Um solene contraste (2.6-8)
2.6 Pois isso está na Escritura: Eis que ponho em Sião uma
pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será, de modo algum,
envergonhado. 7 Para vós outros, portanto, os que credes, é a preciosidade;
mas, para os descrentes,
A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a
principal pedra, angular
8 e:
Pedra de tropeço e rocha de ofensa.
São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes,
para o que também foram postos.
Tendo em mente no versículo 3
o Salmo 34.8, Pedro, mais uma vez, recorre às Escrituras. Ele cita agora
explicitamente mais três passagens do Antigo Testamento, que aludem à metáfora
da pedra – Isaías 28.16, Salmo 118.22 e Isaías 8.14. A intenção do apóstolo é
elencar um contraste entre crentes e descrentes, e mostrar que a posição de
Jesus como a principal pedra angular da nova casa espiritual, que são os
próprios crentes, foi preordenada por Deus. Esta mesma pedra, que é o objeto da
fé dos crentes, é também a pedra de tropeço que submeterá os descrentes ao
julgamento final e à condenação eterna (Mt 25.46). Senão vejamos:
Se Jesus é a pedra viva, os
cristãos, de modo similar, também são pedras vivas (vs.4-5). Para confirmar essa
declaração, Pedro apela para a autoridade da Escritura, citando Isaías 28.16 no
versículo 6. A expressão por isso
introduz a citação.
Ao mesmo tempo em que o
profeta Isaías tece uma contundente denúncia contra Jerusalém (Sião) e seus
líderes religiosos corruptos (Is 28.7-21), ele também anuncia sua destruição
como resultado do juízo de Deus (Is 28.22). Porém, em meio ao cenário de
transgressão, Deus promete que aparecerá em Sião uma pedra provada, preciosa e
angular, que reconstruirá o seu povo como um edifício após o exílio.
Conforme vimos no versículo 4,
Jesus aplicou sobre si mesmo a figura da pedra descrita no Salmo 118.22 em
Mateus 21.42, no contexto da parábola dos lavradores maus. Ao tratar da
incredulidade do povo de Israel em Romanos 9.33, Paulo cita Isaías 28.16 para
demonstrar que Jesus é a pedra em Sião que os judeus rejeitaram.
Todavia, a palavra Sião aparece mais de 150 vezes no AT, principalmente nos Salmos (trinta e oito vezes), nas personificações
pictóricas de Lamentações (quinze vezes), e nos profetas, especialmente em
Isaías (quarenta e sete vezes).28 Geograficamente, Sião é:
1. Uma colina localizada ao
sudeste de Jerusalém. 2. A antiga fortaleza dos cananeus que, após Davi
conquista-la, se tornou a cidade do rei Davi (2Sm 5.6-7). 3. O monte santo,
chamado Moriá, onde Deus habita (Sl 2.6; 9.11; 76.2; 99.2; 135.21; Is 8.18) e o
lugar em que o templo de Salomão foi construído (2Sm 24.8; 2Cr 3.1). 4. A
cidade de Jerusalém (2Rs 19.21) ou a nação de Israel (Is 34.8). 5. Na
escatologia, Sião é o céu, que é a residência temporária dos crentes que morrem
antes da segunda vinda de Cristo e a terra restaurada (Hb 12.22; Ap 14.1;
21.2-3,23). Portanto, Sião, em 1 Pedro, representa a nação de Israel como o
lugar da manifestação histórica do Senhor Jesus para executar o plano da
redenção.
A expressão pedra angular aparece mais sete vezes na
Escritura – em Isaías 28.16, Salmo 118.22, Mateus 21.42, Mc 12.10, Lucas 20.17,
Atos 4.11 e Efésios 2.20. Descreve a pedra que era colocada na fundação de “um
lugar onde duas paredes seriam construídas. Ela tinha uma importância
particular para a estabilidade de toda a construção”.29 Esta pedra
suportava toda a estrutura de um edifício. A igreja está edificada sobre o
fundamento dos profetas e apóstolos, os quais se basearam na pedra angular (Ef
2.20).
Os adjetivos eleita e preciosa, utilizados por Pedro no versículo 4 como características
de Jesus como a pedra, são realçados aqui. O apóstolo extraiu estes dois
adjetivos de Isaías 28.16, na descrição que Deus Pai fez de Cristo.
