Introdução
Neste artigo, pretendo
demonstrar qual a natureza e a importância da tipologia dentro da hermenêutica
bíblica, e com base nessa definição, explanar brevemente como o
dispensacionalismo e a teologia da aliança a usam, evidenciando que é
exatamente nessa área onde ambas as escolas erram.
O debate entre o
dispensacionalismo e a teologia da aliança é um dos mais acalorados e difíceis. O dispensacionalismo, como um movimento, teve inicio no século 19 na Inglaterra.
Originalmente era associado a nomes como John Darby (1805-1882), Benjamin Newton
(1807-1899) e George Muller (1805-1898); e na América do Norte, a nomes como D.
L. Moody (1837-1899), J. R. Graves (1820-1893) e C. I. Scofield (1843-1921). A
Teologia Sistemática mais extensa dentro do ponto de vista dispensacional são
os 8 volumes de Lewis Sperry Chafer.
Dentro do movimento, podemos
distinguir entre o dispensacionalismo clássico, modificado e progressivo. Este
último tem muitas similaridades com a teologia da aliança, e foi um
desenvolvimento para melhor (dentro do dispensacionalismo), e qualquer sistema
que deseja corrigir-se pelas Escrituras merece nossa apreciação. No coração do
dispensacionalismo está a distinção entre Israel e a igreja, essa é a sine qua
non dessa visão.
A teologia da aliança, como um sistema bíblico-teológico, tem suas raízes na reforma, com homens como Ulrich Zwinglio (1484-1531), Heinrich Bullinger (1504-1575), João Calvino (1509-1564), e na era pós-reforma foi sistematizada por Herman Witsius (1636-1708) e Johannes Cocceius (1603-1669), e foi habilmente apresentada na Confissão de Fé de Westminster (1643-1649), bem como em outras confissões reformadas. A teologia da aliança enfatiza a continuidade entre Israel e a igreja, e uma das implicações eclesiológicas disso é a justificativa para o batismo infantil, entendendo o batismo como idêntico a circuncisão do AT.
Os dispensacionalistas e os
não-dispensacionalistas (teologia da aliança) concordam em muitas coisas e não
deveríamos exagerar nas diferenças. A discordância que sobe ao trono para reger
esse debate é sobre a natureza e relação entre Israel e a Igreja. Entretanto,
precisamos conhecer a fonte desse embate; para isso nos voltamos agora para a
tipologia.
Tipologia:
significado e importância
Primeiramente, é de suma
importância diferenciar a tipologia da alegoria. A tipologia está fundamentada
na história, no texto, no desenvolvimento intertextual, onde várias “pessoas,
eventos e instituições” são intencionados por Deus para corresponder com
outros,1 enquanto a alegoria não está preocupada com nada disso.
Pelo fato de a alegoria não estar embasada na intenção original do autor nem
na intertextualidade, ela necessita de alguma espécie de “intratextualidade”
para fundamentar sua explanação. Nas palavras de Kevin Vanhoozer, a
interpretação alegórica é representada pela estratégia interpretativa que
declara “essa (palavra) significa esse (conceito)2 que é determinado
por um quadro extratextual.
Mas esse não é o caso da
tipologia. Ao analisarmos os seis textos no Novo Testamento que tratam explicitamente
da tipologia (Rm 5.14; 1Co 10.6; 1Pe 3.21; Hb 8.5 e 9.24), notamos um padrão
que claramente o distingue da alegoria. Mas que padrão é esse? Vamos definir
tipologia.
