A menos que vocês provem para
mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado, eu não posso e não me
retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra a minha
consciência não é nem correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais
que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.
Martinho Lutero
Introdução
O movimento Reformado
representou um retorno às Escrituras Sagradas. Como consequência, o acúmulo de
tradições acrescentadas à fé apostólica foi varrido da igreja. Somos filhos da
Reforma e temos a obrigação de julgar nossas próprias práticas à luz da Bíblia,
comparando Escritura com Escritura. A máxima igreja reformada sempre se reformando deve ser sempre lembrada e
praticada. Deveríamos hesitar em abolir ensinos que não se respaldam na
Revelação? Não há erro quando alguém obriga a si próprio a não comer carne, ou
guardar determinados dias, ou se abster de algo, ou colocar sobre si qualquer
outra obrigação sobre a qual não há mandamento bíblico (Rm 14.2-6). Porém, o
erro passa a existir quando pretendemos impor a outra pessoa exigências que a
Bíblia não impôs. Pretendo demonstrar, a seguir, que o dízimo, conforme
tradicionalmente ensinado e praticado nas igrejas evangélicas, enquadra-se nesta
definição.
A igreja pós-apostólica viveu
a tensão entre a prática do dízimo e a afirmação paulina de que Cristo nos
libertou da lei (Gl 5.1). Nos séculos 5 e 6, encontramos a prática do dízimo
bem estabelecida nas áreas antigas da cristandade do ocidente. No século 8, os soberanos
carolíngeos tornaram o dízimo eclesiástico parte da lei secular. Já no século 12,
os monges que antes tinham sido proibidos de receber dízimos, sendo obrigados a
pagá-los, obtiveram certa medida de liberdade ao obterem permissão para receber
dízimos e, ao mesmo tempo, tendo isenção do pagamento deles. Controvérsias
sobre dízimos sempre surgiram quando pessoas procuravam evitar o pagamento, ao
passo que outras tentavam apropriar para si as rendas dos dízimos.
Os dízimos medievais eram divididos
em prediais, cobrados sobre os frutos da terra; pessoais, cobrados dos salários
da mão-de-obra; e mistos, cobrados da produção dos animais. Esses dízimos eram subdivididos,
ainda, em grandes, derivados de trigo, feno e lenha, pagáveis ao reitor ou sacerdote
responsável pela paróquia; e pequenos, dentre todos os demais dízimos prediais,
mais os dízimos mistos e pessoais, pagáveis ao vigário. Na Inglaterra, especialmente
por volta dos séculos 16 e 17, a questão dos dízimos foi uma fonte de conflito
intenso, visto que a Igreja Estatal dependia dos dízimos para sua
sobrevivência. Implicações sociais, políticas e econômicas eram consideráveis
nas tentativas do arcebispo Laud de aumentar o pagamento dos dízimos, antes de
1640. Os puritanos ingleses e outros queriam a abolição dos dízimos, substituindo-os
por contribuições voluntárias para sustentar os clérigos. Mas a questão dos
dízimos despertou paixões ferozes e amarguras, notáveis dentre todas as questões
associadas com a guerra civil inglesa. Depois da guerra, o dízimo obrigatório
sobreviveu na Inglaterra até o século 20.2
O
texto clássico
Roubará o homem a Deus?
Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas
ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, vós, a nação
toda. Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na
minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos exércitos, se eu não vos abrir
as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida Ml 3.8-10.