A expressão e quem nela crer não será, de modo algum,
envergonhado, é enfática. A palavra grega Καταισχυνθη (kataischynthe), literalmente
envergonhado, foi traduzida pela a
ARC e BJ por “confundido”. No hebraico, essa expressão traz a ideia de alguém
que foi decepcionado naquilo que colocou a sua esperança. Mesmo que essa
expressão não apareça em Isaías 28.16, contudo o sentido do termo envergonhado na septuaginta (Antigo
Testamento em grego) é de “desapontamento”, conforme a tradução da Almeida
Século 21 e das versões inglesas NASB e TEV. Decerto, a ênfase aqui é
escatológica.
O crente que deposita a sua
confiança no Senhor Jesus, no dia do julgamento final, onde todas as coisas
estarão desnudas perante ele, não será desapontado. “Jesus Cristo, o objeto da
nossa fé, irá honrar nossa dependência nele. Ele jamais nos decepcionará, ele
não permitirá que sejamos envergonhados”.30
2. Jesus Cristo como pedra de tropeço para os descrentes
Se Jesus é a pedra preciosa
para os crentes (vs.7a), por outro lado ele é a pedra de tropeço e rocha de
ofensa para os descrentes (vs.8). Neste trecho, composto pelos versículos 7-8,
Pedro alterna os breves comentários que faz das passagens do Antigo Testamento
que cita com aplicações práticas, trazendo-as para o contexto de seus leitores.
A expressão A pedra não aparece antes do substantivo
preciosidade como na maioria das
traduções (ARC, Almeida Século 21 e BJ). Essa expressão, segundo as traduções
supramencionadas, fica implícita por conta da citação que vem a seguir (vs.7b-8), que traceja o contraste que Pedro estabelece entre crentes e descrentes. A
NVI dispôs a palavra pedra antes de
“preciosidade”. Nessa linha de pensamento, as versões inglesas RSV, KJV e NKJV,
mesmo omitindo a palavra “pedra”, traduziram o versículo como se Pedro estivesse
referindo-se a Jesus.
A chave para o entendimento do
versículo 7 se encontra no substantivo preciosidade,
que, no grego, significa “honra”. Sendo assim, os crentes são honrados por Deus
por causa de Jesus, o qual é honrado pelo Pai (vs.4,6; Mt 3.17). Então, se
Jesus é a causa da honra, os crentes o honram, enquanto os descrentes
o rejeitam (2Co 2.15-16).
Para ilustrar aqueles que
rejeitam a Cristo, Pedro cita o Salmo 118.22, que retrata a imagem da
construção. Os homens são comparados a “construtores” de uma casa. “No processo
de escolha das pedras para a construção, algumas são escolhidas, outras
rejeitadas. Aqui, ao que parece, não estão em vista pedras comuns, mas aquelas
que irão compor o alicerce, a base da construção (1Rs 5.17; 7.9-11). No Salmo
118, parece que o salmista está fazendo uso de um provérbio popular que fala de
uma coisa que é rejeitada, e mais tarde vem a se tornar de suma importância.
Assim, o Cristo rejeitado veio a ser a principal pedra da construção”.31
Historicamente, os
construtores que rejeitaram a pedra angular (“cabeça de esquina”, no grego),
que representa Cristo, são o povo de Israel e os líderes religiosos. No
entanto, Pedro aqui estende e aplica a figura dos construtores aos descrentes
de todos os tempos – aqueles que não creram, não creem e nunca irão crer em
Jesus.
3. A consequência da rejeição
Dando continuidade ao tema da
pedra que os construtores descrentes rejeitaram, Pedro, agora, salienta as
consequências dessa rejeição deliberada, citando de forma paralela Isaías
8.14-15 e 28.16 no versículo 8. O apóstolo ilustra que os descrentes tropeçam
na pedra de tropeço (Rm 9.33).
A expressão pedra de tropeço é a pedra que se
interpõe no caminho de um viajante na qual ele tropeça. A rocha de ofensa, por
sua vez, são as pedras que se desprendem nas montanhas e caem sobre os
viajantes na estrada. No contexto de Isaías 8, o próprio Deus é a pedra.
Contudo, Pedro aplica a imagem da pedra a Jesus. “A figura é que Cristo está no
caminho de todos. Para uns, torna-se bênção preciosa; para outros, tropeço do
qual não mais conseguirão refazer-se. Aquele que poderia ser o Salvador
torna-se, assim, o condenador”.32 Jesus é tanto a pedra que vive e
dá vida aos crentes quanto a pedra que esmaga os descrentes.
A expressão são estes que tropeçam na palavra,
refere-se não apenas aos judeus descrentes do tempo de Pedro que rejeitaram a
pregação de Jesus, dos apóstolos e de missionários (1.24-25), mas abarca os descrentes
de todos os tempos. Com efeito, a causa do tropeço é a incredulidade na Palavra
de Deus, que resulta em desobediência (3.1). Portanto, os desobedientes que
tropeçam na palavra são aqueles que se recusam a crer no evangelho (4.17).
