14 de junho de 2016

O Subordinacionismo


A dificuldade de entender a encarnação resulta na tendência de fazer do Filho alguém menor que o Pai. Mesmo em igrejas que aderiram aos credos ortodoxos, essa tentação é bem forte. A Bíblia ensina que, ao se tomar humano, o Filho assumiu uma posição de subordinação ao Pai na economia da Trindade (Fl 2.5-8). Mas alguns teólogos propõem que essa subordinação seria eterna. Por exemplo, Robert Letham argumenta que a Trindade existe na forma de uma ordem eterna de autoridade e obediência.147 E até mesmo Wayne Grudem concorda com ele. Após afirmar que a economia da Trindade significa que as três pessoas têm papéis diferentes em relação ao mundo, ele afirma que essas relações de subordinação existiam por toda eternidade:

Na obra da redenção também há funções distintas. Deus Pai planejou a redenção e enviou seu Filho ao mundo (Jo 3.16; G1 4.4; Ef 1.9-10). O Filho obedeceu ao Pai e realizou a redenção para nós. Assim podemos dizer que o papel do Pai na criação e na redenção foi planejar, dirigir e enviar o Filho e o Espírito Santo. Isso não é de admirar, pois mostra que o Pai e o Filho se relacionam um com o outro como pai e filho numa família humana: o pai dirige e tem autoridade sobre o filho, e o filho obedece e é submisso às ordens do pai.

O Espírito Santo é obediente às ordens tanto do Pai quanto do Filho.148 Quando as Escrituras falam da criação, novamente falam que o Pai criou por intermédio do Filho, indicando uma relação anterior ao princípio da criação. Portanto, as diferentes funções que vemos o Pai, o Filho, e o Espírito Santo desempenharem são simplesmente ações exteriores de uma relação eterna entre as três pessoas, relação essa que sempre existiu e existirá por toda a eternidade. Deus sempre existiu como três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essas distinções são essenciais à própria natureza de Deus e não poderiam ser diferentes.149

Se não há igualdade ontológica, nem todas as pessoas são plenamente Deus. Mas se não há subordinação econômica, então não existe diferença inerente no modo como as três pessoas se relacionam umas com as outras, e consequentemente não temos as três pessoas distintas que existem como Pai, Filho e Espírito Santo por toda a eternidade. Por exemplo, se o Filho não está eternamente subordinado ao Pai no seu papel, então o Pai não é eternamente “Pai”, nem o Filho eternamente “Filho”. Isso significaria que a Trindade não existe desde a eternidade.150

São vários os problemas com o argumento de Grudem. Ele começa a partir de dois enunciados que são corretos, a saber: (a) as três pessoas da Trindade são distintas e (b) elas cumprem papéis diferentes em relação à criação e redenção. Porém, ele erra ao asseverar que isso implica que (c) as relações entre as três são da qualidade de uma hierarquia, ou cadeia de comando eterna. O enunciado “c” simplesmente não se segue dos enunciados “a” e “b”.

O problema começa quando Grudem confunde a ideia de distinção com submissão, de modo que ele não consegue entender como uma pode existir sem a outra. Mas não há razão lógica para levar alguém a supor que a distinção de papéis não possa existir sem uma subordinação de uma pessoa à outra. Tais relações são comuns. A confusão de Grudem ocorre pela aplicação errônea da analogia da família humana. Porém, mesmo essa analogia serve para ilustrar que é perfeitamente normal existir distinção de papéis sem subordinação. É verdade que, numa família bem ajustada, os filhos são submissos ao pai. Numa família saudável o pai orienta e o filho obedece, enquanto ainda é criança. Ao se tornar adulto, a natureza do relacionamento entre o pai e o filho muda de submissão e obediência para respeito e cooperação mútua. Como criança, o filho tem a responsabilidade de obedecer. Como adulto, essa cadeia de comando não existe mais, embora a relação entre ambos ainda permaneça como uma relação de pai e filho. O filho não é menos filho por ser adulto. A existência da relação paternal e filial não depende de obediência e submissão. Portanto, a analogia mostra que é perfeitamente possível uma relação eterna de paternidade e filiação entre Deus Pai e Deus Filho sem subordinação eterna.

De fato, a criação do mundo pelo Pai, por intermédio do Filho, não exige que o Filho fosse subordinado ao Pai, nem quando o mundo foi feito e muito menos na eternidade. Uma interpretação melhor dos textos é que há uma cooperação mútua entre o Pai e o Filho para cumprir um alvo comum. Mesmo que o Pai seja o iniciador da obra, isso não exige logicamente que haja uma cadeia de comando ou hierarquia e submissão. Pelo contrário, a noção de uma submissão eterna não é coerente com a igualdade ontológica das três pessoas da Trindade. Para vermos isso, voltemos à analogia do pai e do filho na família humana. Se o filho quer tirar férias em uma fazenda, mas o pai já arrumou uma pescaria em alto-mar, o filho terá que se submeter à vontade do pai. A razão é óbvia. A vontade de um não corresponde à do outro.