Esse é o texto clássico usado
para ensinar aos membros da igreja a prática do dízimo, isto é, entregar à
igreja de 10% do salário bruto mensal. É concordância generalizada entre os
evangélicos que o dízimo não é dado, mas, sim, “devolvido” a Deus. Não poucos testemunhos
confirmam que dar o dízimo acarreta bênção e o contrário traz maldição:
Temos um colega que recebeu
uma carta de uma senhora que foi membro de sua Igreja e ele chorou amargamente
ao ler aquela carta, porque aquela senhora dizia o seguinte: Pastor, eu lhe
agradeço por tudo quanto o senhor me fez durante o tempo em que fui membro da
sua Igreja. Mas eu fui obrigada a me mudar dessa localidade e fui frequentar
outra Igreja. O senhor nunca me falou a respeito do dízimo. O outro pastor me
ensinou a ser dizimista, e Deus me abriu as janelas dos céus e me tem dado
tantas e tão grandes bênçãos que eu lamento ter perdido doze anos na sua Igreja
recebendo maldição, quando Deus tinha uma bênção sem medida para mim, se eu fosse
fiel. Um pastor que recebe uma carta assim só pode chorar.3
Testemunhos dessa natureza
prendem a atenção dos ouvintes e são usados para confirmar a veracidade do
ensino a respeito do dízimo. É difícil discordar de algo que produz resultados
como este:
Certo dia, quando recolhíamos
os dízimos, eu li este versículo. Estava presente um engenheiro que, tendo sido
muito rico, perdera tudo em poucas semanas, e quando eu li este versículo, ele
compreendeu que isso tinha acontecido na sua vida, e, naquela hora, prometeu a Deus
que ia ser fiel na entrega dos dízimos. O que Deus fez e está fazendo na vida
daquele homem é simplesmente espantoso. Um ano depois, este engenheiro era
presbítero da minha Igreja e podia dizer: Hoje eu sou muito mais rico do que
era quando Deus assoprou minha riqueza, porque Ele já me devolveu em dobro o
que assoprou. Esse homem tem sido uma bênção na Igreja e no seu trabalho.4
Doutrina, por mais atrativa
que seja, não pode ter sua autoridade respaldada pela experiência. O texto
sagrado deve ser o único pilar sobre o qual se assenta o ensino. Qualquer outro
alicerce deve ser considerado supérfluo e indesejável. Sabemos também que a
doutrina não pode ser baseada num único texto. É necessário que haja uma concordância
com outras partes do Livro Santo. Examinemos se o dízimo, tal como é ensinado
acima, confirma-se à luz das Escrituras.
O
Novo Testamento ensina a prática do dízimo?
Uma primeira constatação é que
não há, no Novo Testamento, nenhum parâmetro mínimo estipulado para a
contribuição. O apóstolo Paulo organizou uma
grande coleta para os necessitados da Judéia. As duas epístolas aos Coríntios
trazem referência a esta coleta:
Quanto à coleta para os
santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da
semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e
vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for 1 Co 16.1-2.
Nos capítulos 8 e 9 de 2
Coríntios, Paulo desenvolve seu ensino acerca das contribuições. Estes textos
se referem à alegria da contribuição, à generosidade, à liberalidade, à
presteza em ofertar:
E isto afirmo, aquele que
semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância
também ceifará (9.6).
... porque, no meio de muita
prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza
deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade (8.2).
Pedindo-nos, com muitos rogos,
a graça de participarem da assistência aos santos. (8.4).
... assim, como revelastes
prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo as vossas posses (8.11).
porque bem reconheço a vossa
presteza, da qual me glorio... ( 9.2).
Não vemos nenhuma referência a
uma contribuição mínima que é obrigatória – o dízimo – e a partir daí, ofertas
voluntárias. Ao contrário, o ensino de Paulo é que, se a contribuição não for
voluntária, não deve ser dada:
Não vos falo na forma de
mandamento, mas para provar, pela diligência de outros, a sinceridade do vosso
amor (8.8).
Porque, se há boa vontade,
será aceita conforme o que o homem tem e não segundo o que ele não tem (8.12).
Cada um contribua segundo
tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama
a quem dá com alegria (9.7).
Ainda que eu distribua todos
os meus bens entre os pobres (...) se não tiver amor, nada disso me
aproveitará (1 Co 13.3).
Ofertas voluntárias são o
método de contribuição do Novo Testamento:
E sabeis também vós, ó
filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma
igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós
outros; porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o
bastante para as minhas necessidades. Não que eu procure o donativo, mas o que
realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. Recebi tudo e
tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que
me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível
a Deus (Fp 4.15-18).
