2. O
relacionamento dos cristãos com os inimigos (12.14,17-21)
Tendo aduzido as obrigações
dos cristãos na esfera pessoal, sentimental, espiritual, social e relacional
(12.9-16), Paulo, agora, tece uma série de imperativos sobre como os cristãos devem
se portar com aqueles que os consideram inimigos.
Uma vez que Jesus, os
apóstolos e os cristãos primitivos tiveram opositores, os cristãos hodiernos
também terão. Os cristãos não fazem inimigos, porém muitos ímpios os veem como
inimigos por conta da fé que professam. O apóstolo exibe alguns deveres
negativos e positivos que precisamos observar em nosso relacionamento com os
inimigos.
A ética cristã, porém, nunca é
puramente negativa; assim, cada um dos quatro imperativos negativos de Paulo
vem acompanhado de uma contrapartida positiva. Portanto, não devemos
amaldiçoar, mas abençoar (vs.14); não devemos retaliar, mas fazer o que é
direito e viver em paz (vs.17-18); não devemos procurar vingança, mas deixar
isso com Deus e, entrementes, continuar servindo nossos inimigos (vs.19-20); e
não devemos deixar-nos vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem (vs.21).28
Vejamos, pois, os ditames
negativos e positivos:
a) As Obrigações negativas (12.14b, 17a, 19)
Paulo traceja o que não
devemos fazer no relacionamento com os nossos inimigos. Três atitudes passivas
são elencadas.
i. Não devemos amaldiçoar nossos
inimigos (vs.14b)
O verbo amaldiçoar καταράουαι (kataraomai), significa “desejar o mal”;
“rogar pela destruição de outrem”. Assim, o apóstolo recomenda-nos a não
evocarmos maldição sobre os que nos perseguem. Lloyd Jones observa que, para o
cristão, o perigo não é o uso de expressões fortes ou de linguagem grosseira ou
maligna, e sim pedir que Deus amaldiçoe esses tais29 (Mt 5.44; 1Pe
2.21-23).
Não suplicar pela desgraça de
nossos opositores é um desafio extremamente fastidioso, pois nossa natureza
pecaminosa batalha pelo contrário disso, ou seja, amaldiçoar. Por mais difícil
que seja, devemos abençoar e orar pela conversão de nossos algozes (Lc 6.28).
Calvino relata com nitidez este axioma:
Eu disse que isso é mais
difícil do que abster-se da vingança, ao ser alguém afrontado. Pode haver
alguém que esconda suas mãos de fazer vingança e refreie seu desejo de injuriar
com seus lábios, mas que em seu coração ainda gostaria de destruir seus
inimigos, ou que fossem eles atingidos por algum dano provindo de alguma outra
fonte. Ainda que tais pessoas sejam por demais pacíficas para que desejem algum
mal a alguém, dificilmente um em cem desejará fazer o bem a alguém de quem só
tenha recebido injúrias. O fato é que a maioria das pessoas começa a lançar
suas maldições sem sentir por isso qualquer pejo. Não obstante, Deus, por meio
de sua Palavra, não só impede nossas mãos de praticarem o mal, mas também
domina os sentimentos de amargura que saturam nosso espírito.30
ii. Não devemos retribuir o mal que
recebemos da mesma forma (vs.17a)
Esta exortação negativa é um
adendo da exortação positiva, descrita no versículo 14. O cerne desta
admoestação consiste em não buscarmos a retaliação. Quando alguém nos maldiz,
se recusa a nos ajudar, nos defrauda, ou até mesmo nos agrida fisicamente, logo
surge o desejo de revidar todo o infortúnio que sofremos.
Desse modo, Paulo, aqui,
combate o desejo de vingança (1Ts 5.15; 1Pe 3.9) e o direito de assumirmos a
posição que pertence exclusivamente ao magistrado, a saber, a punição pelo
crime.
David Stern define a vingança
como ser vencido pelo inimigo, a quem você permite incitá-lo a pagar na mesma
moeda pelos impulsos do mal de sua própria velha natureza, os quais você
deveria subjugar.31 Vingar a nós mesmos é apropriar-se de uma
prerrogativa que não nos pertence. A vingança compete a Deus, somente. Gerir a
vingança é urdir contra a autoridade do nosso Senhor (Hb 10.30).
Hendriksen observa:
Mesmo no Antigo Testamento, o
mandamento “olho por olho... dente por dente” (Êx 21.24,25; Lv 24.20 e Dt
19.21) se aplica à administração pública da lei criminal (veja Lv 24.14), e foi
promulgada com o fim de desanimar a pratica de buscar a vingança pessoal. [...]
