Na obra da redenção também há funções distintas. Deus Pai planejou a redenção e enviou seu Filho ao mundo (Jo 3.16; G1 4.4; Ef 1.9-10). O Filho obedeceu ao Pai e realizou a redenção para nós. Assim podemos dizer que o papel do Pai na criação e na redenção foi planejar, dirigir e enviar o Filho e o Espírito Santo. Isso não é de admirar, pois mostra que o Pai e o Filho se relacionam um com o outro como pai e filho numa família humana: o pai dirige e tem autoridade sobre o filho, e o filho obedece e é submisso às ordens do pai.
O
Espírito Santo é obediente às ordens tanto do Pai quanto do Filho.148
Quando as Escrituras falam da criação, novamente falam que o Pai criou por
intermédio do Filho, indicando uma relação anterior ao princípio da criação.
Portanto, as diferentes funções que vemos o Pai, o Filho, e o Espírito Santo
desempenharem são simplesmente ações exteriores de uma relação eterna entre as
três pessoas, relação essa que sempre existiu e existirá por toda a eternidade.
Deus sempre existiu como três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Essas distinções são essenciais à própria natureza de Deus e não poderiam ser
diferentes.149
Se não há igualdade
ontológica, nem todas as pessoas são plenamente Deus. Mas se não há
subordinação econômica, então não existe diferença inerente no modo como as
três pessoas se relacionam umas com as outras, e consequentemente não temos as
três pessoas distintas que existem como Pai, Filho e Espírito Santo por toda a
eternidade. Por exemplo, se o Filho não
está eternamente subordinado ao Pai no seu papel, então o Pai não é eternamente
“Pai”, nem o Filho eternamente “Filho”. Isso significaria que a Trindade não
existe desde a eternidade.150
São vários os problemas com o
argumento de Grudem. Ele começa a partir de dois enunciados que são corretos, a
saber: (a) as três pessoas da Trindade são distintas e (b) elas cumprem papéis
diferentes em relação à criação e redenção. Porém, ele erra ao asseverar que isso
implica que (c) as relações entre as três são da qualidade de uma hierarquia,
ou cadeia de comando eterna. O enunciado “c” simplesmente não se segue dos
enunciados “a” e “b”.
O problema começa quando
Grudem confunde a ideia de distinção com submissão, de modo que ele não
consegue entender como uma pode existir sem a outra. Mas não há razão lógica para
levar alguém a supor que a distinção de papéis não possa existir sem uma
subordinação de uma pessoa à outra. Tais relações são comuns. A confusão de
Grudem ocorre pela aplicação errônea da analogia da família humana. Porém,
mesmo essa analogia serve para ilustrar que é perfeitamente normal existir
distinção de papéis sem subordinação. É verdade que, numa família bem ajustada,
os filhos são submissos ao pai. Numa família saudável o pai orienta e o filho
obedece, enquanto ainda é criança. Ao se tornar adulto, a natureza do
relacionamento entre o pai e o filho muda de submissão e obediência para respeito
e cooperação mútua. Como criança, o filho tem a responsabilidade de obedecer.
Como adulto, essa cadeia de comando não existe mais, embora a relação entre
ambos ainda permaneça como uma relação de pai e filho. O filho não é menos
filho por ser adulto. A existência da relação paternal e filial não depende de obediência
e submissão. Portanto, a analogia mostra que é perfeitamente possível uma
relação eterna de paternidade e filiação entre Deus Pai e Deus Filho sem
subordinação eterna.
De fato, a criação do mundo
pelo Pai, por intermédio do Filho, não exige que o Filho fosse subordinado ao
Pai, nem quando o mundo foi feito e muito menos na eternidade. Uma interpretação
melhor dos textos é que há uma cooperação mútua entre o Pai e o Filho para cumprir
um alvo comum. Mesmo que o Pai seja o iniciador da obra, isso não exige
logicamente que haja uma cadeia de comando ou hierarquia e submissão. Pelo
contrário, a noção de uma submissão eterna não é coerente com a igualdade
ontológica das três pessoas da Trindade. Para vermos isso, voltemos à analogia
do pai e do filho na família humana. Se o filho quer tirar férias em uma
fazenda, mas o pai já arrumou uma pescaria em alto-mar, o filho terá que se
submeter à vontade do pai. A razão é óbvia. A vontade de um não corresponde à
do outro.
