A predestinação parece lançar
uma sombra exatamente no coração da liberdade humana. Se Deus decidiu nossos
destinos desde toda a eternidade, isso sugere fortemente que nossas livres
escolhas não são senão charadas, exercícios vazios de atuação teatral predeterminada.
É como se, na realidade, Deus tivesse escrito o roteiro para nós, e
estivéssemos meramente encarregados do cenário.
Para lidarmos com a enigmática
relação entre predestinação e livre-arbítrio, precisamos primeiro definir
livre-arbítrio. Essa definição é, ela mesma, um assunto de grande debate. Provavelmente
a definição mais comum seja a que diz que o
livre-arbítrio é a capacidade de fazer escolhas sem nenhum preconceito,
inclinação ou disposição anteriores. Para o arbítrio ser livre, é preciso
agir a partir de uma postura de neutralidade, sem absolutamente nenhuma
tendência.
Na superfície isto é muito
atraente. Não há elementos de coerção, nem externos nem internos a serem
encontrados aí. Embaixo da superfície, contudo, estão à espreita dois sérios
problemas. Por um lado, se fazemos nossas escolhas estritamente a partir de uma
postura natural, sem nenhuma inclinação anterior, então fazemos nossas escolhas
sem nenhuma razão. Se não temos nenhuma razão para nossas escolhas, se nossas
escolhas são totalmente espontâneas, então nossas escolhas não têm nenhum
significado moral. Se uma escolha apenas acontece, apenas surge, sem nenhuma
rima ou razão, então não pode ser julgada boa ou má. Quando Deus avalia nossas
escolhas, Ele está interessado em nossos motivos.
Considere o caso de José e seus irmãos. Quando José foi vendido como escravo por seus irmãos, a providência de Deus estava operando. Anos mais tarde, quando José se reuniu com seus irmãos no Egito, declarou-lhes: Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; mas Deus o tornou em bem... (Gn 50.20). Aqui o motivo era o fator decisivo determinando se o ato era bom ou mau. O envolvimento de Deus no dilema de José era bom; o envolvimento dos irmãos era mau. Havia uma razão pela qual os irmãos de José o venderam como escravo. Tinham uma motivação má. Sua decisão não foi espontânea nem neutra. Tinham ciúme de seu irmão. Sua escolha de vendê-lo foi incitada por seus maus desejos.
O segundo problema que esta
visão popular enfrenta não é tanto moral como é racional. Se não há nenhuma
inclinação ou desejo anteriores, nenhuma motivação anterior, ou razão para uma
escolha, como pode uma escolha ser feita? Se a vontade é totalmente neutra, por
que iria escolher a direita ou a esquerda? É algo como o problema encontrado
por Alice no País das Maravilhas, quando chegou a uma bifurcação na estrada.
Ela não sabia para que lado ir. Ela viu o radioso gato Cheshire na árvore.
Perguntou ao gato: "Para que lado devo seguir?" O gato replicou:
"Para onde você está indo?" Alice respondeu: "Não sei"
" Então", disse o gato Cheshire: "isso não importa."
Considere o dilema de Alice.
Na realidade ela possuía quatro opções entre as quais escolher. Ela poderia ter
tomado a variante da direita ou a variante da esquerda. Ela também poderia ter
escolhido voltar pelo caminho por onde tinha ido. Ou poderia ter ficado parada
no lugar de indecisão até que morresse ali. Para que ela desse um passo em
qualquer direção, precisaria de alguma motivação ou inclinação para fazê-lo.
Sem nenhuma motivação, nenhuma inclinação anterior, sua única opção real seria
ficar parada ali e perecer.
Outra famosa ilustração do
mesmo problema é encontrada na história da mula que tinha desejo neutro. A mula
não tinha desejos anteriores, ou desejos iguais em duas direções. Seu
proprietário pôs uma cesta de aveia à sua esquerda e uma cesta de trigo à sua
direita. Se a mula não tivesse nenhum desejo, tanto pela aveia como pelo trigo,
ela não escolheria nenhum e passaria fome. Se ela tivesse uma disposição
exatamente igual para a aveia como tinha para o trigo, ainda assim iria passar
fome. Sua disposição igual a deixaria paralisada. Não haveria motivo. Sem
motivo, não haveria escolha. Sem escolha, não haveria comida. Sem comida, logo
não haveria mula.
