Esses pastores, juntamente com os seus
seguidores, vieram a formar em seguida uma nova denominação, as Igrejas
Protestantes Reformadas na América.
Houve discussões sobre a
doutrina da graça comum também na Holanda. Nas décadas de 30 e 40 deste século,
Klaas Schilder, professor de Dogmática no Seminário Teológico da Gereformeerde
Kerken [Igreja Reformada] da Holanda em Kampen, publicamente criticou a
doutrina na forma como Kuyper a tinha defendido. A posição de Schilder era, na
verdade, bastante similar à de Herman Hoeksema. Schilder desaprovou a expressão
graça comum (algemeene genade) com base no fato de que, em seu julgamento, o
termo graça como empregado na Escritura sempre indica o perdão de pecados. O
fato de que os efeitos da maldição de Deus sobre a humanidade decaída são de
algum modo aliviados não é visto por Schilder como uma evidência da graça de
Deus. A prolongação da história humana após a Queda não é devida à graça
divina. Não há qualquer graça de Deus que restringe o pecado no irregenerado. A
doutrina da graça comum, afirma, enfraquece o ensino bíblico a respeito da
depravação e tende a introduzir o conceito de "território duplo" –
isto é, a ideia de que, além do mundo decaído em que reina o pecado, existe um
tipo de território neutro no qual os efeitos do pecado são minimizados e no
qual a antítese entre fé e descrença é negada.21
As ideias de Schilder levaram
à ampla discussão e debate. O Sínodo Geral da Gereformeerde Kerken [Igreja
Reformada] que se reuniu entre 1940 e 1943 discordou de Schilder e seus
seguidores na questão da graça comum e adotou o seguinte parecer com quatro
afirmações sobre o assunto: (1) Que Deus, em sua longanimidade, ainda tolera
este mundo decaído a despeito de sua ira contra a pecaminosidade do homem,
fazendo o bem a todos os seres humanos. (2) Que Deus fez permanecer no homem
certos pequenos remanescentes dos dons originais da criação e uma certa luz da
natureza, embora essa luz seja insuficiente para a salvação. (3) Que esses
remanescentes e bênçãos servem para restringir o pecado temporariamente, de
modo que as possibilidades dadas na criação original ainda possam
desenvolver-se de certa forma neste mundo pecaminoso. (4) Que Deus, desse modo,
demonstra bondade imerecida a bons e maus – uma bondade que chamamos de graça
comum (algemeene genade ou gemeene gratie ), a qual, no entanto, devemos
distinguir da graça salvadora revelada àqueles que foram dados a Cristo pelo
Pai.22
Base
bíblica para a graça comum
A Bíblia ensina a existência
de uma graça de Deus que restringe o pecado na vida daqueles que não são seu
povo? Eu creio que sim. Vejamos algumas passagens relevantes da Escritura.
Gênesis 20 nos relata o
episódio da breve estadia de Abraão na terra dos filisteus. Depois que Abraão
disse que sua esposa, Sara, era sua irmã, o rei filisteu, Abimeleque, tomou
Sara com a intenção de incluí-la em seu harém. Mas, certa noite, Deus disse a
Abimeleque em sonho que não tocasse em Sara sob pena de morte, uma vez que era
uma mulher casada. Quando Abimeleque protestou dizendo que havia tomado Sara
acreditando ser ela irmã de Abraão, Deus lhe disse: Bem sei que com sinceridade de coração fizeste isso; daí o ter impedido
eu de pecares contra mim e não te permiti que a tocasses (Gn 20.6).
Abimeleque não era, obviamente, um crente. Todavia, Deus o impediu de pecar. O
fato de Deus ter prometido a Abimeleque que Abraão intercederia por ele naquela
noite para que não morresse (v.7) indica que essa restrição do pecado era um
ato gracioso da parte de Deus.
Em sua carta aos Romanos,
Paulo descreve o que acontece àqueles que, embora tivessem conhecimento de
Deus, não o glorificaram como Deus:
Por isso, Deus entregou (no
grego, paredoken) tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio
coração, para desonrarem o seu corpo entre si... Por causa disso, os entregou
Deus a paixões infames... E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o
próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem
coisas inconvenientes (Rm 1.24, 26, 28).