Mas, vamos supor que o filho quisesse fazer uma pescaria em alto-mar, antes de saber que era isso o que o pai já havia agendado. Quando o filho souber que o pai programou a pescaria, ele não terá de se submeter ao pai. Os dois estarão unidos em fazer o que cada um quer. Por quê? Porque as vontades de ambos estão de acordo uma com a outra.

Então, do mesmo modo que existe uma só natureza divina, também existe uma só vontade divina. O Pai e o Filho, como pessoas distintas, têm separadamente sua própria percepção e experiência da vontade divina. Mas não existem duas vontades divinas, que às vezes não estão de acordo uma com a outra, de modo que, para estarem unidas, uma das pessoas teria que deixar de lado seus desejos e se submeter à outra. A vontade divina é única. A vontade do Pai e a do Filho são iguais. Então, não é possível que exista uma cadeia de comando eterna entre ambos. Tal noção não pertence ao cristianismo ortodoxo, mas é antes uma imposição da noção gnóstica da escala de existência, a Grande Corrente do Ser, que já temos considerado. Segundo essa interpretação, Jesus é um ser divino, mas fica um degrau abaixo do Pai, na escala. Assim, a igualdade de ambos é negada, mesmo que de forma sutil. James Boyce, ao comentar Filipenses 2.5-8, escreveu o seguinte:

A subordinação, assim assumida voluntariamente pelo Filho, era manifestamente oficial e de uma pessoa divina a outra. Não poderia ter sido uma subordinação de uma natureza divina a outra, porque existe apenas uma natureza divina. É, portanto, uma subordinação de uma pessoa a uma outra, do Filho ao Pai. Não houve nessa subordinação nenhuma separação de Cristo de sua natureza divina. Tal separação não foi necessária para a sua encarnação. Foi apenas necessário que ele aparecesse aos homens como homem, e não como Deus. Sua divindade era, portanto, oculta na sua forma humana. Mas ele, sendo Deus, igualmente ao Pai e ao Espírito, possuía o domínio e a autoridade sobre todas as criaturas e mundos. Isso ele continuou a possuir essencialmente como Deus; mas, como Filho, ele abriu mão [livremente] do exercício destes direitos, deixando-os exclusivamente nas mãos do Pai, para que durante o período da sua permanência na terra, ele concordasse em ser a pessoa que foi enviada e assim, como servo do Pai, fizesse a vontade do Pai e obedecesse à sua autoridade. O contexto mostra que este é o único significado do texto. O objetivo de introduzir esta declaração foi o de induzir os filipenses, num espírito semelhante de auto-submissão, a considerar os outros melhores do que a si mesmos (um caso, portanto, de uma subordinação entre iguais). E, depois desta declaração sobre Cristo, Paulo reforça esta obrigação, ao mostrar como o Pai tinha assim recompensado este ato do Filho, de modo que o domínio e o poder que pertencem essencialmente a Deus, a Cristo, portanto, na sua natureza divina, haviam sido conferidos a Ele na Sua natureza humana.151  

Por que, então, sendo igual ao Pai em todos os aspectos, Jesus teve que aprender a obediência (Hb 5.8)? Ele teve que aprendê-la como um ser humano que era. Nossa exegese mostrou que Jesus tinha uma vontade humana, além da vontade divina que possui por ser Deus. A pessoa única, Jesus, é tanto descendente de Davi quanto Filho de Deus (cf. Rm 1.3-4). Em Filipenses 2 está registrado que aquele que era em forma (morphê) de Deus se tornou em forma (morphê) de servo. O uso da mesma palavra, morphê, indica que a pessoa única, Jesus, tinha igualmente as duas naturezas. Assim, para cumprir toda a justiça, ele teve que aprender a obediência, cumprir a lei e se submeter ao Pai em tudo.

Outra afirmação de Grudem, e de outros que ensinam a subordinação eterna do Filho, é que esta é a doutrina ortodoxa, sempre ensinada pela igreja desde Nicéia. De fato, dois estudos recentes mostraram que a verdade é exatamente o oposto. Giles examinou com cuidado o ensino patrístico e dos reformadores e concluiu que a ideia de uma hierarquia eterna na Trindade não é coerente com a tradição cristã.

Os evangélicos que discutem a favor da subordinação eterna do Filho ao Pai poderiam citar alguns versículos em seu apoio, mas não conseguiram convencer a maioria dos demais evangélicos ou os melhores teólogos de outras igrejas protestantes e da Igreja Católica Romana, de que a sua posição reflete o ensino geral da Bíblia. A verdade é que os evangélicos conservadores que apoiam a subordinação eterna do Filho, reivindicando que isto é o que a Bíblia ensina, são uma minoria, sentada na ponta de um galho bem fino.

