18 de agosto de 2016

Arrependimento


A questão foi discutida: o que vem primeiro, a fé ou o arrependimento? É uma questão desnecessária, e a insistência de que um antecede o outro é fútil. Não há prioridade. A fé que é para a salvação é uma fé penitente, e o arrependimento que é para a vida é um arrependimento crente. O arrependimento é admiravelmente definido no Breve Catecismo: “Arrependimento para a vida é uma graça salvadora, pela qual o pecador, tendo uma verdadeira consciência de seu pecado e percepção da misericórdia de Deus em Cristo, se enche de tristeza e de aversão pelos seus pecados, os abandona e volta para Deus, inteiramente resolvido a prestar-lhe nova obediência”. A interdependência da fé e do arrependimento é facilmente percebida quando nos lembramos de que a fé é fé em Cristo para a salvação do pecado. Porém, se a fé é dirigida para a salvação do pecado, deve haver ódio pelo pecado e o desejo de ser salvo dele. Tal ódio pelo pecado envolve o arrependimento que consiste essencialmente em voltar-se do pecado para Deus. 

Repetindo, se nos lembramos de que o arrependimento é voltar-se do pecado para Deus, este voltar-se para Deus subentende fé na misericórdia de Deus como revelada em Cristo. É impossível desvencilhar a fé do arrependimento. A fé salvadora é permeada com o arrependimento, e o arrependimento é permeado com a fé. A regeneração se verbaliza em nossas mentes através do exercício da fé e do arrependimento.

O arrependimento consiste essencialmente de uma mudança de coração, mente e vontade. A mudança de coração, mente e vontade se refere, principalmente, a quatro coisas: é uma mudança de mente acerca de Deus, acerca de nós mesmos, acerca do pecado e acerca da justiça. Sem a regeneração o nosso conceito de Deus, de nós mesmos, do pecado e da justiça é radicalmente pervertido. A regeneração muda os nossos corações e mentes; ela os renova radicalmente. Daí ocorre uma mudança radical em nosso pensamento e sentimento. As coisas antigas passaram, e todas as coisas e fizeram novas. É muito importante observar que a fé que é para a salvação é a fé que é acompanhada por essa mudança de pensamento e atitude. Mui frequentemente, nos círculos evangélicos e especificamente no evangelismo popular, a mudança momentânea que a fé assinala não é compreendida e apreciada. Existem duas falácias. Uma põe a fé fora do único contexto que lhe dá sentido, e a outra considera a fé em termos de simples decisão, e, infelizmente, uma decisão desvirtuada. Estas falácias se relacionam e condicionam uma à outra. A ênfase sobre o arrependimento e a profunda mudança de pensamento e sentimento que ela envolve é precisamente o que é necessário para corrigir este empobrecido e mortífero conceito de fé. A natureza do arrependimento serve para acentuar a urgência dos resultados em jogo na exigência do evangelho, a separação do pecado que a aceitação do evangelho impõe, e a perspectiva totalmente nova que a fé do evangelho comunica.

Não devemos conceituar o arrependimento como que consistindo simplesmente de uma mudança geral de mente; ela é mui particular e concreta. E visto que esta é uma mudança mental com respeito ao pecado, ela é tuna mudança mental com respeito a pecados particulares, pecados que em toda a sua particularidade e individualidade pertencem aos nossos pecados. É-nos tão fácil falar de pecado, ser denunciantes do pecado, e denunciantes dos pecados particulares de outras pessoas, porém não conseguimos ser penitentes acerca de nossos próprios pecados particulares. A prova de arrependimento está no fato de nosso arrependimento ser genuíno e resoluto no tocante aos nossos próprios pecados, pecados caracterizados pelas agravações que são peculiares a nós próprios. No caso dos tessalonicenses, o arrependimento manifestou-se no fato de terem eles deixado os ídolos a fim de servir ao Deus vivo e verdadeiro. Foi a sua idolatria que particularmente evidenciou a sua alienação de Deus, e foi o arrependimento em relação ao pecado que provou a genuinidade de sua fé e de sua esperança (1Ts 1.9-10).

O evangelho não é apenas o fato de que pela graça somos salvos por meio da fé, mas ele é também um evangelho de arrependimento. Quando Jesus, após sua ressurreição, abriu o entendimento dos discípulos para que pudessem entender a Escritura, ele lhes disse: “Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu nome se pregasse arrependimento para a remissão de pecados, a todas as nações” (Lc 24.46-47). Quando Pedro pregou à multidão por ocasião do Pentecostes e os ouvintes foram constrangidos a peguntar: “Que faremos, irmãos?”, Pedro respondeu: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados (At 2.37-38). Mais tarde, de uma forma semelhante, Pedro interpretou a exaltação de Cristo como exaltação à posição de Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados (At 5.31). Pode-se comprovar mais claramente que este é o evangelho de arrependimento pelo fato de o ministério celestial de Jesus como Salvador ser aquele de conceder o arrependimento e a remissão de pecados? Assim Paulo, ao dar relatório de seu próprio ministério aos presbíteros de Éfeso, declarou que testificava tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo (At 20.21). O escritor da epístola aos Hebreus indica que o “arrependimento de obras mortas” é um dos primeiros princípios da doutrina de Cristo (Hb 6.1). Não poderia ser de outra forma. A nova vida em Jesus Cristo significa que as algemas que nos prendiam ao domínio do pecado são quebradas. O crente está morto para o pecado pelo corpo de Cristo, o velho homem foi crucificado, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirva mais ao pecado (Rm 6.2,6). Este rompimento com o passado registra-se em sua consciência, pelo abandono do pecado a fim de servir a Deus “com o pleno propósito de praticar uma nova obediência”.

Vemos, pois, que a ênfase que a Escritura dá à fé como condição de salvação não pode ser interpretada como se a fé fosse espírito têm a sua própria função particular. O arrependimento é aquele que descreve a decisão de abandonar o pecado e viver para Deus. Este é o seu caráter específico, assim como o caráter específico da fé é receber e descansar somente em Cristo para a salvação. O arrependimento nos faz lembrar de que se a fé que professamos é aquela que nos permite andar nos caminhos deste mundo maligno, na concupiscência da carne, na concupiscência dos olhos e na soberba da vida, na comunhão com as obras das trevas, então a nossa fé é antes uma zombaria e decepção. A fé verdadeira se mistura com o quebrantamento. E assim como a fé não é apenas um ato momentâneo, antes é uma atitude contínua de dependência e confiança direcionadas para o Salvador, assim o arrependimento resulta em constante contrição. O espírito quebrantado e o coração contrito são as marcas permanentes da alma crente. Enquanto o pecado permanecer, deve haver consciência dele, e esta convicção de nossa própria pecaminosidade nos conduz à autorrepugnância, confissão e súplica por perdão e purificação. O sangue de Cristo é a fonte da purificação inicial, e também a fonte na qual o crente deve renovar-se continuamente. O arrependimento tem o seu início na cruz de Cristo; e é ao pé da cruz que ele continua derramando o seu coração em lágrimas de confissão e tristeza. O caminho da santificação é o caminho da tristeza pelo pecado do passado e do presente. O Senhor perdoa os nossos pecados, e este perdão é selado pela luz de seu semblante. Porém, não somos perdoados por nós mesmos.



Autor: John Murray
Trecho extraído do livro Redenção Consumada e Aplicada, pág 127-130. Editora: Cultura Cristã