Mas, vamos supor que o filho
quisesse fazer uma pescaria em alto-mar, antes de saber que era isso o que o
pai já havia agendado. Quando o filho souber que o pai programou a pescaria,
ele não terá de se submeter ao pai. Os dois estarão unidos em fazer o que cada
um quer. Por quê? Porque as vontades de ambos estão de acordo uma com a outra.
Então, do mesmo modo que
existe uma só natureza divina, também existe uma só vontade divina. O Pai e o
Filho, como pessoas distintas, têm separadamente sua própria percepção e
experiência da vontade divina. Mas não existem duas vontades divinas, que às
vezes não estão de acordo uma com a outra, de modo que, para estarem unidas,
uma das pessoas teria que deixar de lado seus desejos e se submeter à outra. A
vontade divina é única. A vontade do Pai e a do Filho são iguais. Então, não é
possível que exista uma cadeia de comando eterna entre ambos. Tal noção não
pertence ao cristianismo ortodoxo, mas é antes uma imposição da noção gnóstica
da escala de existência, a Grande Corrente do Ser, que já temos considerado. Segundo
essa interpretação, Jesus é um ser divino, mas fica um degrau abaixo do Pai, na
escala. Assim, a igualdade de ambos é negada, mesmo que de forma sutil. James
Boyce, ao comentar Filipenses 2.5-8, escreveu o seguinte:
A subordinação, assim assumida
voluntariamente pelo Filho, era manifestamente oficial e de uma pessoa divina a
outra. Não poderia ter sido uma subordinação de uma natureza divina a outra,
porque existe apenas uma natureza divina. É, portanto, uma subordinação de uma
pessoa a uma outra, do Filho ao Pai. Não houve nessa subordinação nenhuma separação
de Cristo de sua natureza divina. Tal separação não foi necessária para a sua encarnação.
Foi apenas necessário que ele aparecesse aos homens como homem, e não como
Deus. Sua divindade era, portanto, oculta na sua forma humana. Mas ele, sendo
Deus, igualmente ao Pai e ao Espírito, possuía o domínio e a autoridade sobre
todas as criaturas e mundos. Isso ele continuou a possuir essencialmente como
Deus; mas, como Filho, ele abriu mão [livremente] do exercício destes direitos,
deixando-os exclusivamente nas mãos do Pai, para que durante o período da sua
permanência na terra, ele concordasse em ser a pessoa que foi enviada e assim,
como servo do Pai, fizesse a vontade do Pai e obedecesse à sua autoridade. O
contexto mostra que este é o único significado do texto. O objetivo de introduzir
esta declaração foi o de induzir os filipenses, num espírito semelhante de auto-submissão,
a considerar os outros melhores do que a si mesmos (um caso, portanto, de uma
subordinação entre iguais). E, depois desta declaração sobre Cristo, Paulo
reforça esta obrigação, ao mostrar como o Pai tinha assim recompensado este ato
do Filho, de modo que o domínio e o poder que pertencem essencialmente a Deus,
a Cristo, portanto, na sua natureza divina, haviam sido conferidos a Ele na Sua
natureza humana.151
Por que, então, sendo igual ao
Pai em todos os aspectos, Jesus teve que aprender a obediência (Hb 5.8)? Ele
teve que aprendê-la como um ser humano que era. Nossa exegese mostrou que Jesus
tinha uma vontade humana, além da vontade divina que possui por ser Deus. A
pessoa única, Jesus, é tanto descendente de Davi quanto Filho de Deus (cf. Rm
1.3-4). Em Filipenses 2 está registrado que aquele que era em forma (morphê) de
Deus se tornou em forma (morphê) de servo. O uso da mesma palavra, morphê,
indica que a pessoa única, Jesus, tinha igualmente as duas naturezas. Assim,
para cumprir toda a justiça, ele teve que aprender a obediência, cumprir a lei
e se submeter ao Pai em tudo.