No verso 18 deste capítulo,
Paulo nos diz que a ira de Deus se revela do céu contra a impiedade e perversão
de homens e mulheres que suprimem a verdade. No que se refere a tal supressão
da verdade, são indesculpáveis "porquanto o que de Deus se pode conhecer é
manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou" (v. 19). Porque
recusaram-se a glorificar a Deus como Deus, muito embora tivesse se revelado a
eles na natureza, Deus os entregou à impureza sexual, a paixões infames e a muitos
outros tipos de conduta pecaminosa e arrogante. Três vezes nesses versículos,
Paulo emprega a forma aoristo paradoken,
que significa: os "entregou" ou "abandonou" aos seus
próprios pecados. O tempo aoristo do verbo paradidomi
indica que houve épocas específicas na vida dessas pessoas quando esse
"abandonar" ou "entregar" aconteceu. Isso implica
claramente que, antes desse "entregar", Deus estava restringindo a
manifestação do pecado em suas vidas; num determinado ponto, contudo, essa
restrição foi retirada. Charles Hodge, comentando esta passagem, diz o
seguinte: "Ele [Deus] retira do ímpio a restrição de sua providência e
graça, e os entrega ao domínio do pecado".23
Um das maneiras pelas quais o
pecado é refreado na vida dos seres humanos é pelas penas impostas pelo estado
sobre criminosos e outros transgressores da lei - punições tais como multas,
sentenças de prisão e, algumas vezes, inclusive a pena de morte. Como Paulo
mostra,
os magistrados não são para
temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a
autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro
de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem
motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar
o que pratica o mal (Rm 13.3-4).
Quando Paulo nos diz aqui que
toda autoridade humana é ministro de Deus, ele evidentemente indica que Deus é
quem, por meio de tais autoridades, está restringindo o pecado.
De maneira semelhante, Pedro
escreve:
Sujeitai-vos a toda
instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano; quer
às autoridades, como enviadas por ele [isto é, pelo rei], tanto para castigo
dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem (l Pe 2.13-14).
A punição dos transgressores -
certamente um meio pelo qual o peca- do é refreado, embora imperfeitamente e, algumas
vezes, até contraproducente – é, conforme se diz aqui, executada pelas autoridades
governantes que foram enviadas pelo rei. Mas Pedro urge a seus leitores a submeterem-se
a tais autoridades governantes "por causa do Senhor", indicando que
as autoridades em geral foram estabelecidas dentre os humanos pela providência
de Deus e que, portanto, por intermédio de seu governo, Deus está restringindo
o pecado.
Em sua segunda carta aos
Tessalonicenses, Paulo discorre sobre a segunda vinda de Cristo. Diz aos seus
leitores que a segunda vinda não ocorrerá até que "o homem da iniquidade"
(a quem a maioria dos intérpretes identifica com o anticristo mencionado nas
epístolas de João) seja revelado (2.3). Paulo menciona também um poder que
agora detém o aparecimento deste homem da iniquidade:
E, agora, sabeis o que o
detém, para que ele seja revelado somente em ocasião própria. Com efeito, o
mistério da iniquidade já opera e aguarda somente que seja afastado aquele que
agora o detém (2 Ts 2.6- 7).
Paulo não nos diz quem ou o
que está detendo a manifestação do homem do pecado. O que causa perplexidade
aqui é que Paulo fala desse restringir ou deter tanto de forma pessoal como
impessoal: E, agora, sabeis, o que o detém (v.6) e aquele
que agora o detém (v.7). Não podemos identificar o poder ou pessoa que
está restringindo o homem do pecado, mas está claro nessa passagem que há um
poder ou uma pessoa que o detém. Além do mais, uma vez que a aparição do homem
da iniquidade introduzirá um período de grande impiedade, no qual um homem proclamará
a si próprio como Deus (v. 4) e a obra de Satanás se evidenciará em toda
espécie de mal (vv. 9-10), não há dúvida de que deter essa encarnação da
impiedade equivale a restringir o pecado. Que o controle gracioso de Deus está
por trás dessa restrição é tão óbvio que sequer se precisa mencionar.24
Os
meios pelos quais o pecado é refreado
Quais os meios pelos quais
Deus refreia o pecado? Frequentemente se diz que os seres humanos, por sua
própria razão e vontade, estão capacitados a refrear o pecado e a praticar
certas virtudes. Esta foi, em geral, a posição defendida pelos teólogos
escolásticos. Tomás de Aquino, por exemplo, cria que a razão do homem é capaz
de controlar suas paixões inferiores. Embora possa haver alguma verdade nessa
ideia, ela deve ser considerada deficiente por, no mínimo, duas razões.