O que Paulo (aqui em Rm 12.17) proíbe - o desejo de retaliação – é o mesmo
pecado contra o qual Jesus advertiu (Mt 5.38-42; Lc 6.29, 35). Esse ensino de
nosso Senhor pode ser considerado um desenvolvimento ulterior da instrução
veterotestamentária que se encontra em Levítico 19.18, Deuteronômio 32.35 e
Provérbios 20.22.32
iii. Ao invés de sermos vingadores,
devemos dar lugar a ira (vs.19)
Conforme vimos anteriormente,
não devemos buscar a represália contra alguém que nos fez o mal. Em vez disso,
Paulo orienta-nos a dar lugar a ira. Mas,
o que significa dar lugar a ira? Existem quatro interpretações para essa
expressão.
A primeira interpretação
sugere que, ao invés de vingar a si mesmo, o cristão não deve agir
impulsivamente, reagindo ao infortúnio que sofreu, retribuindo o mal com o mal.
Antes, ele deve manter a calma e “esquecer” todo o revés ficando apenas irado,
temporariamente. A segunda interpretação, por sua vez, assinala que dar lugar a
ira é simplesmente o cristão deixar o seu inimigo descarregar toda a sua ira
nele, através de agressão física ou verbal.
A terceira interpretação
refere-se à penalidade judicial executada pelos magistrados civis contra as más
ações dos homens. Finalmente, a quarta interpretação alega que dar lugar a ira
refere-se a ira santa de Deus. Certamente, a quarta
interpretação é a mais plausível, uma vez que se harmoniza com o contexto do
próprio versículo 19b, onde Paulo cita Deuteronômio 32.35 (veja a ira de Deus
enfatizada em 1.18, 2.5; 5.9; 9.22; Ef 2.3; 1Ts 1.10; 2.16; 5.9).
Quando buscamos por vingança,
não estamos pecando apenas contra as pessoas, mas contra o próprio Deus. A
vingança pertence ao Senhor. Ele sabe exatamente como e quando retribuir cada
um segundo as suas obras. Calvino escreve:
O apóstolo, contudo, não cita
esta passagem como que para conceder-nos o direito de inflamar-se de ira assim
que formos injuriados, nem nos manda que oremos a Deus para que vingue nossas
injúrias na proporção do excitamento de nossa carne. Ele nos ensina, primeiramente,
que não é nossa tarefa exigir vingança, a menos que queiramos usurpar a
responsabilidade [e competência] divina. E, em segundo lugar, ele afirma que
não devemos temer que os ímpios se prorrompam com maior ferocidade ao ver-nos
suportar nosso sofrimento com paciência, pois Deus não assume em vão o ofício
de vingador.33
b) As Obrigações positivas (12.17b-18, 20-21)
Desta vez, Paulo vai listar o que
devemos fazer no relacionamento com os nossos inimigos. Quatro atitudes ativas
são mencionadas.
i. Devemos abençoar nossos inimigos
(vs.14a)
Em vez de retribuirmos o mal
que sofremos da mesma forma (vs.17a), buscando vingança (vs.19), devemos,
porém, abençoar aqueles que nos perseguem. Paulo reporta-se ao ensino de Jesus,
descrito em Mateus 5.44 e Lucas 6.27-28.
Abençoar, aqui, denota “solicitar a benção de Deus sobre outrem”.
A perseguição tende a gerar em
nós ressentimento e desejo de retaliação, por isso a dificuldade de anuirmos a
este preceito. Mesmo que nos reprimimos da desforra, ainda assim estaremos
interiormente eivados de ideias vingativas. Abençoar nossos inimigos demonstra
uma conduta mais difícil de exercer, embora não seja impossível para aqueles
que são regenerados e habitados pelo Espírito Santo, que os capacita para a
obediência.
Calvino acentua que não só não
podemos invocar algum mal sobre nossos inimigos, mas é também preciso desejar
que os mesmos sejam prósperos e orar para que Deus lhes faça o bem, mesmo
quando nos aborreçam e nos tratem de forma hostil. Quanto mais difícil nos
torna a prática de tais gentilezas, mais intensamente devemos esforçar-nos por
atingi-las.34
ii. Devemos tentar viver em paz com
todos (vs.18)
Paulo realça a necessidade de
vivermos em harmonia com as pessoas. A expressão se possível é, por vezes, interpretada erroneamente. Alguns
entendem que o apóstolo está exortando que, “se vocês puderem”, vivam
pacificamente com todos. Entretanto, não é isso o que Paulo quer dizer.
