Existe outra maneira da ação
divina em atos como esses. Para que essa nos evidencie com certeza maior, temos a calamidade infligida pelos caldeus ao santo Jó 41.20: mortos seus
pastores, os caldeus saqueiam-lhe hostilmente os rebanhos (Jó 1.17). Destes, o
ato ímpio já abertamente se ostenta; nem nesta operação deixa de ter parte
Satanás, de quem a história narra provir tudo isso (Jó 1.12). Mas, o próprio Jó
reconhece nisso a ação do Senhor, a quem diz haver-lhe tirado as coisas que
tinham sido pilhadas pela instrumentalidade dos caldeus (Jó 1.21).
Temos, pois, de atribuir, por seu autor, o mesmo ato a Deus, a Satanás e ao homem, sem escusarmos a Satanás, mercê de sua associação com Deus, ou a Deus qualificarmos de autor do mal? Facilmente, se atentarmos primeiro para o fim, então, para o modo do agir. O desígnio do Senhor é exercitar pela calamidade a paciência de seu servo. Satanás está empenhado em levá-lo ao desespero; os caldeus buscam, fora do direito e da ética, auferir ganho da coisa alheia. Tão grande diversidade nos intentos já distingue sobejamente a operação de cada um.
Não há diferença no
modo do agir. O Senhor permite a Satanás que seu servo seja afligido, concede e
entrega, para que os caldeus sejam impelidos por ele, a quem escolheu por
ministros para que executem isto. Satanás, por outro lado, com seus aguilhões
envenenados, espicaça o espírito depravado dos caldeus para que perpetrem esta
abominação; estes se arrojam furiosamente à injustiça e atrelam e contaminam
nessa perversidade a todos os seus membros. Portanto, diz-se com propriedade
que Satanás age nos réprobos, nos quais exerce seu domínio, isto é, o reino da
iniquidade.
Também se diz que Deus opera,
a seu modo, pelo que o próprio Satanás, como é instrumento de sua ira, por seu
arbítrio e império se verga para cá e para lá a executar-lhe os justos juízos.
Não estou aqui a considerar a operação universal de Deus, pela qual todas as
criaturas são daí sustentadas, portanto donde derivam a capacidade de fazer
tudo quanto fazem. Estou falando somente dessa operação especial que se mostra
em cada ato.
Logo, vemos que não é absurdo atribuir o mesmo ato a Deus, a Satanás e ao homem; ao contrário, a diversidade no propósito e na maneira faz com que reluza aqui, sem culpa, a justiça de Deus; com seu opróbrio se manifesta a impiedade de Satanás e do homem.
Autor: João
Calvino
Trecho extraído das Institutas, volume 2, capítulo 4, pág 77.
Editora: Cultura Cristã