A tipologia como um exercício
hermenêutico do Novo Testamento é o estudo da realidade histórico-redentora do
Antigo Testamento ou “tipos” (pessoas, eventos e instituições) a qual Deu
especialmente designou para corresponder a, e profeticamente prefigurar seu
aspecto antitípico intensificado e cumprido (inaugurado e consumado) na história
da salvação no Novo Testamento.3 Dessa definição, dois pontos
precisam ser explanados:
1. Tipologia está enraizada na
realidade histórica e textual. Isso envolve uma relação orgânica entre
“pessoas, eventos e instituições” da sua própria época com as épocas
posteriores.4 Horizontes textuais e históricos são vinculados com
horizontes posteriores na revelação da redenção. Possui uma conexão orgânica
entre as promessas de Deus e seu cumprimento.5
Tipologia é profética e
preditiva. Ainda que tipologia seja diferente de profecia, pois a última é
direta enquanto a primeira é indireta,6 é o propósito de Deus que o
tipo aponte para além de si mesmo, para seu cumprimento ou “antítipo” em uma
época posterior da história da salvação. Por isso, tipologia não é mera
analogia, mas são padrões/modelos que se intensificam e apontam para sua suprema
culminação em Cristo.7
Podemos resumir o caráter da
tipologia de duas maneiras: Primeiro, envolve uma repetição do padrão
“promessa-cumprimento” na história da redenção, onde todos os tipos encontram
seu cumprimento em pessoas, eventos e instituições posteriores, mas finalmente
todos os tipos são cumpridos em Cristo. E, em segundo lugar, a tipologia tem um
caráter “a fortiori”, i.e., do menor para o maior (como a exegese rabínica Qal
wachomer), onde o tipo apresenta um escala crescente, enquanto é cumprido em seu
Antítipo na história da redenção. Sendo assim, o antítipo sempre é maior que
seu tipo. Por exemplo, Jesus, como segundo Adão, Rei Davídico, Filho de Deus, profeta,
Sumo Sacerdote, etc, é sempre maior que seus tipos anteriores (respectivamente,
Adão, Davi, Israel, os profetas e os sacerdotes).
O
erro do dispensacionalismo
O sistema teológico
dispensacionalista emprega a tipologia, mas nunca de uma maneira preditiva ou
profética no que diz respeito à terra prometida e a nação de Israel serem
“tipos” de Cristo, aquele que é o “verdadeiro Israel”. Da mesma maneira, a
teologia da aliança emprega tipologia, mas nunca em termos do princípio
genealógico da aliança abraâmica (o que veremos abaixo). É curioso observarmos
como o dispensacionalismo e a teologia da aliança empregam a tipologia em
vários lugares e chegam a resultados semelhantes. Por exemplo, ambos concordam
que Adão, Moisés, Davi, profetas, sacerdotes e reis apontavam para e foram
cumpridos em Cristo. Eles concordam que o sistema sacrificial, o
tabernáculo/templo, apontavam para a vinda de Cristo, que trouxe seu cumprimento e o grande evento do Êxodo, que antecipou a grande redenção conquistada por
Cristo.8
No entanto, ambas as visões
não empregam a tipologia em áreas que afetam seu sistema teológico, e são
nessas áreas que necessitamos ser precisamente bíblicos.
Na teologia
dispensacionalista, não se aplica a tipologia para a terra prometida e a nação
de Israel, porque segundo eles, essas coisas terão seu cumprimento literal na
era milenar. No entanto, a terra prometida era um tipo do Éden e teve seu
cumprimento na inauguração da nova criação. Dessa forma, Cristo, o antítipo de
Israel, recebe a terra prometida e a leva a seu cumprimento através da
inauguração da nova aliança que é organicamente ligada a nova criação.9
Mas o dispensacionalismo nega que a terra de Israel é um padrão tipológico e
nega que Cristo seja o antítipo de Israel.
Como nós vimos acima, o tipo é
a sombra e o antítipo é a realidade, e o significado do antítipo sempre excede
e ultrapassa o do tipo. No entanto, a visão dispensacionalista rejeita isso, e
afirma que os tipos não são necessariamente sombras, e que tanto o tipo como o
antítipo devem ter seus significados em seus respectivos contextos enquanto
mantém uma relação tipológica entre eles.10
David Baker afirma que a
tipologia não está fundamentada na exegese, e não tem a intenção de apontar
para além de si mesmo para sua realidade antitípica, mas se baseia na analogia
entre duas pessoas, eventos e instituições, os quais são conhecidos apenas
retrospectivamente; os tipos não prefiguram algo no futuro se o objeto futuro
tiver um significado diferente do contexto original do tipo. E mesmo que o Novo
Testamento interpretar o Antigo Testamento tipológicamente, a não ser que o
Novo Testamento explicitamente cancele o significado do tipo do Antigo Testamento,
o texto do Antigo Testamento ainda tem força.11
Feinberg diz que um
entendimento apropriado da tipologia nos informa que, mesmo se o NT interpreta o
AT tipológicamente, e mesmo que façamos o mesmo, isso não nos permite ignorar
ou cancelar o significado do tipo ou substituir o significado do tipo pelo do
antítipo… [Tipos] são pessoas, eventos e promessas concretas e históricas. Eles
olham para o futuro, mas não de uma maneira que faz seu significado equivalente
ao do antítipo… Os antítipos do NT nem implícita nem explicitamente cancela o
significado dos tipos do AT.12
Obviamente discordo do
conceito de tipo de Feinberg, o que me leva a uma segunda observação.