Outra afirmação de Grudem, e
de outros que ensinam a subordinação eterna do Filho, é que esta é a doutrina
ortodoxa, sempre ensinada pela igreja desde Nicéia. De fato, dois estudos recentes
mostraram que a verdade é exatamente o oposto. Giles examinou com cuidado o
ensino patrístico e dos reformadores e concluiu que a ideia de uma hierarquia
eterna na Trindade não é coerente com a tradição cristã.
Os
evangélicos que discutem a favor da subordinação eterna do Filho ao Pai
poderiam citar alguns versículos em seu apoio, mas não conseguiram convencer a
maioria dos demais evangélicos ou os melhores teólogos de outras igrejas
protestantes e da Igreja Católica Romana, de que a sua posição reflete o ensino
geral da Bíblia. A verdade é que os evangélicos conservadores que apoiam a
subordinação eterna do Filho, reivindicando que isto é o que a Bíblia ensina,
são uma minoria, sentada na ponta de um galho bem fino.
A
“tradição”, em vez de estar ao lado deles, é o seu mais forte oponente. O que
eles reivindicam ser “a compreensão bíblica” da Trindade é condenado pelos
credos de Niceia e Atanásio e pelas confissões de fé da Reforma, e rejeitado
absolutamente por Atanásio, Agostinho e Calvino, e esta em contraste total com
o que é ensinado por teólogos católicos e protestantes contemporâneos e pela
maioria dos teólogos evangélicos conservadores.152
Spencer
chegou à mesma conclusão. Ele demonstrou que teólogos da igreja primitiva, como
Atanásio, condenaram este tipo de ensino como “semiariano”. A doutrina da
subordinação eterna do Filho foi vista como um passo em direção ao arianismo.153
Por isso, estamos de acordo com John Gill, que escreveu o seguinte:
Quanto
à subordinação, sujeição e desigualdade que a filiação de Cristo por meio da
geração [eterna] supostamente insinua, pode ser dito que Cristo, na qualidade de
seu ofício — no qual ele, como mediador, é servo, e como homem, se revelou sob
forma humana — será reconhecido como subordinado e sujeito ao Pai; mas não na
qualidade de Filho de Deus: e qualquer desigualdade que a filiação possa
implicar entre os homens, não implica tal coisa quanto à natureza divina, entre
as pessoas divinas; que nessa condição subsistem em igualdade perfeita uma com
a outra. E nesse aspecto em particular, as Escrituras retratam o Filho de Deus
como alguém igual a seu Pai, como um que não julgou como usurpação o ser igual
a Deus; sendo da mesma natureza, e tendo as mesmas perfeições com ele, pois ele
é igual ao Pai com relação ao poder e à autoridade; porque a respeito do poder
diz ele: eu e meu Pai somos um; e as Escrituras o retratam como alguém que
tem direito à mesma honra, homenagem e adoração; visto que todos os homens devem
“honrar o Filho, como eles honram o Pai”; não como se fosse alguém subordinado,
mas igual a ele.