Primeira, ela é individualista demais – se refreia mais o pecado pela coação
social do que pelo raciocínio de um indivíduo.
Como se demonstrou acima,25
muitas vezes, usamos nossa razão simplesmente para justificar as coisas
erradas que queremos fazer, um processo que os psicólogos chamam de
racionalização. A razão, portanto, pode ser usada tanto para defender uma ação
má como para evitá-la. Um trapaceiro esperto é realmente mais perigoso do que
um tolo.
Um importante meio pelo qual
Deus refreia o pecado naqueles que não são seu povo é pela revelação geral, que
tem um impacto sobre a consciência de cada ser humano. A revelação geral é um
termo teológico que quer dizer a revelação que Deus faz de si mesmo por meio da
natureza, dirigida a toda a humanidade e cujo objetivo é a revelação de
suficiente conhecimento de Deus para tornar homens e mulheres indesculpáveis
quando não servem nem glorificam a Deus. Em sua carta aos Romanos, Paulo
descreve o papel da revelação geral no refreamento do pecado:
Quando, pois, os gentios que
não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei,
servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma de lei gravada nos
seus corações, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos,
mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2.14-15).
Os gentios, ao contrário dos
judeus que pertencem ao povo do pacto com Deus, não têm lei – isto
é, não têm a lei de Moisés e estão vivendo fora da esfera da revelação da graça
salvadora de Deus encontrada nas Escrituras. O que Paulo quer dizer quando diz
que naquele tempo tais gentios "procedem por natureza de conformidade com
a lei" (ta tou nomou, lit. "as coisas da lei")? Não diz que
esses gentios são capazes de guardar a lei por um motivo interior de amor a
Deus e com o propósito de glorificar a Deus. Primeiro, ressalta que os gentios
fazem coisas requeridas pela lei – enfatiza, portanto, ações exteriores e não
alguma motivação interior. Segundo, Paulo não diz que eles guardam a lei (o que
requereria conformidade interior tanto quanto exterior à lei) mas, apenas, que
eles fazem as coisas da lei, isto é, que fazem certas coisas exteriores
prescritas pela lei. Terceiro, diz que eles fazem as coisas requeridas pela lei
por natureza (phusei). A expressão por natureza descreve esses gentios como eles
são em si mesmos, à parte da graça regeneradora e santificadora de Deus. Mas
as Escrituras ensinam claramente que, sem a graça regeneradora, ninguém pode
sequer começar a guardar a lei de Deus em seu sentido interior (ver, por
exemplo, Rm 8.7-8). Por conseguinte, o que esses gentios são capazes de fazer
por natureza necessariamente exclui a possibilidade de verdadeira obediência
interior à lei, revelando um tipo de obediência que não é movida pelo amor a
Deus mas que apenas se conforma exteriormente a certos preceitos da lei.
Literalmente traduzidas, as
palavras leem: estes, não tendo lei, são para si mesmos lei (houtoi
nomon me echontes heautois eis in nomos). Em outras palavras, embora esses
gentios não tenham a lei de Moisés, há dentro deles uma lei que eles devem
reconhecer; nós podemos chamar isso, se quisermos, de lei natural. Essa lei é
o impacto da revelação geral de Deus sobre a consciência deles. A evidência
para isso é que eles mostram a norma da lei [to ergon tou nomou, lit.,
"a obra da lei"] gravada nos seus corações (v. 15). Paulo não
diz que esses gentios revelam a lei escrita em seus corações, como se diz do
povo de Deus redimido (Jr 31.33), mas que eles mostram a obra da lei escrita em
seus corações. Sempre que os gentios fazem por natureza as coisas requeridas
pela lei, Paulo diz aqui, eles mostram que há em seus corações um efeito
produzido pela lei que os faz reconhecer certos tipos de conduta exterior como
boas e alguns outros tipos como más. Que lei é esta? A lei expressa na
revelação geral de Deus, que até aos gentios ensina que há uma diferença entre
certo e errado, e que o errado é punido e o certo é recompensado.