Paulo usa a figura dos
sacrifícios veterotestamentários com relação às ofertas:
As ofertas dos filipenses
foram, diante de Deus, “como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível
a Deus”.
Mas
aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as coisas
boas aquele que o instrui (Gl 6.6). Paulo, aqui, faz referência à
obrigação de dar sustento àqueles que se afadigam no ensino da Palavra. Ensino
repetido em 2 Tessalonicenses 5.12:
Agora, vos rogamos, irmãos,
que acateis com apreço os que trabalham entre vós e os que vos presidem no
Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com amor em máxima consideração, por
causa do trabalho que realizam.
E mais detalhado em 1
Coríntios 9:
Não temos nós o direito de
comer e beber? (v 4) Ou somente eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar?
(v 6 – Paulo refere-se ao trabalho secular).
Se nós vos semeamos as cousas
espirituais, será muito recolhermos de vós bens materiais? (v 11)
Não sabeis vós que os que
prestam serviços sagrados do próprio templo se alimentam? E que serve ao altar
do altar tira o seu sustento? (v 13).
A referência aqui é a Dt 18.1,
que permite aos levitas comer partes dos sacrifícios oferecidos no Templo.
De fato, existe o direito
bíblico (do qual Paulo abriu mão, pelo menos com relação aos coríntios – 1 Co
9.15 – e aos tessalonicenses – 1 Ts 2.7,9; 2 Ts 3.8-9) de os pregadores,
pastores e mestres serem sustentados pelas suas congregações:
Assim ordenou também o Senhor
aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho. (v 14)...
Porém não há referência a
dízimos.
Algumas outras citações, entre
muitas:
... compartilhai as
necessidades dos santos (Rm 12.13).
... façamos o bem a todos, mas
principalmente aos da família da fé (Gl 6.10).
Aquele que furtava não furte
mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha
com que acudir ao necessitado (Ef 4.28).
Exorta aos ricos do presente
século ... que sejam generosos em dar e prontos a repartir (1 Tm 6.17-18).
Note o ensino consistente e
positivo do Novo Testamento a respeito da generosidade, da liberalidade, da
prontidão em repartir. Em contrapartida negativa, temos muitas advertências a
respeito da avareza:
O que foi semeado entre os
espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das
riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera (Mt 13.22).
Tende cuidado e guardai-vos de
toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância
dos bens que ele possui (Lc 12.15).
Sabei, pois, isto: nenhum avarento,
que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus (Ef 5.5).
Porque nada temos trazido para
o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. Tendo sustento e com que nos
vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação e
cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam
os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males;
e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com
muitas dores 1 Tm 6.7-10.
Seja a vossa vida sem avareza (Hb 13.5).
Essa é a doutrina. Isso é o
que devemos ensinar. O que passar disso pode ser considerado ensino bíblico?
Jesus
ensinou a prática do dízimo?
Argumenta-se que Jesus ensinou
que devemos dar o dízimo em Mateus 23.23:
Ai de vós, escribas e
fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e
tendes negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a
misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas!
Note que, obedecer aos preceitos
mais importantes da lei, sem omitir o dízimo da hortelã, do endro e do cominho,
é o que Jesus afirma. De fato, esta afirmação de
Jesus nos remete à discussão sobre a Lei e a Graça, o Velho e o Novo
Testamento, a Antiga e a Nova Aliança. Não ignoramos a profecia de
Jeremias:
Eis aí vêm dias, diz o SENHOR,
em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá...
(31.31).
Esta profecia foi lembrada
pelo autor de Hebreus que ensina a respeito de Jesus como Mediador de superior
aliança instituída com base em superiores promessas (8.6), e completa:
Quando ele diz Nova, torna
antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está
prestes a desaparecer (8.13).
Paulo afirma o mesmo com outras
palavras:
De maneira que a lei nos
serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados
por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio (Gl
3.24-25).