Há uma
passagem, 1 Coríntios 15.24,28, que é deturpada por alguns para dar um sentido de
subordinação e sujeição do Filho de Deus ao Pai: E, então virá o fim, quando
ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado,
bem como toda potestade e poder. Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem
sujeitas, então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas
lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
Deveria ser observado que tudo isso é dito de algo que é futuro; e como futuro, ainda não é e, sendo assim, não é prova daquilo que é ou era. Além disso, há em Cristo uma dupla filiação: divina e humana; por uma ele é denominado o Filho de Deus, e por outra, o Filho do homem. Ora, no texto citado, Cristo só é chamado “Filho”, o que não determina qual filiação está em vista. Esta deve ser apreendida do contexto ao longo do qual ele é chamado de homem, homem que morreu e ressuscitou dos mortos; de onde, por vários argumentos, demonstra-se a ressurreição geral. E assim ele continua a ser tratado na passagem em questão, cujo sentido nítido e simples é que, ao fim do mundo, na segunda vinda de Cristo, quando todos os eleitos de Deus serão reunidos e Cristo tiver terminado o seu trabalho como mediador, ele entregará ao Pai o reinado mediatório completo e aperfeiçoado, isto é, o corpo inteiro dos eleitos, o reino de sacerdotes, dizendo: “Eu, e os filhos que tu tens me dado”; e então o poder delegado, debaixo do qual ele agiu como Filho do Homem, cessará e não existirá mais; e este tipo de domínio, autoridade e poder serão deixados de lado; e ele, como o Filho do Homem, não mais será revestido de tal autoridade, mas se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou; e então Deus Pai, Filho e Espírito, será tudo em todos; e [não] haverá mais nenhuma distinção de ofícios entre eles; somente as distinções naturais e essenciais das Pessoas divinas que vão sempre continuar.154
Deveria ser observado que tudo isso é dito de algo que é futuro; e como futuro, ainda não é e, sendo assim, não é prova daquilo que é ou era. Além disso, há em Cristo uma dupla filiação: divina e humana; por uma ele é denominado o Filho de Deus, e por outra, o Filho do homem. Ora, no texto citado, Cristo só é chamado “Filho”, o que não determina qual filiação está em vista. Esta deve ser apreendida do contexto ao longo do qual ele é chamado de homem, homem que morreu e ressuscitou dos mortos; de onde, por vários argumentos, demonstra-se a ressurreição geral. E assim ele continua a ser tratado na passagem em questão, cujo sentido nítido e simples é que, ao fim do mundo, na segunda vinda de Cristo, quando todos os eleitos de Deus serão reunidos e Cristo tiver terminado o seu trabalho como mediador, ele entregará ao Pai o reinado mediatório completo e aperfeiçoado, isto é, o corpo inteiro dos eleitos, o reino de sacerdotes, dizendo: “Eu, e os filhos que tu tens me dado”; e então o poder delegado, debaixo do qual ele agiu como Filho do Homem, cessará e não existirá mais; e este tipo de domínio, autoridade e poder serão deixados de lado; e ele, como o Filho do Homem, não mais será revestido de tal autoridade, mas se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou; e então Deus Pai, Filho e Espírito, será tudo em todos; e [não] haverá mais nenhuma distinção de ofícios entre eles; somente as distinções naturais e essenciais das Pessoas divinas que vão sempre continuar.154
A
nossa conclusão é que a doutrina da subordinação eterna do Filho ao Pai não é
bíblica e entra em choque com o ensino ortodoxo da igreja através da história.
Portanto, deve ser rejeitada, como um perigoso caminho em direção à negação da
Trindade.
NOTAS:
147. Robert Letham, “The man-woman debate: theological comment”, Westminster theological
journal, 52, p. 65-78.
148. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 184.
149. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 185.
150. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 186.
151. James P. Boyce, Abstract of theology, p. 173. Num outro capítulo, Boyce
acaba por revelar uma triste inconsistência em seu pensamento, ao dar abertura
para o subordinacionismo presente também na teologia de seu mentor, Charles
Hodge.
152. Kevin Giles, The
Trinity and subordinationism, p. 106-107.
153. William Spencer, Would the Nicean Party Call Today s Stratifying the Trinity by Rank and
Glory, Semi-Arian? Trabalho apresentado na reunião anual da
Evangelical Theological Society, em 18.11.2005.
154. A Body of
doctrinal Divinity, p. 327-328.
Autores:
Franklin Ferreira e Alan Myatt
Trecho extraído da Teologia Sistemática dos Autores, pág 525-528. Editora: Vida Nova