Na última parte do verso 15,
Paulo nos diz que esses gentios também possuem uma consciência que julga seus
atos à luz dos padrões morais que eles reconhecem. Dessa forma, a consciência
deles revela o impacto da revelação geral de Deus sobre eles.
Dessa passagem, aprendemos que
os gentios são capazes por natureza de certa conformidade exterior
à lei de Deus por causa do impacto da revelação geral de Deus sobre a sua consciência.
Essa conformidade exterior, sem dúvida, não deve ser confundida com aquela
obediência à lei de Deus da qual mesmo os crentes possuem apenas um pequeno
começo, mas indica que, por meio da revelação geral, Deus restringe o pecado na
vida daqueles que não são seu povo.
Os Cânones de Dort, um credo
calvinista adotado pelo Sínodo Holandês de Dordrecht (1618-1619), confessaram esse refreamento do pecado pela revelação geral de Deus numa
afirmação que ecoa Romanos 2.14-15. Ao invés de falar a respeito da revelação geral,
contudo, os Cânones mencionam "a luz da natureza", sem dúvida indicando
que essa luz está disponível a todo ser humano. O artigo atesta não só o fato
de que mesmo pessoas irregeneradas são capazes de certa "virtude e
disciplina exterior" (supondo, dessa forma, um certo refreamento do
pecado), mas também a insuficiência espiritual de semelhante conduta e a perversão
dessa luz natural pelo ser humano pecador:
Resta no homem, após a Queda,
sem dúvida, uma certa luz da natureza [lumen ali quod naturae] por meio da
qual ele conserva certas ideias a respeito de Deus [notitias quasdam de Deo],
das coisas naturais, da distinção entre o que é digno e o que é indigno, e
mostra algum zelo por virtude e disciplina exterior [aliquod virtutis ac
disciplinae externae studium ostendit]. Tão longe está essa luz da natureza,
contu do, de possibilitar que ele chegue ao conhecimento salvífico de Deus [ad
salutarem Dei cognitionem] e dele se converter a Deus que nem sequer a usa
corretamente nos assuntos naturais e civis. Ao contrário, ele a corrompe
totalmente – ainda que ela não fosse perfeita – de muitas formas, suprimindo-a
pela injustiça. Ao fazer isso, ele torna-se indesculpável diante de Deus.26
Um outro meio pelo qual Deus
refreia o pecado na vida humana é por meio dos diferentes tipos de punição ao erro
impostas pelo governo humano por meio de leis, códigos de conduta e medidas
coercitivas pelas quais se faz cumprir essas leis. Esse ponto já foi comentado
acima.
G. C. Berkouwer menciona um
terceiro meio pelo qual o pecado é refreado na sociedade humana, que ele chama
de mede-menselijkheid. Esse termo é difícil de traduzir; literalmente,
traduz-se "co-humanidade", mas talvez fosse melhor traduzido como
"relacionamentos sociais". O que Berkouwer quer dizer é isto: uma vez
que o homem nunca existe em isolamento, mas sempre inserido em determinada
relação com outros seres humanos, seu pecado é refreado por esse relacionamento.
Por exemplo, muitas vezes deixamos de cometer um erro que porventura
estivéssemos inclinados a cometer porque somos casados com alguém a quem tal
ato magoaria, ou porque nossa má ação poderia fazer nossos filhos sofrerem,
ou, talvez, porque envergonhariam nossos pais. Somos, algumas vezes, impedidos
de pecar porque temos vizinhos e colegas de trabalho que observam atentamente
as nossas ações, e porque gozamos de uma boa reputação entre os que convivem
conosco a desejamos mantê-la. Deixamos de fazer coisas más porque temos amigos
que ficariam profundamente ofendidos por tal conduta de nossa parte. Todavia,
como Berkouwer nos adverte, esse vínculo social nem sempre evita que pequemos,
visto que, algumas vezes, toda a sociedade em que vivemos pode ser tão corrupta
a ponto de exercer uma influência negativa sobre nós.27 Temos em
mente, por exemplo, o modo como o povo da Alemanha (com algumas exceções memoráveis)
cegamente seguiu seu Fuhrer [Guia] em seu programa demoníaco de assassínio e destruição
durante os anos da guerra nazista.