Sabemos que há dois testamentos, duas alianças – uma
antiga, que já passou, e uma nova, que vigora. Mas, quando começou a vigorar a
nova aliança, o novo testamento? Hebreus responde:
Porque, onde há testamento, é
necessário que intervenha a morte do testador; pois um testamento só é
confirmado no caso de mortos; visto que de maneira nenhuma tem força de lei
enquanto vive o testador. (Hb 9.16-17)
Oh! Que significado tem as
palavras de Jesus na última ceia: porque
isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos,
para remissão de pecados. (Mt 26.28).
Vemos, assim, que os
evangelhos retratam acontecimentos da antiga aliança. Poderíamos dizer que o
Antigo Testamento se estende até Mateus 27.50 quando Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.
Dessa forma, podemos entender
muitas passagens do NT:
Em Lc 1.15, o anjo Gabriel
consagra João Batista ao nazireado, conforme Nm 6.3.
Em Lucas 2.21, Jesus é
circuncidado obedecendo ao disposto em Levítico 12.3.
Em Lucas 2.22, Maria se
purifica conforme estabelecido em Levítico 12.4.
Em Lucas 2.23, os pais de
Jesus oferecem o sacrifício prescrito em Levítico 12.6-8.
Em Mateus 8.4, Jesus manda um
leproso fazer o sacrifício prescrito em Levítico 14.
Em Lucas 19.8, Zaqueu se
submete duplamente à pena estabelecida em Êxodo 22.9.
Em Mateus 17.24, Jesus paga o
imposto estipulado em Êxodo 30.11-16.
Em Mateus 26.17, Jesus e os
discípulos cumprem o requerido em Êxodo 12.1-27.
Entendemos, então que,
enquanto Jesus vivia, a Lei Mosaica estava em vigor. Como entender Mt 8.4, onde
Jesus ordena a apresentação de um sacrifício de animal ao que havia sido curado
de lepra? É necessário que façamos isso hoje? Evidentemente que não. Da mesma
forma, quando em Mt 23.23 Jesus ordena aos fariseus que deem o dízimo do
cominho, da hortelã e do endro, devemos entender que eles estavam debaixo da
mesma aliança mosaica que obrigou o leproso a cumprir o ritual de Levítico 14.
Há, portanto, nos relatos dos evangelhos, um aspecto de transição entre o que é e o que há de vir. Por isso é
preciso cuidado para não impor sobre o Novo Israel prescrições relativas ao
Antigo Israel. Pois não estais debaixo da
lei e sim da graça (Rm 6.14).
O
dízimo está acima da Lei?
Existe uma passagem em Gênesis
14.20 – E de tudo lhe deu Abrão o dízimo
– que é usada para defender a prática do dízimo como supralegal, ou seja, acima
da lei. Eis o argumento: Abrão deu o dízimo a Melquisedeque, rei de Salém,
antes da Lei ser estabelecida. Logo o dízimo é antes da Lei. Portanto, o dízimo
perdura após o fim da Lei.
Tomemos outra passagem para
testar a validade da argumentação acima – Gn 17.10: Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua
descendência: todo macho entre vós será circuncidado. Em Gn 17.23-27, vemos
Abraão circuncidando-se a si, a Ismael e a todos os homens de sua casa. Argumentemos:
Abrão circuncidou-se antes da Lei ser estabelecida. Logo, a circuncisão é antes
da Lei. Portanto, a circuncisão perdura após o fim da Lei.
Temos verificado que, se esse
argumento é procedente para validar o dízimo, é da mesma forma procedente para
justificar a prática da circuncisão.
Uma preciosa norma de
interpretação afirma que um texto descritivo pode ilustrar uma doutrina, porém
não pode ser base de doutrina. Mas é frequente cair neste erro. Toda a doutrina
pentecostal do batismo com o Espírito Santo esta assentada sobre o livro de Atos
– descritivo por excelência. Usando textos descritivos, grupos sectaristas
ensinam, por exemplo, o lava-pés (Ora, se
eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés
uns dos outros – Jo 13.14); que a Ceia deve ser celebrada com pão asmo (cf.
