Pré-conhecimento
Consequentemente -
estritamente falando - não se pode falar em pré-conhecimento no caso de Deus:
com ele, não há “distinções de tempo”.71 Ele chama as coisas que não
existem como se existissem e vê aquilo que não existe como se já existisse.
“Pois o que é pré-conhecimento senão o conhecimento de eventos futuros? Mas
pode alguma coisa ser futura para Deus, que ultrapassa todos os tempos? Pois se
o conhecimento de Deus inclui essas próprias coisas, elas não são futuras para
ele, mas presentes, e, por essa razão, não devemos mais falar em pré-conhecimento
de Deus, mas simplesmente em conhecimento de Deus.”72 “Tudo o que é
passado e futuro para nós é, imediatamente, presente aos seus olhos.”73 “Por mais que o tempo corra, com ele é sempre presente.”74 A divisão
da onisciência de Deus em pré-conhecimento, o conhecimento da vista (presente)
e reminiscência é uma concepção completamente humana.75
A Escritura, porém, geralmente transmite a ideia de que a onisciência de Deus precede temporalmente a existência das coisas. Sem essa imagem auxiliar, não podemos sequer falar na onisciência de Deus. Na teologia, como resultado, surgiu a questão: como essa onisciência divina pode ser articulada com a liberdade humana? Se Deus, de fato, conhece todas as coisas com antecedência, tudo está arranjado de forma concreta desde a eternidade e não há mais qualquer espaço para atos livres e contingentes. Por isso, Cícero já negava a onisciência de Deus, já que ele não conseguia harmonizá-la com a liberdade humana.76 Juntamente com a onipotência e a bondade, Marcião também negou a onisciência de Deus sobre o fundamento de que ele permitiu que a humanidade caísse em pecado.77 Em um período posterior, os socinianos ensinaram a mesma coisa. Deus conhece todas as coisas, diziam eles, mas todas as coisas de acordo com sua natureza. Portanto, ele conhece eventos futuros contingentes (acidentais), não com absoluta certeza (caso contrário, elas deixariam de ser acidentais), mas como contingentes e acidentais, isto é, ele sabe o que o futuro reserva na medida em que depende dos seres humanos, mas não com conhecimento infalível. Se esse fosse o caso, a liberdade da vontade seria perdida, Deus se tomaria o autor do pecado e ele mesmo estaria sujeito à necessidade.78
A Escritura, porém, geralmente transmite a ideia de que a onisciência de Deus precede temporalmente a existência das coisas. Sem essa imagem auxiliar, não podemos sequer falar na onisciência de Deus. Na teologia, como resultado, surgiu a questão: como essa onisciência divina pode ser articulada com a liberdade humana? Se Deus, de fato, conhece todas as coisas com antecedência, tudo está arranjado de forma concreta desde a eternidade e não há mais qualquer espaço para atos livres e contingentes. Por isso, Cícero já negava a onisciência de Deus, já que ele não conseguia harmonizá-la com a liberdade humana.76 Juntamente com a onipotência e a bondade, Marcião também negou a onisciência de Deus sobre o fundamento de que ele permitiu que a humanidade caísse em pecado.77 Em um período posterior, os socinianos ensinaram a mesma coisa. Deus conhece todas as coisas, diziam eles, mas todas as coisas de acordo com sua natureza. Portanto, ele conhece eventos futuros contingentes (acidentais), não com absoluta certeza (caso contrário, elas deixariam de ser acidentais), mas como contingentes e acidentais, isto é, ele sabe o que o futuro reserva na medida em que depende dos seres humanos, mas não com conhecimento infalível. Se esse fosse o caso, a liberdade da vontade seria perdida, Deus se tomaria o autor do pecado e ele mesmo estaria sujeito à necessidade.78
