23 de setembro de 2016

O Princípio Regulador do Culto


Simplificando, o princípio regulador do culto afirma que a adoração corporativa a Deus deve estar fundamentada sobre direções específicas das Escrituras. Superficialmente, é difícil ver porque qualquer pessoa que valoriza a autoridade das Escrituras iria considerar tal princípio censurável. Toda a nossa vida não é para ser vivida de acordo com a regra da Escritura? Este é um princípio árduo ao coração de todos os que se dizem cristãos bíblicos. Sugerir o contrário é abrir a porta para o antinomianismo e a licenciosidade.

Mas as coisas raramente são tão simples. Afinal, a Bíblia não me diz se eu posso ou não posso ouvir com proveito a uma sinfonia de Mahler, encontrar uma coleção de selos gratificantes, ou desfrutar de um trabalho como investigador como uma ocupação útil, mesmo que haja boa intenção, mas os que creem na Bíblia equivocadamente afirmam com uma dogmática confiança que qualquer uma destas coisas infringe a vontade de Deus. Conhecer a vontade de Deus em qualquer circunstância é uma função importante na vida de cada cristão, e fundamental para saber que é uma vontade de submissão à Escritura como Palavra autorizada de Deus para todas as idades e circunstâncias. Mas, o que exatamente significa a autoridade bíblica em tais circunstâncias? 

Bem, a Escritura estabelece requisitos específicos. Por exemplo, devemos adorar com o povo de Deus no Dia do Senhor, e devemos nos envolver em um trabalho útil e ganhar o nosso pão de cada dia. Em adição, cobrindo todas as circunstâncias possíveis, a Escritura estabelece um princípio geral:

[...] apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (Rm 12.1-2)

Claramente, toda a vida é para ser regulamentada pela Escritura, seja por mandamento expresso, proibição ou pelo princípio geral. Não é, portanto, em certo sentido, um princípio regulador para toda a vida. Em tudo o que fazemos, e de alguma forma ou de outra, devemos ser obedientes às Escrituras.

Contudo, os reformadores (João Calvino, especialmente) e os teólogos de Westminster (como representantes do puritanismo do século XVII), viram o assunto da adoração corporativa de maneira diferente. Neste caso, um princípio geral de obediência às Escrituras é insuficiente; deve haver (e é) uma prescrição específica sobre como Deus deve ser adorado corporativamente. No culto público a Deus, requisitos específicos são feitos, e nós não temos liberdade para ignorá-los ou adicionar algo a eles. Uma típica formulação disso está nas palavras de Calvino: “Deus rejeita todos os modos de culto que não sejam expressamente sancionados pela sua Palavra” (A Necessidade de Reformar a Igreja); e da Segunda Confissão Batista de Londres de 1689:

A maneira aceitável de adorar ao verdadeiro Deus é instituída por ele mesmo e tão limitada pela sua própria vontade revelada, de modo que ele não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, nem por sugestões de Satanás, sob qualquer representação visível, ou de qualquer outra forma não prescrita nas Sagradas Escrituras (22.1).

Onde a Bíblia ensina isso? Em mais lugares do que é comumente imaginado, incluindo a determinação constante no livro do Êxodo, que diz respeito à construção do tabernáculo, que tudo seja feito “segundo o padrão mostrado a vós” (Êx 25.40.); a sentença pronunciada sobre a oferta de Caim, sugerindo como a sua oferta (ou seu coração) era deficiente de acordo com o requerimento de Deus (Gn 4.3-8); o primeiro e o segundo mandamento demostram um cuidado especial de Deus com respeito à adoração (Êx 20. 2-6.); o incidente do bezerro de ouro ensina o que o culto não pode ser oferecido apenas baseado em nossos próprios valores e gostos; a história de Nadabe e Abiú e a oferta de “fogo estranho” (Lv 10); a rejeição de Deus do culto não prescrito de Saul. Deus disse: [...] obedecer é melhor do que sacrificar (1 Sm 15.22.); e a rejeição de Jesus ao culto farisaico de acordo com a “tradição dos anciãos” (Mt 15.1-14). Todos estes exemplos indicam uma rejeição de cultos oferecidos baseados em valores e em direções opostas do que está especificado nas Escrituras.