Mt 26.17-19; Êx 12.1-27 – porém esquecem que Jesus usou também vinho e não o
suco de uva que a maioria das igrejas usa atualmente); que o batismo só é
válido quando feito em rio – “rios de águas correntes” é a expressão usada (Mt
3.6). Kenneth Hagin, o divulgador da “teologia” da prosperidade erige um verdadeiro
arranha-céu doutrinário sobre uma única afirmação de Jesus:
Por isso, vos digo que tudo
quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco (Mc
11.24).
Portanto, se é correto que não
se pode basear doutrina sobre texto descritivo, tanto Mt 23.23 quanto Gn 14.20
ficam invalidados para se justificar a prática atual do dízimo.
O
Dízimo e a Lei Mosaica
Trazei todos os dízimos... (Ml
3.10).
Nenhum profeta do Antigo
Testamento criou doutrina nova. A síntese do que diziam pode ser resumida na
seguinte sentença: Voltem para a Lei.
Em outras palavras, “lembrem-se do que Moisés vos prescreveu”! Se quisermos
saber mais a respeito do dízimo, devemos nos voltar para suas prescrições no
Pentateuco. E é aí que encontraremos algumas surpresas:
* Em Lv 27.30-33, aprendemos
que os dízimos são Santos ao SENHOR.
* Em Nm 18.21ss aprendemos que
os dízimos são herança dos Levitas.
* Porém, em Dt 12.5ss e 14.22ss,
aprendemos a respeito da dinâmica da entrega dos dízimos: eles eram comidos e
bebidos pelo próprio ofertante e sua família no Templo, diante do SENHOR, numa
celebração alegre e festiva: A esse lugar
[o Templo] fareis chegar os vossos
... dízimos... Lá comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos alegrareis...
(12.6-7)
Se o caminho até o Templo
fosse longo, o israelita poderia vender o seu dízimo e, chegando a Jerusalém,
comprar tudo o que deseja a tua alma:
vacas, ovelhas, vinho ou bebida forte, ou qualquer coisa que te pedir a tua
alma; come-o ali perante o SENHOR, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa.
(14.26).
Repetidamente, há a
recomendação de não desamparar o levita (12.12, 18, 19; 14.27). E, finalmente,
no capítulo 14 uma ordem especial:
Ao fim de cada três anos,
tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua
cidade. Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança contigo), o
estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se
fartarão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas
mãos fizerem. (v 28-29)
Portanto, vemos claramente que
somente de 3 em 3 anos o dízimo era entregue integralmente aos levitas. Nos
anos restantes ele era consumido alegremente “perante o SENHOR” pelo próprio
ofertante, por sua família e por muitos convidados, num grande banquete. Em Ne
13.10-12, vemos a restauração da prática do dízimo no Judá pós-exílio. Ali está
a referência aos “depósitos” onde eram armazenados os dízimos.
Que prática olvidada pelo povo
Malaquias estava se referindo? A tudo o que acabamos de descrever do livro de
Deuteronômio. Portanto, se quisermos usar o profeta para restaurar a prática do
dízimo, não podemos omitir os textos Mosaicos a que ele está se referindo, pois
uma boa norma de hermenêutica diz que um texto não pode significar para nós o
que não significou para os seus destinatários originais.
O
Dízimo e os Profetas
A esta altura, uma pergunta se
faz necessária:
É correto que um texto do
Antigo Testamento, de modo geral ou um texto de alguns dos profetas, seja usado
como base para ensinar a prática ou a abstenção de algum preceito?
Alguns respondem que sim,
desde que se trate da lei moral, que continuamos obrigados a cumprir e não da lei
cerimonial, que foi revogada. Mas, como fazer tal distinção? Exemplifiquemos
com o conhecido texto do profeta Isaías (capítulo 58) sobre o jejum aceitável a
Deus:
Seria este o jejum que
escolhi, que o homem um dia aflija a sua alma, incline a sua cabeça como o
junco e estenda debaixo de si pano de saco e cinza? ... Porventura, não é este
o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras
da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? É moral ou
cerimonial o que escreve o profeta? E o final do discurso quando Isaías afirma:
Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses
no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno
de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a
tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR.
Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de
Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse.
