A providência se ocupa apenas
da conservação e sustentação das coisas ou também de seu governo (mediante o
qual Deus mesmo age e concorre eficazmente com elas por meio de um concurso não
geral e indiferente, mas particular, especifico e imediato)? Negamos a primeira
e afirmamos a segunda, contra os jesuítas, os socinianos e os remonstrantes.
I. Essa questão tem duas
partes: a primeira concernente à conservação das coisas; a segunda concernente
ao seu governo. A providência de Deus é comumente descrita por esses dois atos.
Conservação é aquilo pelo qual Deus conserva todas as criaturas em seu próprio
estado (o que é feito por uma manutenção da essência nas espécies, da
existência nos indivíduos e das virtudes em suas operações). Governo é aquilo
pelo qual Deus administra universais e particulares, bem como as dirige e as
atrai para fins preordenados por ele.
Estabelecimento
da questão
II. Quanto à primeira, a
questão não é se a providência de Deus se preocupa com a conservação das
coisas. Isso é reconhecido por ambas as partes. A Escritura o ensina (Ne 9.6;
Sl 36.6; 104.27,29; Hb 1.3; At 17.28) e a razão o prova. Como as coisas não
poderiam ter sido feitas sem Deus, assim tampouco poderiam subsistir sem ele
sequer por um momento; do contrário, seriam independentes, o que é
característica exclusivamente de Deus. Mas a questão é se toda a relação da
providência consiste nessa conservação e nisto que Deus dá às causas secundárias
e nelas conserva o poder de agir e lhes permite agir; ou se consiste também no
governo por meio do qual Deus pessoalmente age e eficazmente concorre com suas
criaturas.
Opinião
de Durandus
III. Aqui a controvérsia é com
Durandus e com alguns dentre os romanistas que concordam com ele. Eles colocam
a providência e o concursos divinos apenas nisto – na criatura, previamente
criada com a capacidade de agir, ele meramente conserva a energia e permite que
aja à revelia (como se fosse por si só suficiente para agir). Louis Dola assim
o explica: “Para Deus, concorrer é criar o livre-arbítrio, como em atos
naturais, ou, nos sobrenaturais, dar a potência da condição de agir ou não
agir, pelo qual a própria vontade efetua tudo no próprio ato sobrenatural, e
sem qualquer outro concurso de Deus positivamente impelindo à ação” (Disputa- tio ... de modo coniunctionis
concursum Dei et creaturae [1634]+). Ele achou esse comentário tão bom que
acreditou que seria o único meio adequado para a remoção das controvérsias que foram
movidas ao longo de tantos anos entre os dominicanos e jesuítas sobre o método
do concurso divino.
Dos
Jesuítas
IV. Os jesuítas (embora
confessem que a providência de Deus não consiste na mera conservação das
coisas, mas também no influxo e concurso de Deus), não obstante (quando chegam
à explicação do concurso) a defendem somente como geral e indiferente,
determinada pelas causas secundárias: assim como o sol, a causa geradora
universal, assim também é determinado pelo homem gerar como uma causa
particular - daí é gerado não um cavalo, mas um homem, visto que o influxo do
sol é de si mesmo indiferente quanto à geração de um homem e de um cavalo.
Assim eles sustentam que o influxo da causa primária é indiferente nessa ação
ou na contrária. Além disso, não é antecedente e previamente movedor, mas, ao
contrário, a causa secundária se determina antes que a causa primária aja (a
qual não impele a causa secundária ao movimento, mas a causa secundária é a
ocasião da ação da causa primária). Essa é a opinião comum dos jesuítas,
seguidos pelos socinianos e pelos remonstrantes. Ambos os grupos professam
havê-la abraçado principalmente por duas razões: uma é para livrar Deus da
causalidade do pecado; a outra é para estabelecer a liberdade e indiferença (adiaphoria) da vontade humana em todos
os atos (especialmente na conversão) e conciliá-la com a providência divina.