De particular importância são as respostas de Paulo a adoração pública transviada em Colossos e Corinto. Em um ponto, Paulo caracteriza o culto público em Colossos como ethelothreskia (Cl 2.23), variavelmente traduzido como “vá adorar” (KJV) ou “minha própria religião” (ESV). Os colossenses haviam introduzido elementos que eram claramente inaceitáveis (mesmo que eles tenham alegado uma fonte angelical por suas ações – uma interpretação possível de Cl 2.18, o “culto dos anjos”). Talvez seja na prática (ou abuso) de línguas e profecias em Corinto que encontramos a mais clara indicação da vontade do apóstolo de “regular” a adoração corporativa. Ele regula tanto o número quanto a ordem do uso dos dons espirituais de uma forma que não se aplica a “todos”: nenhuma língua deve ser falada sem um intérprete (1 Co 14. 27-28); e apenas dois ou três profetas podem falar, cada um por sua vez (v. 29-32). No mínimo, a instrução de Paulo aos Coríntios sublinha que a adoração corporativa deve ser regulamentada de tal forma que se aplique de maneira diferente do que é verdadeiro para todos.

O resultado? Elementos particulares do culto são ressaltados, como leitura da Bíblia (1 Tm 4.13); pregação da Bíblia (2 Tm 4.2); canto da Bíblia (Ef 5.19; Cl 3.16) – os Salmos, bem como canções bíblicas que refletem o desenvolvimento da história da redenção no nascimento, vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus; orando a Bíblia – a casa do Pai é uma “casa de oração” (Mt 21.13); e considerando a Bíblia nos dois sacramentos da igreja – o batismo e a Ceia do Senhor (Mt 28.19; At 2.38-39; 1 Co 11.23-26; Cl 2.11-12.). Ademais, elementos ocasionais, como juramentos, votos, jejuns solenes e ações de graças, também foram reconhecidos e destacados (veja a Confissão de Fé de Westminster, 21.5).

É importante compreender que o princípio regulador aplicado ao culto público libera a igreja de atos de incongruência e estupidez. Não somos livres, por exemplo, para anunciar que palhaços performáticos irão mimar a lição da Bíblia no culto de domingo da próxima semana. Contudo, ele não faz da igreja um “cortador de biscoito”, um marasmo litúrgico. Dentro de uma aderência ao princípio, há um enorme espaço para a variação, matéria em que a Escritura não tem tratado especificamente (adiáfora).

Destarte, o princípio regulador, como tal, não pode ser evocado para determinar se canções contemporâneas ou tradicionais devem ser empregadas, se três versos ou três capítulos da Bíblia devem ser lidos, se uma oração longa ou várias orações curtas devem ser feitas, ou se um único copo ou copos individuais com o verdadeiro vinho ou suco de uva devem ser utilizados na Ceia do Senhor. Para todas estas questões, o princípio “todas as coisas devem ser feitas com decência e ordem” (1 Co 14.40) deve ser aplicado.

No entanto, se alguém sugere que a dança ou o teatro é um aspecto válido do culto público, a seguinte pergunta deve ser feita: onde está a justificação bíblica para isso? (Sugerir que um pregador que se desloca sobre o púlpito ou que emprega vozes “dramáticas” é um “teatro”, no sentido acima, é banalizar o debate.) O fato de que tanto pode ser (para empregar o coloquialismo) “puro” é discutível e irrelevante; não há nenhum traço de evidência bíblica, muito menos ordenança para qualquer um. Por isso, é supérfluo argumentar a partir da poesia dos Salmos ou do exemplo de Davi dançando diante da arca (nu, com certeza), a menos que estejamos dispostos a abandonar todas as regras recebidas da interpretação bíblica. É um fato salutar que nenhum cargo de “coreógrafo” ou “produtor/diretor” existia no templo. O fato de que ambos – dança e teatro – são atividades cristãs válidas, também não vem ao caso.

O que as vezes é esquecido nestas discussões é o papel importante da consciência. Sem o princípio regulador, estamos à mercê de “líderes de louvor” e da opressão de pastores que exigem adoradores inconformados em desagradar a Deus, a menos que participem de acordo com um determinado padrão e conduta. Para as vítimas de tais “ditadores”, as frases mais doces nunca foram escritas por homens.

Só Deus é o Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e dos mandamentos de homens, que, em qualquer coisa, sejam contrários à Sua Palavra ou que em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. De modo que, acreditar em tais doutrinas, ou obedecer a esses mandamentos, por motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência; requerer para eles fé implícita e obediência cega e absoluta é destruir a liberdade de consciência e a própria razão (CFW, 20.2).   

A obediência, quando é uma questão de prescrição expressa de Deus, é a verdadeira liberdade; qualquer outra coisa é escravidão e legalismo.




Autor: Derek Thomas
Tradução: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21



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