Guardar o sábado é moral ou
cerimonial? Frequentemente aquilo que parece cerimonial está inextrincavelmente
ligado ao que, sem dúvida, é moral.
Não comereis coisa alguma com
sangue, não agourareis, nem adivinhareis. Não cortareis o cabelo em redondo,
nem danificareis as extremidades da barba (Lv 19.26).
Não contaminarás a tua filha,
fazendo-a prostituir-se... guardareis os meus sábados... não vos voltareis para
os necromantes, nem para os adivinhos.
Lemos, também, que Deus quis
matar Moisés porque este não havia circuncidado seus filhos (Êx 4.24-26), e que
a pena de morte era prescrita para quem não guardasse o sábado (Êx 31.14-15).
Para o judeu comer comida kosher (pura),
guardar o sábado, circuncidar a si e seus filhos e usar barba era tão moral quanto
não consultar necromantes ou adivinhos e não prostituir sua filha. Portanto, como
justificar que usar Malaquias 3.10 para se requerer a prática do dízimo é
legítimo e não é legítimo usar Isaías 58.13 para se exigir a guarda do sábado?
Por que critério Malaquias 3.10 é atual e não Malaquias 4.4? Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, a
qual lhe prescrevi em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos.
E, se Malaquias 3.10 continua vigorando, onde o Livro Santo nos autorizou a
alterar a prática do dízimo conforme prescrita pela lei de Moisés?
Calvino
e a mordomia5
Calvino, nos Comentários dos
Cinco Livros de Moisés, nos trechos referentes às primícias, aos dízimos e às
oferendas, escreve que estas prescrições têm um significado espiritual. Assim,
comentando a exigência do imposto do templo (Ex 30.16) ele escreve:
Deus os taxou todos a uma e a
mesma soma, a fim de que, desde o maior até o menor, cada qual, qualquer que
fosse o seu estado ou qualidade, reconhecesse que Lhe pertencia inteira e totalmente.
E não é de maravilhar, visto que era esse (como se diz) um direito pessoal e as
faculdades não se creditam a que o rico, de fato, contribuísse mais do que o
pobre, mas antes, que o tributo era pago igualmente pessoa por pessoa.
Comentando o texto de Mt 17.24
ele acrescenta:
Sabemos que a Lei lhes impunha
pagar cada um anualmente meio estáter e que Deus, que os havia resgatado, era
para eles o Rei Soberano.
Ou seja, para Calvino, este
imposto simboliza a redenção que Jesus efetua em favor de cada pessoa do seu
povo. Da mesma forma, comentando sobre as primícias, “Calvino afirma que São
Paulo mostra que se a oferta das primícias, como rito, foi abolida, guarda-nos, todavia, o significado espiritual.”6
Sem a cerimônia, permanece ainda a
verdadeira observância, quando nos exorta ele a glorificar o nome de Deus, até
mesmo no beber e no comer. (1 Co 10.31)7
Comentando o voto de Jacó em
Gn 28.22 (E, de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo),
Calvino escreve:
Os atos externos não caracterizam
os verdadeiros servidores de Deus, são apenas subsídios de piedade.8
Comentando 2 Co 8.8, o
reformador escreve:
Verdade é que, por toda parte,
ordena Deus que acorramos a ajudar os irmãos em suas necessidades; mas, verdade
é também que nenhuma passagem há em que nos defina a soma, quanto lhes devemos
dar, a fim de que, feita estimativa de nossos bens, repartamo-los entre nós e
os pobres; nem, de maneira semelhante, onde nos obriga a certas circunstâncias,
nem de tempo, nem de pessoa, nem de lugar, mas à regrada caridade nos conduz.9
No entanto, Calvino não deixa
de enfatizar aquilo que já vimos: o ensino a respeito da generosidade e a
precaução contra a avareza:
A vontade liberal é agradável
a Deus tanto do pobre quanto do rico... verdade é que é bem certo que devemos a
Deus não apenas uma parte, mas, afinal, tudo o que somos e tudo o que temos.