A “tradição”, em vez de estar ao lado deles, é o seu mais forte oponente. O que eles reivindicam ser “a compreensão bíblica” da Trindade é condenado pelos credos de Niceia e Atanásio e pelas confissões de fé da Reforma, e rejeitado absolutamente por Atanásio, Agostinho e Calvino, e esta em contraste total com o que é ensinado por teólogos católicos e protestantes contemporâneos e pela maioria dos teólogos evangélicos conservadores.152

Spencer chegou à mesma conclusão. Ele demonstrou que teólogos da igreja primitiva, como Atanásio, condenaram este tipo de ensino como “semiariano”. A doutrina da subordinação eterna do Filho foi vista como um passo em direção ao arianismo.153 Por isso, estamos de acordo com John Gill, que escreveu o seguinte:

Quanto à subordinação, sujeição e desigualdade que a filiação de Cristo por meio da geração [eterna] supostamente insinua, pode ser dito que Cristo, na qualidade de seu ofício — no qual ele, como mediador, é servo, e como homem, se revelou sob forma humana — será reconhecido como subordinado e sujeito ao Pai; mas não na qualidade de Filho de Deus: e qualquer desigualdade que a filiação possa implicar entre os homens, não implica tal coisa quanto à natureza divina, entre as pessoas divinas; que nessa condição subsistem em igualdade perfeita uma com a outra. E nesse aspecto em particular, as Escrituras retratam o Filho de Deus como alguém igual a seu Pai, como um que não julgou como usurpação o ser igual a Deus; sendo da mesma natureza, e tendo as mesmas perfeições com ele, pois ele é igual ao Pai com relação ao poder e à autoridade; porque a respeito do poder diz ele: eu e meu Pai somos um; e as Escrituras o retratam como alguém que tem direito à mesma honra, homenagem e adoração; visto que todos os homens devem “honrar o Filho, como eles honram o Pai”; não como se fosse alguém subordinado, mas igual a ele.

Há uma passagem, 1 Coríntios 15.24,28, que é deturpada por alguns para dar um sentido de subordinação e sujeição do Filho de Deus ao Pai: E, então virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos

Deveria ser observado que tudo isso é dito de algo que é futuro; e como futuro, ainda não é e, sendo assim, não é prova daquilo que é ou era. Além disso, há em Cristo uma dupla filiação: divina e humana; por uma ele é denominado o Filho de Deus, e por outra, o Filho do homem. Ora, no texto citado, Cristo só é chamado “Filho”, o que não determina qual filiação está em vista. Esta deve ser apreendida do contexto ao longo do qual ele é chamado de homem, homem que morreu e ressuscitou dos mortos; de onde, por vários argumentos, demonstra-se a ressurreição geral. E assim ele continua a ser tratado na passagem em questão, cujo sentido nítido e simples é que, ao fim do mundo, na segunda vinda de Cristo, quando todos os eleitos de Deus serão reunidos e Cristo tiver terminado o seu trabalho como mediador, ele entregará ao Pai o reinado mediatório completo e aperfeiçoado, isto é, o corpo inteiro dos eleitos, o reino de sacerdotes, dizendo: “Eu, e os filhos que tu tens me dado”; e então o poder delegado, debaixo do qual ele agiu como Filho do Homem, cessará e não existirá mais; e este tipo de domínio, autoridade e poder serão deixados de lado; e ele, como o Filho do Homem, não mais será revestido de tal autoridade, mas se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou; e então Deus Pai, Filho e Espírito, será tudo em todos; e [não] haverá mais nenhuma distinção de ofícios entre eles; somente as distinções naturais e essenciais das Pessoas divinas que vão sempre continuar.154

A nossa conclusão é que a doutrina da subordinação eterna do Filho ao Pai não é bíblica e entra em choque com o ensino ortodoxo da igreja através da história. Portanto, deve ser rejeitada, como um perigoso caminho em direção à negação da Trindade.




NOTAS:

147. Robert Letham, “The man-woman debate: theological comment”, Westminster theological journal, 52, p. 65-78.
148. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 184.
149. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 185.
150. Wayne Grudem. Teologia sistemática, p. 186.
151. James P. Boyce, Abstract of theology, p. 173. Num outro capítulo, Boyce acaba por revelar uma triste inconsistência em seu pensamento, ao dar abertura para o subordinacionismo presente também na teologia de seu mentor, Charles Hodge.
152. Kevin Giles, The Trinity and subordinationism, p. 106-107.
153. William Spencer, Would the Nicean Party Call Today s Stratifying the Trinity by Rank and Glory, Semi-Arian? Trabalho apresentado na reunião anual da Evangelical Theological Society, em 18.11.2005.
154. A Body of doctrinal Divinity, p. 327-328.




Autores: Franklin Ferreira e Alan Myatt
Trecho extraído da Teologia Sistemática dos Autores, pág 525-528. Editora: Vida Nova