Dos
Tomistas
V. Porém bem distintamente é o
que determinam, na comunhão romanista, os tomistas e os dominicanos, os quais
insistem numa predeterminação física, a saber, que todas as causas secundárias
são predeterminadas por Deus à ação, e ele não apenas age com a causa
secundária no efeito, mas também imediatamente sobre a própria causa, e assim a
vontade é por ele determinada a querer ou a recusar isto ou aquilo em
particular, não somente nas boas ações, mas também nas más. Daí Tomás de Aquino
dizer: “Quando o livre-arbítrio se move, isso não exclui o fato de que é movido
por outro, do qual recebe o real poder para se mover” (ST, I, Q. 83, Art. 1, p.
418). Em outro lugar ele põe o concurso de Deus nestas cinco coisas: (1)
considerando que ele dá às causas secundárias a energia e a faculdade de agir;
(2) considerando que as conserva e as sustenta em existência e vigor; (3)
considerando que ele impele e aplica as causas secundárias a agir; (4)
considerando que ele lhes determinar agir; (5) considerando que ele as governa
e dirige para que possam concretizar os fins determinados por ele (ST, I, Q.
105, pp. 515-21; Summa Contra Gentiles
3.70 [trad. J.V. Bourke, 1956], pp. 235-37). Alvarez, o dominicano, escreveu
copiosamente sobre esse tema (De auxiliis
divinae gratiae [1620]). A abordagem dos ortodoxos é a última dessas. Tanto
contra Durandus como contra os jesuítas, os socinianos e os arminianos, os
últimos citados sustentam que a providência de Deus consiste não apenas na
conservação das coisas, mas também no concurso de Deus; não indiferente e
geral, mas particular e específica (pelas quais ela flui imediatamente tanto
para a causa como para o efeito.
A
providência não consiste somente na conservação das coisas, mas também num
concurso particular e imediato
VI. (1) Primeiro, porque a Escritura
por toda parte atribui a Deus (como a causa primeira) as ações das
causas. Não se diria isso verdadeiramente se todo o método da providência consistisse unicamente na conservação e sustentação das faculdades e se Deus
não concorresse eficientemente com elas. Assim lemos que Deus enviou José ao
Egito (Gn 45.7); tem o coração do rei em suas mãos e o inclina para onde num
concurso particular bem quiser (Pv 21.1); usa os ímpios como um machado, bastão, para sua obra (Is 10.15,26; 13.5). Visto que
essas coisas por si sós não agem a menos que o artífice concorra, assim as
causas secundárias (comparadas a esses instrumentos) não agem simplesmente por
seu próprio poder, mas por fim são movidas pela causa primária. E não se pode
objetar que se pode dizer que Deus concorre, visto que ele dá às criaturas a
faculdade de agir e preserva essa faculdade (embora não concorra efetivamente
com elas). Uma coisa é concorrer com a conservação das faculdades; outra, com
suas operações. No entanto, lemos nas passagens evocadas que Deus concorre com
as próprias ações, e a similitude citada prova isso necessariamente, pois,
embora os instrumentos possam por si sós ter a faculdade de operar, não podem
operar sem a concorrência do artífice e a aplicação de sua mão.
VII. As passagens seguintes,
nas quais lemos que vivemos e nos movemos e temos nosso ser em Deus (At
17.28; cf. Cl 1.17), aplicam-se nesse caso, pois, em quem e por meio de quem
existimos e nos movemos, desse mesmo também devem depender, efetivamente, todas
as nossas ações. A estas podem adicionar-se outras, nas quais as obras dos crentes
são atribuídas a Deus. Como se pode afirmar que Deus opera em nós tanto o
querer como o realizar (Fp 2.13), e que efetua em nós todas as coisas (1Co
12.6 e outras do mesmo gênero), se sua providência consiste apenas na
preservação das faculdades ou num concurso geral e indiferente?
VIII. (2) Porque Deus é o
regulador e o Senhor do mundo e, consequentemente, de tudo o que existe ou que
nele é feito. Isso não pode ser efetuado por mera conservação ou por um
concurso geral, porquanto regular é de tal forma presidir que aquele que
preside governa por meio de uma ordem destinada (o que abarca tanto o
estabelecimento do fim como a ordenação dos meios). Assim, visto que ele é o
Senhor dos singulares, mantém sujeita à sua administração toda sorte de
movimentos, ações e eventos – externos e internos, bons e maus.