Entretanto, segundo Sua benevolência, até esse ponto nos poupa, que Se contenta
desta comunicação que o Apóstolo aqui ordena. O que, pois, ensina ele aqui é um
relaxamento, por assim dizer, daquilo a que somos obrigados no rigor do
direito. Contudo nosso dever é estimular-nos a nós mesmos a darmos com
frequência. Não há de temer que sejamos exageradamente descomedidos neste
aspecto, pelo contrário, há é o perigo de sermos demasiado sovinas.10
Ainda comentando 2 Co 8.8,
Calvino acrescenta:
Ora, esta doutrina é
necessária contra um bando de visionários que pensam que nada havemos feito, se
não nos despojamos inteiramente para termos tudo em comum. Na verdade, tanto
fazem por sua fantasia, que ninguém pode dar ajuda em boa consciência. Eis
porque é preciso observar-se diligentemente a moderação de São Paulo, a saber,
que nossa ajuda seja agradável a Deus, quando de nossa abundância acorrermos à
necessidade dos irmãos, não de tal maneira que tenham a ponto de regurgitarem,
enquanto nós ficamos na condição de necessitados, mas antes, que do nosso
distribuamos segundo o permite nossa própria capacidade, e com alegria de
coração e ânimo disposto.11
Conclusão
Todos os presbiterianos, por
ocasião de sua profissão de fé, ouvem as seguintes palavras: Crê que as
Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a Palavra de Deus e a
única regra de fé e prática dada por Ele à sua Igreja, e que são falsas e perigosas
todas as doutrinas e cerimônias contrárias a essa palavra, e todos os usos e
costumes acrescentados à simples lei do Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo?
Ao que respondemos: Creio
O que devemos fazer? A
confissão que fizemos nos lembra que tudo o que é extrabíblico é, na verdade,
antibíblico, que qualquer imposição que se revele sem raízes nas Escrituras
deve ser considerada falsa e perigosa, mesmo que tenha sido instituída com propósitos
elevados.
O dízimo tradicionalmente
praticado pelos evangélicos é bíblico? Se não for, não pode ser legitimamente
exigido de nenhum membro. Já se afirmou que se o dízimo for extinto a igreja
perderá o seu sustento. Ora, este não é um argumento bíblico. Respondemos que a
doutrina bíblica nunca prejudicará a vida da igreja e que a verdade jamais será
perniciosa; pelo contrário, se tivermos a determinação de ensinar que os
membros são livres para dar ou não dar, que não há patamar mínimo exigido, que
Deus ama a quem dá com alegria, que devemos ser generosos, guardar-nos da
avareza, ser prontos em repartir, acumular tesouros no céu..., Deus responderá
derramando sobre a Sua igreja bênçãos sem medida.
NOTAS:
1. Presbítero
da Igreja Reformada Presbiteriana em Maricá.
2. Extraído
da Enciclopédia Histórico-Teológica da
Bíblia. Ed. Vida Nova. Verbete “dízimo”. Negrito acrescentado. A afirmação destacada
merece consideração, pois os puritanos, nossos antepassados, representam o
ápice do movimento reformado.
3. Extraído
do livreto Fidelidade. Mordomia Cristã.
Dízimo -- método divino de contribuição, do Rev. Jacob Silva. Ed. do Autor.
São Paulo. 1983. p..22-23
4. Idem, p.
21.
5. Calvino
deixou em sua vastíssima obra, valiosos e densos comentários sobre a vida
material: riquezas, propriedades, trabalho, descanso, banqueiros, empréstimos,
impostos, diaconia, remuneração, etc. Para quem quiser se aprofundar neste
assunto, recomendo a obra O Pensamento
Econômico e Social de Calvino, de André Biéler, publicado pela Casa Editora
Presbiteriana.
6. Biéler,
op. cit. p. 473, negrito acrescentado.
7. Sermão
de Calvino sobre Dt 14.21-28.
8. Comentários
dos Cinco Livros de Moisés
9. Comentários
do Novo Testamento de 2 Co 8.8.
10. Idem.
11. Idem.
Autor: Túlio
Cesar Costa Leite1
Fonte:
Monergismo