Mas essa limitação da
onisciência de Deus está tão longe de ser coerente com a Escritura que todos os
teólogos, com exceção de uns poucos, a rejeitaram. A teologia cristã, via de
regra, buscou uma solução em outra direção. Duas abordagens surgiram. Por um
lado, há Orígenes, que fez uma distinção entre pré-conhecimento e
predestinação. Deus, de fato, conhece todas as coisas com antecedência, mas
esse pré-conhecimento não é a causa e o fundamento de sua realização. Pelo
contrário, Deus só as conhece com certeza de antemão porque, no tempo, elas
estão destinadas a acontecer como resultado das decisões livres dos seres humanos:
“Elas não acontecem porque foram conhecidas, mas foram conhecidas porque iam
acontecer”.79 Por outro lado, há Agostinho, que também quer
conservar tanto o pré-conhecimento divino quanto a liberdade da vontade humana:
“A mente religiosa escolhe ambas, confessa ambas e confirma ambas pela fé da
piedade”.80 Mas ele entende que, se Deus conhece alguma coisa com antecedência,
é certo que ela acontecerá por questão de necessidade, ou toda a doutrina do
pré-conhecimento entrará em colapso. “Se o pré-conhecimento não pré-conhece as
coisas que certamente acontecerão, ele não é nada.”81 Ele, portanto,
afirma que a vontade humana, juntamente com a natureza humana e todas as suas
decisões, em vez de ser destruída pelo pré-conhecimento de Deus, é incluída nele,
estabelecida nele e sustentada por ele. “Pois, como ele pré-conhece nossa vontade, ele pré-conhece
a vontade que será realizada. Existirá, portanto, uma vontade porque ele a
pré-conheceu.”82 “Nossas vontades, consequentemente, têm tanto poder
quanto Deus quis que elas tivessem e as pré-conheceu como tendo, e, assim, seja
qual for o poder que elas tenham, elas o têm muito certamente. E seja o que for
que elas devam ser, elas muito certamente farão essas mesmas coisas, pois
aquele cujo pré-conhecimento é infalível pré-conheceu que elas teriam poder
para fazer e farão.”83 O escolasticismo, apesar das muitas distinções
que elaborou, alinhou-se, em princípio, com Agostinho.84
NOTAS:
71. Tertuliano, Against Marcion, III, 5.
72. A gostinho, Ad simplicianum, II, 2.
73. Gregorio Magno, Moralia in Iobum , 1,2 0 , c. 23; nota
do organizador: veja p. 196, n. 40.
74. Marius Victor, in
D . Petavius, “D e Deo”, in Theol.
dogm., IV, c. 4.
75. F. A. Philippi, Kirchliche Glaubenslehre, 3a. ed., 7 vols. em 10 (Gütersloh: C.
Bertelsmann, 1870-90), II, 67.
76. M arcus Tullius Cícero, De fato liber (Paris: A ndream W
echelum, 1565), c. 14; De divinatione,
II, 5-7.
77. De acordo com Tertuliano, A gainst Marcion, II, 5.
78. O. Fock, Der
Socianismus nach seiner Stellung in der Gesam m tentwicklung des christlichen
Geistes, nach seinen historischen
Verlauf u n d nach seinen L ehrbegrijf (Kiel: C. Schröder, 1847), 337-466.
79. Orígenes, in
Homilies on Genesis, I, 14; idem, Contra Celsus, II, 20. K0
Agostinho, City o f God, V, 9, 30.
81. A gostinho, De libero arbitrio, III, 4.
82. Ibid., III, 3.
83. Agostinho, City o f God, V, 9.
84. Anselm o, De Concordia praescientiae et
praedestinationes et gratiae Dei cum libero arbitrio; P. Lom bardo, Sent.,
I, dist. 38; Boaventura, Sent.,
I, dist. 38; T. de Aquino, Sum m a theol., I, q. 14; Hugo de São
Vítor, De sacramentis christianae fidei,
I, 9.
Autor: Herman
Bavinck
Trecho extraído da Dogmática Reformada: Deus e a criação, volume 2, pág 202-204.