Precisamos rejeitar a teoria
da vontade neutra não somente porque é irracional, mas porque, como veremos,
é radicalmente antibíblica. Os
pensadores cristãos nos
deram duas definições muito importantes de livre-arbítrio. Vamos considerar primeiro a definição
oferecida por Jonathan Edwards, em sua obra clássica Sobre a Liberdade da Vontade.
Edwards definiu a vontade como
"a escolha da mente". Antes de fazermos quaisquer escolhas morais, precisamos
primeiro ter alguma ideia do que é que estamos escolhendo. Nossa seleção é
então baseada naquilo que a mente aprova ou rejeita. Nosso entendimento de
valores tem um papel crucial a representar em nossa tomada de decisão. Minhas
inclinações e motivos, assim como minhas escolhas efetivas são moldadas pela
minha mente. Outra vez, se a mente não está envolvida, então a escolha é feita
por nenhuma razão e sem nenhuma razão. É então um ato arbitrário e moralmente
insignificante. Instinto e escolha são duas coisas diferentes.
Uma segunda definição de
livre-arbítrio é a capacidade de escolher
o que queremos. Isto se apoia no importante fundamento do desejo humano.
Ter livre-arbítrio é ser capaz de escolher de acordo com nossos desejos. Aqui o
desejo desempenha o papel vital de prover uma motivação ou uma razão para se
tomar uma decisão.
Agora a parte enganosa. De acordo
com Edwards, um ser humano não somente é capaz de escolher o que deseja, como
precisa escolher o que deseja, simplesmente para ser capaz de escolher. O que
eu chamo de Lei da Escolha de Edwards é esta: A vontade sempre escolhe de acordo com sua mais forte inclinação do
momento. Isto significa que toda escolha é livre e toda escolha é determinada.
Eu disse que era enganoso. Soa
como uma clara contradição dizer que toda escolha é livre e ainda assim toda
escolha é determinada. Determinada, aqui, não significa que alguma
força externa compele a vontade. Em vez disso, refere-se à motivação ou desejo
interno de alguém. Em poucas palavras, a lei é esta: Nossas escolhas são
determinadas por nossos desejos. Elas continuam sendo nossas escolhas porque
são motivadas por nossos próprios desejos. Isto é o que chamamos de autodeterminação,
que é a essência da liberdade.
Pense um pouco sobre suas
próprias escolhas. Como e por que elas são feitas? Neste exato momento você
está lendo as páginas deste livro. Por quê? Você pegou este livro porque você
tinha um interesse no assunto da predestinação, um desejo de aprender mais
sobre este complexo assunto? Talvez. Talvez este livro tenha sido dado a você
para ler como uma tarefa. Talvez você esteja pensando: "Não tenho nenhum
desejo de ler isto. Tenho de lê-lo, e estou me arrastando com dificuldade com
isto para cumprir o desejo de outra pessoa de que eu o lesse. Todas as coisas
sendo iguais, eu nunca escolheria ler este livro".
Mas todas as coisas não são
iguais, são? Se você está lendo este livro por causa de algum tipo de dever, ou
para atender uma necessidade, você ainda teve de tomar uma decisão a respeito
de atender uma necessidade ou não atender a requisição. Você obviamente decidiu
que era melhor ou mais desejável que você lesse este livro do que o deixasse
sem ler. Até aí tenho certeza, ou você não o estaria lendo bem agora.
Toda decisão que você toma é
feita por uma razão. Na próxima vez que você for a um lugar público e escolher
um assento (um teatro, uma sala de aula, uma igreja), pergunte a você mesmo por
que você está sentado onde está. Talvez seja o único assento disponível e você
prefere sentar-se a ficar em pé. Talvez você descubra que existe um padrão
quase inconsciente emergindo de suas decisões a respeito de sentar-se. Talvez
você descubra que, sempre que possível, você se senta mais na frente ou mais no
fundo. Por quê? Talvez tenha algo a ver com a sua vista. Talvez você seja
tímido ou gregário. Você pode pensar que você se senta onde se senta por
nenhuma razão, mas o assento que você escolhe será sempre escolhido pela inclinação
mais forte que você tiver no momento de decisão. A inclinação pode ser
meramente que o assento mais próximo de você está livre e você não gosta de
andar longas distâncias para encontrar um lugar onde se sentar.