Por que Feinberg argumenta
dessa maneira? Encontramos a resposta ao longo de toda a discussão sobre o que
é essencial na teologia dispensacional, ou seja, a convicção de que a terra
prometida para o Israel étnico e Israel como nação não são tipológicos num
sentido preditivo, onde Cristo, como o novo Israel, é quem trás com ele o antítipo
da terra, que é a nova criação.
Feinberg está persuadido que adotar esse tipo de visão irá contra o que ele acredita ser a
incondicionalidade da promessa feita a Abraão. Entretanto, através de uma
exegese séria das alianças bíblicas, o texto do AT apresenta tanto a terra como
a nação como tipos e padrões de algo maior. Na aliança da criação com Adão, o
Éden é apresentado como um arquétipo, no qual posteriormente a terra prometida
olha para trás, mas também olha para frente, para a antecipação e conquista da
nova criação. Além do mais, Adão, como um “cabeça da aliança”, é o tipo do último
Adão que viria, e quando nos movemos através das alianças, Adão e o Éden são
desenvolvidos em termos de Noé, Abraão e sua semente, a nação de Israel e sua
terra, e finalmente no Rei Davídico que governaria sobre toda terra.13
De fato, enquanto as alianças são reveladas, há evidências bíblicas para
desenvolvimentos intertextuais de todos esses padrões, de maneira que quando a
nova aliança é inaugurada pelo último Adão, o verdadeiro Israel, nosso Senhor
Jesus Cristo, os tipos, que apontam para além de si mesmos, encontram seu
terminus e cumprimento em Cristo e na era da Nova Aliança.14
Entendo que essa construção da
linha histórica da Escritura é mais “bíblica”, uma vez que faz justiça como
as alianças são reveladas e encontram seu telos em Cristo.
O
erro da teologia da aliança
Mas, e quanto à teologia da
aliança? Com relação ao seu entendimento da relação entre as alianças, dois
pontos irão ilustrar onde discordo.
Primeiro, a visão da teologia
da aliança sobre o princípio genealógico está errada. É um erro pensar que o
principio genealógico da aliança Abraâmica não é reinterpretado quando nos
movemos da promessa para o cumprimento.
Sob as alianças do AT, o
principio genealógico, isto é, a relação entre o mediador da aliança e sua
semente era física (p. ex. Adão, Noé, Abraão, Davi). No entanto, agora, em
Cristo e sob Sua mediação, a relação entre Cristo e sua semente não é mais
física, mas espiritual, o que implica que o sinal da aliança deve ser
aplicado somente naqueles que de fato são a semente espiritual de Abraão.15
Esse é o coração da Nova
aliança em Jeremias 31. O Senhor iria se unir com o espiritualmente renovado
povo da aliança, onde todos iriam conhecê-lo, em contraste com a nação mista
de Israel, que quebrou a aliança. Todas as pessoas da Nova Aliança seriam
marcadas pelo conhecimento de Deus, pelo pleno perdão de seus pecados e pela
realidade da circuncisão do coração, que iria permitir que eles guardassem a
aliança e não quebrá-la.