IX. (3) Como a criatura tem
vida própria em substância com respeito a Deus, também ela deve ter vontade em
operação, pois o modo de operar segue o modo de ser (pois estes caminham sempre
juntos). Ora, a própria criatura depende de Deus em substância, portanto também
em operação. Mas se Deus, por sua providência, se ocupa apenas da conservação
das coisas (ou de um concurso geral e indiferente determinado pela causa
secundária), a criatura em ação não dependerá de Deus; não só isso: Deus, ao
contrário, dependerá da criatura, e a causa primária se converterá na
secundária, e esta naquela. Além disso, a secundária não será subordinada,
porém coordenada e independente. E assim haverá muitos seres primários e
princípios primários; sim, tantos princípios quantas causas e vontades há nos
homens e nos anjos, pois, como bem observa Tomás de Aquino é essencial a um
princípio primário que ele possa agir sem o auxílio ou influência de um agente
anterior.
X. (4) Se se admite apenas um concurso
geral de Deus, em vão se ora pela obtenção de algo, porquanto ele não pode
impedir o mal nem conferir o bem, a menos que agrade aos homens determinar o
movimento de Deus. Também sem qualquer propósito damos graças pelas bênçãos
granjeadas por meio de agentes livres; sem qualquer propósito confiamos e
esperamos em Deus e pacientemente lhe submetemos nossas vontades. Pois, Deus
concorrendo, o bem ou o mal que esperamos ou tememos tanto pode acontecer como
não acontecer.
XI. (5) Sobre a base de um
concurso geral e indiferente, Deus não será a causa do bem mais do que do mal,
visto que ele não determina a espécie ou qualidade; nem tampouco isso pode ser
determinado por Deus, porém será determinado e especificado pela vontade do
homem. O absurdo disso é evidente em vários aspectos: (a) porque a providência
de Deus sobre as coisas humanas estaria sujeita aos próprios homens ou à sua
vontade; (b) as partes da vontade do homem seriam melhores e anteriores, e Deus
(sendo inferior) apenas seguiria a vontade do homem; (c) a determinação do
influxo indiferente a esta ou àquela ação particular (e a própria ação em
particular) seria independente, repousando sobre a mera vontade do homem. Tudo
isso é blasfemo e ateístico (atheologa);
também é contrário ao que está escrito (antigrapha),
visto que a Escritura reiteradamente testifica que Deus é a causa de todo bem,
quer natural, quer moral (Tg 1.17; 1Co 4.7; Rm 11.36; Gn 1.31).
XII. (6) Se Deus concorre com
as criaturas apenas pela conservação ou por meio de um concurso geral e
indiferente, (a) não seria possível dizer que lançar sortes vem de Deus,
porque, do concurso de Deus claramente indiferente a esta ou àquela sorte, a
ocorrência desta sorte e não daquela pertenceria ao destino ou à mão que lança
a sorte; (b) a queda de um pardal não seria determinada por Deus, porque voar
ou não voar não seria determinado por Deus; (c) todas estas coisas seriam
falsas: “Deus dá a neve, as flores, o gelo, os ventos, o alimento aos corvos,
asas à cegonha, força ao cavalo” (Jó 37,38,39; SI 104; 147); “alimento ao
faminto”; “abre os olhos ao cego”; “socorre os órfãos e às viúvas”; “traz a morte
e faz subir do sepulcro” (1Sm 2.7-9; SI 146.7,8; e semelhantes, coisas que nas
Escrituras são atribuídas a ele). Todos esses efeitos são determinados e não
podem ser atribuídos a um concurso de Deus indiferente e indeterminado, de quem
esses efeitos, não mais do que os contrários, dependem. Isso vale também para
os atos livres. Belarmino não pode escapar quando sustenta “que a ação humana
com toda certeza é totalmente de Deus e recebe dele não somente o ser genérico,
mas também o ser específico singular; porém o recebe por um concurso
determinado a tal ação pela vontade humana ou pela criatura, e por isso não
recebe o ser específico do modo de agir de Deus, mas do modo de agir da vontade
humana” (De amis- sione gratiae et statu peccati, 2.18*, em Opera [1858],
4:117). Ele ora fala absurdo (asystata),
ora toma por admitido o que tem de ser provado. Se toda a ação humana tem de
Deus o ser específico, como se diz depois que ela não tem o modo de agir de
Deus? (2) Se a ação de Deus é determinada a tal ação pela vontade humana, o
evento por isso deve ser atribuído principalmente à vontade humana, não ao
concurso de Deus, que seria indiferente a esse efeito.
