Um dos textos do Antigo
Testamento mais usados para defender as danças litúrgicas é o Salmo 150. Ele é
lido como prova incontestável que havia danças como parte da liturgia dos
cultos no Antigo Testamento realizados no templo de Deus em Jerusalém. Como consequência,
dançar, ter grupos de coreografia e ministério de dança profética durante os
cultos das igrejas evangélicas de hoje não somente é permitido, como também
ordenado por Deus.
Eis o Salmo 150 de acordo com a versão Almeida Atualizada, provavelmente a mais popular no Brasil:
1 Aleluia! Louvai a Deus no
seu santuário; louvai-o no firmamento, obra do seu poder.
2 Louvai-o pelos seus
poderosos feitos; louvai-o consoante a sua muita grandeza.
3 Louvai-o ao som da trombeta;
louvai-o com saltério e com harpa.
4 Louvai-o com adufes e
danças; louvai-o com instrumentos de cordas e com flautas.
5 Louvai-o com címbalos
sonoros; louvai-o com címbalos retumbantes.
6 Todo ser que respira louve
ao SENHOR. Aleluia!
A argumentação é a seguinte: O
verso 1 manda que louvemos a Deus no seu “santuário”, isto é, no templo
terreno, o local oficial da adoração a Deus, onde se realizava o culto por Ele
determinado. Em seguida, vem uma descrição deste culto, e em meio à relação dos
instrumentos utilizados, se menciona no verso 4 as “danças”. A conclusão
aparente é que as danças faziam parte do culto oferecido a Deus no seu templo
em Jerusalém. Pronto, temos aqui a base para as danças litúrgicas no culto
hoje.
Mas, será que é isso mesmo que
o Salmo está dizendo? Ou ainda, será que podemos inferir do Salmo que as danças
faziam parte da liturgia do templo? E mais, se de fato é isso mesmo que o
Salmo está mostrando, temos aqui uma base para as danças litúrgicas e grupos de
coreografia em nossos cultos?
Já disse que não considero o dançar em si como
algo pecaminoso, e que não tenho problemas com danças nas comunidades cristãs
como expressão cultural e social em outros ambientes que não o culto a Deus. O
que pretendo aqui neste post é mostrar que o Salmo 150 não pode ser tomado como
base incontestável para a prática das danças litúrgicas e coreográficas nos
cultos cristãos.
Vou começar admitindo, por um
momento, que o Salmo 150 está falando do templo em Jerusalém e de danças
durante o culto. A pergunta, que deveria ter sido feita desde o início, é se o
culto cristão toma sua inspiração, gênese e formato do culto do Antigo
Testamento. Para mim, a resposta é negativa, embora com qualificações.
O culto do templo é geralmente
visto no Novo Testamento como parte da lei cerimonial, cumprida em Cristo e,
portanto, abolida. A carta aos Hebreus trata deste assunto. Um dos melhores
professores de Antigo Testamento que conheço me escreveu recentemente, falando
deste assunto, "O que acontecia no Templo não passa nem perto do que
acontece nos melhores dos nossos cultos hoje, pois o serviço no Templo encenava
a expiação". Os sacrifícios de animais, as cerimônias de purificação, a
ordem dos levitas e dos sacerdotes, os rituais de oferecimentos das ofertas, a
queima de incenso, a oferta diária dos pães, tudo isto é considerado como parte
da antiga dispensação, que era simbólica, típica, e que foi plenamente cumprida
em Cristo: não temos mais sacrifícios – o Senhor Jesus ofereceu de uma vez um
sacrifício completo, que não precisa ser renovado e repetido; não temos mais
sacerdotes e levitas – os cristãos, todos eles, são sacerdotes e levitas. A
queima de incenso é substituída pelo louvor que procede nossos lábios. O
templo, que era santo e sagrado, agora é a Igreja de Cristo, a comunidade dos
eleitos de Deus, e não os templos de nossas igrejas locais.
Ao que tudo indica, os
cristãos deram continuidade ao culto no Antigo Testamento apenas no que se
refere aos princípios espirituais: a ideia de encontro com Deus, de adoração,
de louvor, de solenidade, de alegria, de serviço espiritual como povo do
Senhor... mas foram buscar nas sinagogas o formato para este culto mais simples
e despojado. Nas sinagogas, instituição onde cresceram o Senhor Jesus e todos
os apóstolos, havia leitura e pregação da Palavra, orações, cânticos e bênção.
Portanto, devemos ter cautela
em transferir para o culto cristão aquilo que era feito no templo de Jerusalém
– admitindo por um instante que havia danças no culto ali. Por falta deste
cuidado, a Igreja Católica tem um culto em muito similar ao do Antigo
Testamento: eles têm o sacrifício da missa, sacerdotes que são mediadores entre
Deus e homens e que perfazem este sacrifício, estolas sacerdotais e mitra,
queima de incenso, etc.