Em outras palavras, a teologia
da aliança falha em perceber a significante progressão das alianças através da
história da redenção, particularmente a relação entre o mediador da aliança e
sua semente, não percebendo corretamente que o princípio genealógico mudou de
Abraão para Cristo, e também a “novidade” da Nova Aliança.16
A sua ênfase na continuidade
da aliança da Graça os levou a não enxergarem as diferenças entre as alianças e
a construir erroneamente a natureza da comunidade da Nova Aliança.17
Em segundo lugar, o coração do
problema da teologia da aliança é não ver consistentemente Cristo como o
antítipo de Israel. A critica é semelhante a nossa avaliação da teologia
dispensacional, mas com razões diferentes.18 No caso da teologia da
aliança, contra a teologia dispensacional, entende-se que Cristo seja o
“verdadeiro Israel”, mas se move muito rápido de Israel para a igreja, sem
primeiro pensar em como Israel como um tipo nos leva a Cristo, o antítipo, o
que acarreta em importantes implicações eclesiológicas.19 É por esse
motivo que a teologia da aliança tem errado em diferenciar os sinais das
alianças e suas comunidades.
A melhor maneira de conceber
essas relações é notando como, enquanto nos movemos do tipo para o antítipo,
dos cabeças das alianças, tais como Adão, Noé, Abraão, Moisés/Israel e Davi para
Cristo, devemos ver Israel primeiramente em relação a Cristo do que em relação à igreja.
É por isso que, como
argumento, é errôneo ver a igreja meramente como uma substituição de Israel, ou
algum tipo de “renovação” dele. De alguma maneira, a igreja é nova num sentido
histórico-redentor.20
Por causa da sua identificação
com Cristo, que é o antítipo de Israel e o cabeça da nova criação, a igreja é
um “novo homem” (Ef 2. 11-22) e sua natureza e estrutura difere da antiga
Israel.
Tudo isso é verdade pelo fato
de Cristo ter cumprido todas as alianças anteriores, e ter inaugurado uma nova
aliança. Nós, o povo da nova aliança, recebemos os benefícios da obra de Cristo
somente de uma maneira – através do arrependimento individual para com Deus e
da fé no nosso Senhor Jesus Cristo – e através da graça e do poder de Deus,
somos transferidos do estado “em Adão” para estarmos “em Cristo”, com todos os
benefícios dessa união.21
Além do mais, o NT é claro:
estar em Cristo e ser membro da nova aliança implica uma pessoa regenerada, uma
vez que o Novo Testamento não conhece nada parecido com alguém estando em
Cristo, sem ter sido chamado eficazmente pelo Pai, nascido do Espírito,
justificado, santo e aguardando a glorificação (Ver Rm 8.28-29)
Conclusão
Quando só temos extremos entre
continuidade e descontinuidade, condicionalidade e incondicionalidade,
identificação total ou distinção total, ao analisarmos as Escrituras como um
todo, e como suas partes se relacionam orgânica e progressivamente uma com as
outras, optamos por uma via média, ou seja, um meio termo entre essas duas
linhas teológicas (não simplesmente para sermos moderados, mas porque
acreditamos ser a alternativa “mais” bíblica). O debate entre a teologia da
aliança e o dispensacionalismo está longe de acabar, e espero que com esse
breve artigo, nós sejamos desafiados a sermos cada vez mais fiéis às
Escrituras, tanto em nosso pensar como em nosso agir, que digamos como Lutero:
Nossa consciência está cativa à Palavra de Deus!
NOTAS:
1. Peter Gentry e Stephen Wellum, Kingdom throught Covenant (Crossway, 2012), p. 102.
2. Kevin Vanhoozer, “Is there a meaning on the text?”
p. 119.
3. Essa definição é um sumário
da discussão de Richard Davidson, Tipology
in scripture, pp. 397-408.
4. Peter Gentry e Stephen Wellum, op. cit., p. 103.
5. Cf. Richard Lints, Fabric of theology, p. 304.
6. Grant Osborne, A
espiral hermenêutica, p. 102.
7.Cf. Gentry e Wellum.
8. Op. cit, p. 122.
9. Ibid.
10. Cf. Feinberg, Sistem
of discontinuity, p. 78.
11. Ibid, p. 77-79. David Baker, Two Testaments, One Bible, 169-189.
12. Ibid.
13. Cf. Gentry e Wellum, 124.
14. Ibid.
15. Ibid.
16. Ibid, p. 125.
17. Ibid.
18. Ibid.
19. Ibid.
20. Ibid.
21. Ibid.
Autor:
Willian Orlandi
Fonte: Novo Êxodo