A frase se possível indica que nem sempre viveremos em paz com todas as
pessoas, mas que devemos tentar com afinco vivermos pacificamente. Em outras
palavras, era como se o apóstolo dissesse: vivam em harmonia com todos, exceto
se alguns tornarem isso algo impossível (Gn 3.18; Mt 5.9; Hb 12.14; Tg 3.17).
Ao longo de nossas vidas,
iremos nos deparar com pessoas hostis e rixosas. E, por vezes, manter uma
convivência pacífica com essas pessoas não será possível. Logo, a tentativa de
viver em paz com todos é um desafio.
A expressão quanto depender de vós, ou, “no que
depender de vós”, salienta que devemos batalhar para tentarmos viver em paz com
todos. Existem situações que requerem de nós tenacidade [persistência] para
mantermos a harmonia com as pessoas. John Murray atesta que a disposição e a
conduta pacífica são virtudes a serem cultivadas em nosso relacionamento com
todos os homens; não existe qualquer circunstância em que devemos suspender
nossos esforços para conservar e promover a paz.35
Em contraposição, há
circunstâncias em que não podemos abrir mão da verdade para manter uma paz
consensual e adulterada. Geoffrey Wilson assegura que, quando a verdade deve
ser sacrificada pela paz, então o preço da paz está alto demais. Nunca devemos
procurar manter a paz com o mundo ou com cristãos pelo sacrifício de alguma
parte da verdade divina. Um cristão deve estar disposto a ser impopular, para
que possa ser útil e fiel. Contra qualquer dificuldade ou oposição, ele deve
diligentemente lutar pela fé, que foi uma vez entregue aos santos.36
Hendriksen afirma com
propriedade que, se a manutenção da paz subentende o sacrifício da verdade ou
da honra, a paz deve ser abandonada (Lc 12.51-53).37 Sendo assim,
caso nossas tentativas de viver em harmonia sejam frustradas por alguns
insolentes, não estaremos pecando, uma vez que Deus não irá nos responsabilizar
pela ausência de paz.
iii. Devemos fazer o bem aos nossos
inimigos (vs.20)
O presente versículo é uma
citação de Provérbios 25.21-22. Além de não fazermos o mal aos opositores da
fé, é necessário também sermos bondosos para com eles. Não devemos apenas não revidar
o mal que os nossos inimigos fazem contra nós, mas, sobretudo, ajudá-los em
qualquer tipo de privação em que estiverem sofrendo.
Todavia, é difícil saber o que
Paulo quis dizer com a expressão amontarás
brasas vivas sobre a sua cabeça. Existem duas interpretações principais
para esta expressão.
A primeira interpretação
sugere que o “amontoar brasas de fogo sobre a cabeça dos nossos inimigos”
significa que devemos fazer o bem a eles, a fim de que o castigo divino imposto
sobre nossos algozes seja deveras maior, sabendo que não irão reconhecer o que
fizermos. Em outras palavras, o motivo de sermos bondosos para com nossos
adversários é a severa punição que irão receber de Deus.
Essa interpretação deve ser
rejeitada, pois, além de contradizer os versículos 17-19, que nos admoestam a
não sermos vingadores, e que a vingança pertence a Deus, somente, transmite a
ideia de que os nossos atos de bondade têm como objetivo o premente castigo dos
inimigos da fé; ou seja, ministrar o bem seria um meio de nos vingarmos deles.
A segunda interpretação, por
sua vez, possui algumas variações acerca do estado psicológico em que os nossos
inimigos são induzidos. Em vez de revidarmos todo o mal que sofremos dos nossos
adversários com o mal, manifestamos atos de bondade para com eles. Refutamos o
mal com o bem. Com isso, geramos em nossos oponentes um intenso sentimento de
vergonha e tristeza, onde reconhecem que suas atitudes perversas foram um erro.