Mas, na verdade, não é certo
que o Salmo 150 esteja falando de danças no templo. Em primeiro lugar, a
palavra santuário mencionada no verso 1 nem sempre significa o local da
adoração em Jerusalém, onde o culto determinado por Deus era realizado de acordo
com todos os seus preceitos. A palavra b’kadoshu,
significa literalmente “em seu santo”. Logo, sua tradução primeira seria “em
seu santuário” e não “em seu Templo”. Precisamos, portanto, considerar a
possibilidade de que o santuário de Deus aqui referido não é o local físico do
templo, mas o local da sua santa habitação, ou seja, os céus.
Uma evidência a favor desta
tradução e interpretação é que no mesmo verso somos chamados a adorar a Deus no
“firmamento”, que declara o seu poder. Se considerarmos que aqui no verso 1
temos um caso de paralelismo, tão comum na poesia hebraica, conclui-se que aqui
santuário e firmamento são a mesma coisa:
Louvai a Deus no seu
santuário;
Louvai-o no firmamento, obra
de seu poder.
Encontramos o mesmo paralelismo no Salmo 11.4:
O Senhor está no seu santo
templo;
Nos céus tem o Senhor seu
trono;
Fica evidente que o santo
templo de que fala o salmista são os céus, onde Deus tem o seu trono. Outra
passagem é o Salmo 102.20:
O Senhor observa do alto do
seu santuário;
Lá do céu ele olha para a
terra.
Mais uma vez, é evidente que o
santuário referido é o céu, de onde Deus observa os homens. Levando em
consideração o escopo do Salmo 150, o paralelismo hebraico e estes outros
salmos que identificam o santuário de Deus com os céus, é perfeitamente
possível concluir que aqui, no Salmo 150, “santuário” se refere à morada
celestial de Deus e não ao templo físico de Jerusalém. E logo, o apelo do verso
1 pode ser entendido como dirigido aos homens e anjos para que louvem a Deus,
que habita em sua morada celestial.
Em segundo lugar, a palavra
que a Almeida Atualizada traduziu como danças tem outros
significados, alguns dos quais se encaixam muito melhor no contexto. A palavra mahol, que aparece no verso 4 e é
traduzida como “danças” pela Almeida Atualizada, pode significar “flauta”. A
própria Almeida Atualizada traduziu mahol
como “flauta” no Salmo 149: louvem-lhe o nome com flauta; cantem-lhe salmos
com adufe e harpa. Admito que os contextos são diferentes, pois no Salmo 150 mahol vem precedido dos adufes e tamborins, que marcam o ritmo. De qualquer forma, se vê que a palavra pode ter
outro sentido que não dançar.
Várias traduções do Salmo
150:4 traduziram mahol como “flauta”,
como a Almeida Corrigida, a Bíblia de Genebra 1599, a Reina Valera 1909, entre
outras (“coral”, Douay-Rheims).
Calvino, em seu comentário dos
Salmos, preferiu traduzir como “flauta”.
Temos que admitir que a
maioria das traduções preferiu “danças”. Em minha opinião, é perfeitamente
possível. Todavia, se o salmista estiver se referindo a um instrumento musical,
como “flauta”, se encaixa perfeitamente no contexto, pois os versos 3-5 estão
mencionando instrumentos musicais usados em Israel, como trombeta, saltério,
harpa, adufes, instrumentos de cordas, flautas, címbalos sonoros e címbalos
retumbantes. Estes versos não estão dando uma descrição do que se fazia no
culto a Deus executado no templo, mas apenas enumerando os
instrumentos musicais de toda espécie, todos eles convocados para o louvor de
Deus.
Se levarmos em consideração as
variáveis acima, o Salmo 150 pode ser simplesmente um chamado universal a
anjos, homens e animais para que louvem a Deus. E que os homens o façam com
toda sorte de instrumentos musicais. Não está falando do culto no templo terreno nem de danças.
Alguém poderia legitimamente
indagar: "Se Deus aceita as danças no seu alto e sublime lugar, no
santuário celestial, será que Ele se desagradaria das danças no local da
adoração terrena?" A única resposta que eu tenho para isto é que a maneira
que temos de saber o que agrada a Deus ou não em seu culto hoje é mediante o
estudo do Novo Testamento. O que Deus prescreve para o culto dos cristãos?
Certamente não encontraremos uma liturgia detalhada, uma sequência dos atos de
culto. Mas encontraremos os princípios espirituais que governam este culto e os
elementos que dele devem constar. E entre estes, não acharemos as danças.
Mas não quero insistir demais
neste ponto. O que eu gostaria apenas de deixar claro neste post é que o Salmo
150 não pode ser usado como prova cabal e final de que as danças faziam
parte do culto a Deus oferecido em seu templo em Jerusalém, e que
em consequência devemos ter danças nos cultos cristãos de hoje.
Não considero este assunto tão
central à fé que eu tenha que me separar de quem pensa diferente. Se você quer
dançar no culto, dance. Não vou considerá-lo um pagão por isto. Mas não me
venha dizer que é bíblico, e que aqueles que pensam diferente de você serão
condenados como Mical, que criticou Davi quando dançava.
Autor:
Augustus Nicodemus Lopes
Fonte: O Tempora, O Mores