20 de fevereiro de 2016

O Conhecimento e o Pré-conhecimento de Deus (2/2)


Pré-conhecimento

Consequentemente - estritamente falando - não se pode falar em pré-conhecimento no caso de Deus: com ele, não há “distinções de tempo”.71 Ele chama as coisas que não existem como se existissem e vê aquilo que não existe como se já existisse. “Pois o que é pré-conhecimento senão o conhecimento de eventos futuros? Mas pode alguma coisa ser futura para Deus, que ultrapassa todos os tempos? Pois se o conhecimento de Deus inclui essas próprias coisas, elas não são futuras para ele, mas presentes, e, por essa razão, não devemos mais falar em pré-conhecimento de Deus, mas simplesmente em conhecimento de Deus.”72 “Tudo o que é passado e futuro para nós é, imediatamente, presente aos seus olhos.”73 “Por mais que o tempo corra, com ele é sempre presente.”74 A divisão da onisciência de Deus em pré-conhecimento, o conhecimento da vista (presente) e reminiscência é uma concepção completamente humana.75 

A Escritura, porém, geralmente transmite a ideia de que a onisciência de Deus precede temporalmente a existência das coisas. Sem essa imagem auxiliar, não podemos sequer falar na onisciência de Deus. Na teologia, como resultado, surgiu a questão: como essa onisciência divina pode ser articulada com a liberdade humana? Se Deus, de fato, conhece todas as coisas com antecedência, tudo está arranjado de forma concreta desde a eternidade e não há mais qualquer espaço para atos livres e contingentes. Por isso, Cícero já negava a onisciência de Deus, já que ele não conseguia harmonizá-la com a liberdade humana.76 Juntamente com a onipotência e a bondade, Marcião também negou a onisciência de Deus sobre o fundamento de que ele permitiu que a humanidade caísse em pecado.77 Em um período posterior, os socinianos ensinaram a mesma coisa. Deus conhece todas as coisas, diziam eles, mas todas as coisas de acordo com sua natureza. Portanto, ele conhece eventos futuros contingentes (acidentais), não com absoluta certeza (caso contrário, elas deixariam de ser acidentais), mas como contingentes e acidentais, isto é, ele sabe o que o futuro reserva na medida em que depende dos seres humanos, mas não com conhecimento infalível. Se esse fosse o caso, a liberdade da vontade seria perdida, Deus se tomaria o autor do pecado e ele mesmo estaria sujeito à necessidade.78

Mas essa limitação da onisciência de Deus está tão longe de ser coerente com a Escritura que todos os teólogos, com exceção de uns poucos, a rejeitaram. A teologia cristã, via de regra, buscou uma solução em outra direção. Duas abordagens surgiram. Por um lado, há Orígenes, que fez uma distinção entre pré-conhecimento e predestinação. Deus, de fato, conhece todas as coisas com antecedência, mas esse pré-conhecimento não é a causa e o fundamento de sua realização. Pelo contrário, Deus só as conhece com certeza de antemão porque, no tempo, elas estão destinadas a acontecer como resultado das decisões livres dos seres humanos: “Elas não acontecem porque foram conhecidas, mas foram conhecidas porque iam acontecer”.79 Por outro lado, há Agostinho, que também quer conservar tanto o pré-conhecimento divino quanto a liberdade da vontade humana: “A mente religiosa escolhe ambas, confessa ambas e confirma ambas pela fé da piedade”.80 Mas ele entende que, se Deus conhece alguma coisa com antecedência, é certo que ela acontecerá por questão de necessidade, ou toda a doutrina do pré-conhecimento entrará em colapso. “Se o pré-conhecimento não pré-conhece as coisas que certamente acontecerão, ele não é nada.”81 Ele, portanto, afirma que a vontade humana, juntamente com a natureza humana e todas as suas decisões, em vez de ser destruída pelo pré-conhecimento de Deus, é incluída nele, estabelecida nele e sustentada por ele. “Pois, como ele pré-conhece nossa vontade, ele pré-conhece a vontade que será realizada. Existirá, portanto, uma vontade porque ele a pré-conheceu.”82 “Nossas vontades, consequentemente, têm tanto poder quanto Deus quis que elas tivessem e as pré-conheceu como tendo, e, assim, seja qual for o poder que elas tenham, elas o têm muito certamente. E seja o que for que elas devam ser, elas muito certamente farão essas mesmas coisas, pois aquele cujo pré-conhecimento é infalível pré-conheceu que elas teriam poder para fazer e farão.”83 O escolasticismo, apesar das muitas distinções que elaborou, alinhou-se, em princípio, com Agostinho.84



NOTAS:

71. Tertuliano, Against Marcion, III, 5.
72. A gostinho, Ad simplicianum, II, 2.
73. Gregorio Magno, Moralia in Iobum , 1,2 0 , c. 23; nota do organizador: veja p. 196, n. 40.
74. Marius Victor, in D . Petavius, “D e Deo”, in Theol. dogm., IV, c. 4.
75. F. A. Philippi, Kirchliche Glaubenslehre, 3a. ed., 7 vols. em 10 (Gütersloh: C. Bertelsmann, 1870-90), II, 67.
76. M arcus Tullius Cícero, De fato liber (Paris: A ndream W echelum, 1565), c. 14; De divinatione, II, 5-7.
77. De acordo com Tertuliano, A gainst Marcion, II, 5.
78. O. Fock, Der Socianismus nach seiner Stellung in der Gesam m tentwicklung des christlichen Geistes, nach seinen historischen Verlauf u n d nach seinen L ehrbegrijf (Kiel: C. Schröder, 1847), 337-466.
79. Orígenes, in Homilies on Genesis, I, 14; idem, Contra Celsus, II, 20. K0 Agostinho, City o f God, V, 9, 30.
81. A gostinho, De libero arbitrio, III, 4.
82. Ibid., III, 3.
83. Agostinho, City o f God, V, 9.
84. Anselm o, De Concordia praescientiae et praedestinationes et gratiae Dei cum libero arbitrio; P. Lom bardo, Sent., I, dist. 38; Boaventura, Sent., I, dist. 38; T. de Aquino, Sum m a theol., I, q. 14; Hugo de São Vítor, De sacramentis christianae fidei, I, 9.



Autor: Herman Bavinck
Trecho extraído da Dogmática ReformadaDeus e a criação, volume 2, pág 202-204.