Tomada de decisão é um assunto
complexo porque as opções que encontramos frequentemente são muitas e variadas.
Acrescente a isso o fato que nós somos criaturas com muitos e variados desejos.
Temos motivações diferentes, muitas vezes mesmo conflitantes.
Considere o assunto dos
sorvetes de casquinha. Sim, eu tenho problemas com sorvetes de casquinha e com
sundaes. Se for possível ser viciado em sorvete, então eu devo ser classificado
como um viciado em sorvete. Estou pelo menos oito quilos acima de meu peso, e
estou certo de que pelo menos dez dos quilos que compõem o meu peso estão lá
por causa de sorvete. O sorvete é, para mim, uma prova do adágio, "Um
segundo nos lábios; para sempre nos quadris". E, "Indulgentes
engordam." Por causa do sorvete tenho de comprar minhas camisas com tamanho
extra na cintura. Agora, todas as coisas sendo iguais, eu gostaria de ter um
corpo magro e ajeitado. Não gosto de me espremer nos ternos e de ver senhoras de
idade dando tapinhas na minha barriga. Dar tapinhas na barriga parece ser uma
tentação irresistível para algumas
pessoas. Eu sei o que tenho de fazer para me livrar desses quilos em excesso.
Preciso parar de tomar sorvete. Assim, começo uma dieta. Começo porque eu quero
começar uma dieta. Quero perder peso. Quero ter melhor aparência. Tudo está bem
até que alguém me convida para ir ao Swenson's. O Swenson's faz os melhores
"Super Sundaes" do mundo. Eu sei que não deveria ir ao Swenson's.
Mas eu gosto de ir ao Swenson's. Quando chega o momento de decisão, fico face a
face com desejos conflitantes. Tenho o desejo de ser magro e tenho o desejo de
tomar um "Super Sundae". Qualquer desses desejos que for maior na
hora da decisão é o desejo que vou escolher. É simples assim.
Agora considere minha esposa.
Enquanto nos preparamos para celebrar nossas bodas de prata, estou consciente
de que ela tem exatamente o mesmo peso que tinha no dia em que nos casamos.
Seu vestido de noiva ainda lhe
serve perfeitamente. Ela não tem maiores problemas com sorvete. A maioria dos
restaurantes oferece só sorvetes de creme, chocolate e morango. Qualquer um
desses me dá água na boca, mas não consegue enlaçar minha esposa. Ah, ah! Mas
existe uma certa sorveteria que tem praliné e sorvete de chantilly. Quando
vamos ao shopping center e passamos por ela, minha esposa experimenta uma
estranha transformação. Seu passo desacelera, suas mãos ficam frias, e eu quase
posso detectar um começo de salivação (Isso mesmo, salivação e não salvação).
Agora ela experimenta o conflito de desejos que me assaltam diariamente.
Nós sempre escolhemos de
acordo com nossa mais forte inclinação do momento. Mesmo atos externos de
coação não podem tirar totalmente nossa liberdade. A coação envolve agir com
algum tipo de força, impondo escolhas para pessoas que, se deixadas a si
mesmas, não fariam. Eu certamente não tenho desejo de pagar o tipo de imposto
de renda que o governo me faz pagar. Posso me recusar a pagá-lo, mas as consequências
são menos desejáveis do que pagá-lo. Ameaçando-me com cadeia, o governo é capaz
de impor sua vontade sobre mim para pagar impostos.