Prosseguindo o tema, Pedro
assevera que os desobedientes foram colocados nesta posição de incredulidade
com a expressão para o que também foram
postos 33 ou destinados,
conforme traduziram a NVI, Almeida Século 21, ARC e BJ. Ele deixa latente que
Deus predestinou tanto a desobediência quanto a condenação eterna dos
descrentes como produto da incredulidade 34 (veja Rm 9.9-16; 21-24).
Na eternidade, Deus escolheu
salvar algumas pessoas através de Cristo e rejeitar outras. Os escolhidos são
chamados de eleitos, os não escolhidos de rejeitados. Por conseguinte, Deus
criou os céus e a terra, e decretou que todos cairiam em pecado através de Adão,
o representante federal da humanidade. Quando ele pecou, tanto os eleitos
quanto os rejeitados pecaram. Todos pecaram (Rm 3.23)! Destarte, os rejeitados
encontram-se na posição que fora decretada, isto é, reservados para a
condenação eterna. Os eleitos, por sua vez, aguardam a aplicação da obra
redentora em suas vidas no momento estabelecido por Deus e a conclusão da
salvação pelo regresso de Cristo. A base da rejeição, portanto, não
reside no pecado, mas na absoluta escolha soberana de Deus. A rejeição é o
decreto de Deus desde a eternidade baseado exclusivamente em sua vontade (Sl
115.3).
Todavia, é importante observar
que a eleição é individual, não coletiva (Rm 9.9-11). Deus elege pessoas que
compõe a igreja para a salvação (Ef 1.4-14). Da mesma forma, a rejeição também
é individual, não coletiva (Rm 9.13). Deus condena as pessoas que compõe o
grupo de desobedientes. A eleição e a rejeição também não dependem de quem crê
ou não crê, mas exclusivamente da soberania de Deus na escolha dos eleitos (Jo 6.44; 1Ts 5.9) e dos descrentes rejeitados (Jo 10.26; 1Ts
5.9). Conforme disse Lutero: “A fé e a incredulidade chegam até nós não pela
nossa própria obra, mas através do amor e [ou] do ódio de Deus”.35 A
rejeição de Deus não é uma atitude injusta; pelo contrário, é o justo decreto
divino de manifestar a sua ira sobre aqueles que o rejeitam e vivem
deliberadamente em pecado por escolha própria (Rm 1.21-32; 9.22). Deus é bom e
justo, e tudo o que ele faz é bom e justo (Sl 119.68a; 145.9; 7.11a).
No entanto, mesmo que todas as
coisas foram preordenadas por Deus, no dia do julgamento ele condenará os
descrentes pela incredulidade. Os homens são moralmente responsáveis por todas
as suas escolhas. Eles pecam no sentido de que decidem pecar. Esta disposição
de pecar é o resultado do decreto de Deus trazido à existência pelo seu poder.
Logo, a causa determinante da rejeição é a soberania de Deus, e a causa
determinante da causa da rejeição – “o pecado dos descrentes” – também é a
soberania de Deus, que é compatível não com a liberdade “fora dos decretos”,
mas com a responsabilidade do homem. Isto posto, entendemos que “as pessoas são
condenadas porque são desobedientes (tropeçam), mas a desobediência delas não
acontece à parte da vontade soberana e irrepreensível de Deus”.36
NOTAS:
28. Merril Tenney. Enciclopédia da Bíblia – Vol 5, pág 600.
29. Bíblia de Estudo Genebra. Notas de Rodapé, pág 1682.
30. Simon Kistemaker. Epístolas de Pedro e Judas, pág 121.
31. Ênio Mueller. 1 Pedro – Introdução e Comentário, pág 131-132.
32. Ibid, pág
133.
33. Adoto o ponto de vista
supralapsariano na interpretação do versículo 8b.
34. Todos os verbos anteriores
presentes neste trecho (vs.1-7) estão no presente e são ativos. Porém, no
versículo 8b, o verbo foram postos ετέφησαν
(tithemi), está no passado passivo, indicando uma ação concluída pelo próprio
Deus. Assim, Pedro escreve que os
descrentes foram “destinados” por Deus a tropeçarem por causa da própria
desobediência às Escrituras da perspectiva humana, e não porque ele “previu”
isso, como ensina o arminianismo.
35. Vincent Cheung citando
Lutero em seu comentário de Efésios,
pág 21-33.
Autor:
Leonardo Dâmaso
Trecho extraído do Comentário
Expositivo de 1 Pedro do autor.