XIII. (7) Finalmente, sendo
pressuposto o concurso geral e indiferente: (a) o decreto de Deus viria a ser
incerto e a presciência falível, porque ambos dependeriam da vontade mutável do
homem, (b) As operações da vontade seriam subtraídas do domínio de Deus, o
homem se tornaria independente e de sujeito a Deus viria a ser seu aliado (de
cuja disposição o próprio Deus dependeria), (c) A criatura agiria mais que
Deus, porque o movimento especial é preferível ao geral; ele seria mais
perfeito, porque o que determina é mais perfeito que aquilo que é determinado,
(d) A razão especial da piedade (situada na dependência de nossa vontade sobre
a vontade de Deus) seria subvertida. Não mais poderíamos dizer: Se o Senhor
quiser, faremos isto ou aquilo (Tg 4.15). Antes, Deus (como que submisso à
ordem) deveria dizer: “Se o homem quiser, que isto ou aquilo seja feito”.
Fontes
de Explanação
XIV. Há uma causa universal (relativamente assim
chamada) agindo pela necessidade física (como o sol e os astros); outra, contudo, absolutamente universal, sapientíssima e livremente operante (tal como
é Deus). A primeira de fato apenas concorre por um influxo geral e indiferente,
porém não a segunda. Esta é tão universal com respeito aos objetos distintos em
espécies que, quanto ao modo de concurso, age também particularmente e, quando
deseja, concorre com as causas secundárias.
XV. Embora Deus conserve o
livre-arbítrio (porque ele o criou), não deve governá-lo somente por um
concurso geral. A liberdade da vontade não é absoluta e independente, porém
limitada e dependente de Deus (a cuja condição basta que o homem aja por seu
próprio movimento e conforme a sua preferência [ek proaireseõs]). Isso não é
removido por um influxo especial e determinado (o qual não subverte a natureza
das coisas), mas age de modo adequado às suas propriedades.
XVI. O poder que fosse
absolutamente e de todo modo indiferente e indeterminado, e não dependesse de
nenhuma outra coisa, não poderia ser determinado pela providência de Deus. A
vontade humana não é assim chamada indiferente; antes, relativamente (desde
quando considerada em si mesma), é indiferente a vários objetos, embora também
dependa de Deus e de sua providência (pela qual ela existe e se move). Embora
ela se determine, isso de modo algum a impede de ser determinada por Deus,
porque a determinação de Deus não exclui a determinação humana.
XVII. A determinação feita à
maneira da causa eficiente difere da que é feita à maneira de uma causa formal
e subjetiva. Os efeitos são determinados pelas causas secundárias à maneira de
uma causa formal e material, porém pela causa primária por meio da causa
eficiente.
XVIII. A causa particular que
concorre por um influxo particular é determinada com base em seu efeito, visto
que ela é não apenas eficiente, mas também próxima (formal e subjetiva) e
produz o efeito de si mesma. Mas, nesse sentido, Deus não pode ser chamado a
causa particular (embora concorra por um influxo particular), porque ele não é
a causa próxima ou formal, mas apenas a causa eficiente operando em outra.
XIX. Falsamente afirmam que o
influxo geral é necessário para preservar a liberdade do homem ou para remover
de Deus a causalidade do pecado. Pois nem uma coisa nem a outra procedem de um
influxo particular, como se provará na questão seguinte.
Autor:
François Turretini
Trecho extraído do Compêndio de Teologia e Apologética do autor, vol
1, pág 631-636. Editora: Cultura Cristã