Indubitavelmente, a segunda
interpretação é a mais apropriada. O “amontoar brasas de fogo sobre a cabeça
dos nossos inimigos” “refere-se a um costume antigo dos egípcios no qual uma
pessoa que quisesse demonstrar público arrependimento carregava uma panela de
brasas vivas sobre a cabeça. As brasas simbolizavam a dor ardente de sua
vergonha e culpa”.38
Lloyd Jones corrobora:
Como resultado da sua bondade,
o seu inimigo terá intenso sentimento de vergonha e remorso. Ele experimentará
uma espécie de queimação, uma penetrante angústia em sua mente, em seu coração
e em seu espírito, e a esperança que você tem é que ele sinta isso em tal
medida que será levado a examinar-se e a arrepender-se. Você o abalará e ele se
porá a reconsiderar o que lhe fez, e então verá quão terrível foi causar a você
esse mal. [...] Não se pode garantir esse resultado. Seu inimigo pode não
reagir favoravelmente, porém isso não é responsabilidade sua. A sua tarefa é
fazer tudo o que puder para leva-lo a essa condição.39
Não envergonhamos nossos
adversários sendo hostis, mas demonstrando bondade. Não vencemos nossos
inimigos pela violência, mas por nossa piedade (1Pe 2.15).
iiii. Devemos vencer o mal que
recebermos com o bem (vs.21)
Além de estar ligado ao
versículo anterior, o versículo a lume resume toda a perícope, sendo também o
ápice deste capítulo. Temos aqui um imperativo negativo e um positivo. Paulo
enfatiza o que não devemos fazer e, finalmente, o que devemos fazer.
Em primeiro lugar, o apóstolo
exorta que não devemos permitir que o mal triunfe sobre nós. O mal, neste
contexto, significa a atitude de retribuir a perversidade que sofremos de
nossos adversários da mesma forma (vs.19a). Em outras palavras, devemos lutar
para não sermos vencidos pela retaliação, obstando ao seu impulso.
Em segundo lugar, Paulo admoesta que vencemos
o mal com a prática do bem. Devemos retribuir o mal que nossos oponentes nos
infligem com expressões de bondade. É dessa maneira que triunfamos sobre a
maldade.
John Murray salienta que,
mediante a prática do bem, compete a nós sermos instrumentos que apagam a
animosidade e a má vontade daqueles que nos perseguem e maltratam. A vingança
fomenta a contenda e desperta as chamas do ressentimento. Quão sublime é o alvo
de conduzir nossos adversários ao arrependimento ou à vergonha que restringirá
e, talvez, removerá as ações malignas compelidas pela hostilidade.40
CONCLUSÃO
Só iremos cumprir os deveres
pessoais, sentimentais, espirituais, sociais e relacionais se amarmos
primeiramente a Deus (Dt 6.5). O amor ao Senhor é o alicerce dos
relacionamentos fraternais. Se o amarmos, certamente iremos amar nossos irmãos
(1Jo 4.7-8, 20-21).
Não devemos amar uns aos
outros porque é simplesmente uma obrigação estabelecida na Escritura (Mt
22.34-40; Jo 13.34-35; Rm 13.8); e também pelos méritos dos nossos irmãos.
Jamais! Pelo contrário, devemos amar uns aos outros da forma com que Deus nos
ama em Cristo, a saber, incondicionalmente!
De modo semelhante, somos
orientados pelas Escrituras a amarmos os inimigos da fé. Quando amaldiçoamos
nossos oponentes (vs.14), retribuímos o mal que nos fazem com o mal (vs.17),
buscando vingança (vs.19), a maldade prevalece e somos derrotados.
Contudo, se abençoarmos nossos
adversários (vs.14), estaremos, de fato, praticando o bem (vs.17). Se
batalharmos pela paz (vs.18), se deixarmos a vingança para Deus (vs.19), e
amarmos os nossos inimigos (vs.20), venceremos o mal com o bem. Não obteremos a
vitória sobre a maldade pelos nossos próprios esforços, porém mediante a fé.
Através da justificação, recebemos poder do Espírito Santo para amar e sermos
bondosos para com os nossos inimigos.
NOTAS:
28. John Stott. A mensagem de
Romanos, pág 405.
29. D.M. Lloyd Jones. Romanos,
volume 12, pág 524.
30. Calvino. Romanos, pág 451.
31. David Stern. Comentário
Judaico do Novo Testamento, pág 465.
32. William Hendriksen. Romanos, pág 551.
33. Calvino. Romanos, pág 457.
34. Ibid, pág 450.
35. John Murray. Romanos, pág
503.
36. Geofrey Wilson. Romanos, pág 183-184.
37. William Hendriksen. Romanos, pág 553.
38. Bíblia de Estudo
MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1517.
39. D.M. Lloyd Jones. Romanos,
volume 12, pág 606-607.
40. John Murray. Romanos, pág
507.
Autor: Leonardo
Dâmaso
Divulgação:
Reformados 21