NOTAS:
1.Ver, acima, capítulo 5, pp.
99-101.
2. Ver acima, pp. 159-161.
3. Ver, acima, capítulo 8, pp.
168-173.
4. Por exemplo, Samuel Z. Batten, que escreveu The Social Task of Christianity em 1911;
Washington Gladden (1836-1918); George D. Herron (1862-1925); e Arthur Cushman
McGiffert (1861-1933).
5. Ver, acima, p. 159.
6. New York: Harper and Row, 1966.
7. Shantung Compound, pp. 229-30.
8. City of God,
Livro 5, Capítulos 12-20, Nicene and Post-Nicene Fathers, primeira série, vol.
2 (reimpressão; Grands Rapids: Eerdmans, 1983); On Marriage and Concupiscense, 1.4.
9. As lnstitutas, Livro 2.3.3 [em português: trad. de Waldyr Carvalho Luz
(São Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
1985), pp. 50-51].
10. lbid., 11.2.14 [pp.31-32].
11. lbid.,
11.2.15 [p. 32].
12. Institutes, Ill.14.2.
13. Para uma análise mais
completa das ideias de Calvino sobre esse tópico, ver Herman Kuiper, Calvin on Common Grace (Grand Rapids:
Smiller Book Co., 1928).
14. H. Bavinck, De Algemeene Genade (Grand Rapids:
Eerdmans-Sevensma, 1922), p. 17 (citado pelo autor em tradução própria para o
inglês).
15 lbid., p. 27 (citado pelo autor em tradução própria para o inglês).
Ver também o capítulo de Bavinck, Calvin and Common Grace em Calvin and the Reformation, org. por Wm.
P. Armstrong (New York: Revell, 1909). 16 A obra completa teve três
volumes. Foi publicada por Hoveker e Wormser em Amsterdam entre 1902 e 1904.
17. Man, pp. 152-53.
18. De Mens het Beeld Gods (Kampen: Kok, 1957), p. 166 (citado pelo
autor em tradução própria para o inglês).
19. Essas ideias foram apresentadas nas seguintes
obras: H. Danhof e H. Hoeksema, Van Zonde en Genade (Kalamazoo: Dalm, 1923); H.
Hoeksema, A Tripie Breach in the Foundation of Reformed Truth (Grand Rapids: C.
J. Doorn, 1924); H. Hoeksema, The Protestant Reformed Churche.i in America,
Part li (1936; Grand Rapids: pelo próprio autor, 1947); H. Hoeksema, Reformed
Dogmatics (Grand Rapids: Reformed Free Publishing Association, 1966).
20. (Traduzido para o inglês e
condensado pelo autor) O texto completo desses três pontos podem ser encontrados
em Acts of Synod of the Christian
Rweformed Church – 1924, pp. 145-47.
21. Ver K. Schilder, Is the Term Algemeene
Genade" Wetenschappelijk Verantwoord? (Kampen: Zalsman, 1947);
esse volume reuniu duas preleções, uma de 1942 e outra de 1946. Cf. seu Heidelbergsche Catechismus, vol. 1 (Goes:
Oosterbaan en Le Cointre, 1947), pp. 175 e seg., 116-20, 278, 284, 295,
109-110.
22. (Traduzido para o inglês e
condensado pelo autor) O texto completo dessa declaração, que foi adotada em
1942, pode ser encontrado em Acta van de Voortgezette Generale Synode van de
Gereformeerde Kerken in Nederland, 1940-43, pp. 95-96.
23. Commentary
on the Epistle to the Romans (1886; Grand Rapids: Eerdmans, 1964), p. 40.24.
Sobre
a questão sobre quem detém o homem da iniquidade, ver, do autor, A Bíblia e o Futuro (São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 1989), cap. 12. Ver também H. Ridderbos, Paul, trad. de John R. De Witt (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp.
521-26.
25. Ver, acima, p. 194.
26. Os Cânones de Dort,
lll-IV.4 (citado pleo autor em tradução própria par o inglês). As citações do
texto latino são extraídas de J. N. Bakhuizen Van den Brink, De Nederlandsche
Belijdenisgeschriften (Amster dam: Holland, 1940), p. 246.
Autor:
Anthony Hoekema
Trecho extraído do livro Criados à Imagem de Deus, pág 208-221.
Editora: Cultura Cristã