Ou considere o caso do roubo a
mão armada. Um assaltante aproxima-se de mim e diz: "Seu dinheiro ou sua
vida". Ele assim restringiu minhas opções a duas. Todas as coisas sendo
iguais, não tenho desejo de dar meu dinheiro a ele. Há obras de caridade muito
mais merecedoras do que ele. Mas, de repente, meus desejos mudaram como
resultado de seu ato externo de coação. Ele está usando a força para provocar certos
desejos em mim. Agora preciso escolher entre meu desejo de viver e meu desejo
de dar a ele o que ele quer. Eu poderia muito bem lhe dar meu dinheiro porque,
se ele me matar, levará meu dinheiro de qualquer jeito. Algumas pessoas
poderiam escolher recusar-se, dizendo: "Eu preferiria morrer a entregar o
que tenho a este assaltante. Ele terá de tirá-lo de meu cadáver".
Em qualquer dos casos, é feita
uma escolha. E é feita de acordo com a mais forte inclinação do momento. Pense,
se puder, em qualquer escolha que você já fez que não estivesse de acordo com a
inclinação mais forte que você tinha no momento. Que dizer do pecado? Todo
cristão tem algum desejo em seu coração de obedecer a Cristo. Amamos Cristo e
queremos agradá-lo. Ainda assim, todo cristão peca. A dura verdade é que, no
momento em que pecamos, desejamos o pecado mais fortemente do que desejamos
obedecer a Cristo. Se desejássemos sempre obedecer a Cristo mais do que
desejamos pecar, nunca pecaríamos.
O apóstolo Paulo não ensina
diferentemente? Ele não nos conta uma situação em que ele age contra seus
desejos? Ele diz em Romanos: Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal
que não quero, esse faço (Rm 7.19). Aqui soa como se, sob a inspiração de
Deus Espírito Santo, Paulo estivesse ensinando claramente que há vezes em que
ele age contra suas mais fortes inclinações.
É extremamente improvável que
o apóstolo esteja aqui nos dando uma revelação sobre a operação técnica da
vontade. Em vez disso, ele está declarando plenamente o que cada um de nós tem
experimentado. Todos temos o desejo de escapar do pecado. A síndrome do
"todas as coisas sendo iguais" está em vista aqui. Todas as coisas
sendo iguais, eu gostaria de ser perfeito. Eu gostaria de ficar livre do
pecado, como gostaria de ficar livre de meu excesso de peso. Mas meus desejos
não permanecem constantes. Eles flutuam. Quando meu estômago está cheio, é
fácil entrar numa dieta. Quando meu estômago está vazio, meu nível de desejo
muda. Tentações se levantam com a mudança de meus desejos e apetites. Então
faço coisas que, todas as coisas sendo iguais, eu não desejaria fazer.
Paulo coloca perante nós
exatamente o verdadeiro conflito dos desejos humanos, desejos que levam a más
escolhas. O cristão vive dentro de um campo de batalha de desejos conflitantes.
O crescimento cristão envolve o fortalecimento dos desejos de agradar a Cristo,
acompanhado do enfraquecimento dos desejos de pecar. Paulo chamou isso de
guerra entre a carne e o espírito. Dizer que sempre escolhemos de acordo com
nossa inclinação mais forte do momento é dizer que sempre escolhemos o que queremos.
Em cada ponto da escolha somos livres e autodeterminados. Ser autodeterminado
não é a mesma coisa que determinismo. Determinismo significa que somos forçados
ou coagidos a fazer coisas por forças externas. As forças externas podem, como
temos visto, limitar severamente nossas opções, mas não podem destruir
completamente a escolha. Elas não podem impor prazer nas coisas que odiamos.
Quando isso acontece, quando o ódio se torna em prazer, é uma questão de
persuasão, e não de coação. Não posso ser forçado a fazer aquilo que já tenho
prazer em fazer. A visão neutra do livre-arbítrio é impossível. Envolve escolha
sem desejo. É como ter um efeito sem uma causa. É alguma coisa a partir do
nada, que é irracional. A Bíblia torna claro que escolhemos a partir de nossos
desejos. Um desejo maligno produz escolhas malignas e ações malignas. Um desejo piedoso produz atos piedosos. Jesus
falou em árvores corruptas produzindo frutos corruptos. Uma figueira não dá
maçãs e uma macieira não dá figos.
Assim, desejos justos produzem
escolhas justas e maus desejos produzem
escolhas más.
Autor: R.C.
Sproul
Trecho extraído do livro Eleitos de Deus, pág 37-44. Editora: Cultura Cristã