21 de julho de 2016

Análise da expressão "Desceu ao Hades"


8. Procedência e legitimidade da inserção da especificidade do artigo "Desceu ao Hades" no Credo

Além disso, não convém omitir sua descida às regiões infernais, cuja importância não é de pouco valor para a efetivação da redenção. Ora, se bem que dos escritos dos antigos, este artigo que se lê no Credo parece não ter sido particularmente usado outrora nas Igrejas; contudo, em se tratando da suma da doutrina, é preciso dar-lhe o lugar necessário, visto que ele contém mistério excelente e longe de desprezar-se de matéria da máxima relevância. Há, na verdade, também alguns dentre os antigos que não o omitem, donde é lícito conjeturar que, inserido após certo decurso de tempo, tornou-se costumeiro às igrejas não de imediato, mas gradualmente.

Isto, certamente, está fora de controvérsia: que ele foi tomado pelo consenso de todos os piedosos, uma vez que ninguém há dentre os patrísticos que não registre em seus escritos a descida de Cristo às regiões infernais, ainda que divergindo na interpretação. Mas, pouco importa de quem, ou em que tempo, foi ele primeiramente inserido. Antes de tudo, deve-se atentar para isto no Credo: que ele constitui, em todas as partes, a suma plena e absoluta da fé, no qual nada se deve introduzir, senão o extraído da puríssima Palavra de Deus. Não obstante, se alguns relutam em admitir esta cláusula, por razão que logo ficará evidente, se verá de quão grande interesse é ela para a suma de nossa redenção, de tal sorte que, se for excluída, se perde muito do fruto da morte de Cristo.266

Há também, por outro lado, os que afirmam que aqui não se diz algo novo, mas apenas se repete, em outras palavras, o que fora antes dito acerca do sepultamento, uma vez que nas Escrituras amiúde se emprega o termo Inferno em lugar de sepultura. Os que argumentam quanto ao sentido do termo, concedo ser verdadeiro, ou seja, não raro se toma inferno por sepultura, porém apresentam duas razões, às quais eu sou prontamente induzido a dissentir deles. Ora, de quão grande displicência teria sido em seguida, em virtude de um conjunto mais obscuro de palavras, complicar mais do que esclarecer algo que está longe de difícil, o que já foi exposto em palavras francas e claras? Com efeito, quantas vezes duas expressões que exprimem a mesma coisa são encadeadas na mesma conexão, devendo a segunda ser uma explicação da primeira. Mas, na verdade, que tipo de explicação será esta, se quem assim fala: “que Cristo foi sepultado” quer dizer “que ele desceu às regiões infernais”?

Em segundo lugar, não é provável que nesta síntese, na qual resumidamente, quanto se pode fazer no menor número de palavras, se compendiam os principais artigos da fé, pudesse infiltrar-se, sorrateira, uma repeticiosidade tão supérflua. Nem nutro dúvida de que prontamente hajam de concordar comigo quantos tenham ponderado um pouco mais diligentemente esta questão.

9. Improcedência da interpretação de que Cristo desceu ao Hades para libertar os justo ali aprisionados 

Outros o interpretam diferentemente, dizendo que Cristo desceu às almas dos patriarcas que haviam morrido sob a lei, para que lhes levasse a proclamação da redenção consumada, e as livrasse do cárcere onde se mantinham encerradas. E para isto invocam, indevidamente, os testemunhos do Salmo: “porque Deus haverá de quebrar as portas de bronze e as trancas de ferro” (Sl 107.16). De igual forma, de Zacarias: “que Deus redimirá os cativos do poço em que não havia água” (Zc 9.11). Como, porém, o Salmo vaticina os livramentos daqueles que, cativos em regiões longínquas, estão confinados em cadeias, Zacarias, porém, compara a calamidade babilônica a um poço ou abismo profundo e seco em que o povo fora lançado, e ao mesmo tempo ensina que a salvação de toda a Igreja é a saída das profundezas inferiores. Não sei como haja acontecido que a posteridade imaginasse existir um lugar subterrâneo a que deram o nome de limbo. Mas, a despeito de esta fábula contar com grandes autores, e é hoje também seriamente defendida por muitos como sendo a verdade, entretanto não passa de fábula. Ora, a ideia de encerrar as almas dos mortos em um cárcere é pueril. Que necessidade, pois, houve de a alma de Cristo descer ali para que ele as libertasse?

De bom grado, aliás, admito que Cristo as haja iluminado pelo poder de seu Espírito, de sorte que reconhecessem que a graça foi então exibida ao mundo, a qual haviam degustado apenas em esperança. E, com razão provável, aqui se pode aplicar a passagem de Pedro, na qual ele diz que Cristo foi e pregou aos espíritos que estavam em uma “torre de observação”, que traduzem comumente por prisão (1Pe 3.19). Ora, até mesmo o contexto nos conduz a isto: que os fiéis que morreram antes desse tempo foram co-participantes conosco da mesma graça, pois que Pedro daí amplia o poder da morte de Cristo, que tenha ela penetrado até os mortos, enquanto as almas piedosas têm desfrutado da visão atual dessa visitação, que haviam ansiosamente esperado. Por outro lado, fez-se mais patente aos réprobos que eles estão excluídos de toda salvação. Entretanto, o fato de Pedro não falar tão distintivamente, não se deve assim tomar como se, sem qualquer discriminação, esteja ele misturando os piedosos com os ímpios. Ao contrário, ele quer apenas ensinar que foi comum a uns e outros o significado da morte de Cristo.

10. Descer ao Hades é expressão dos tormentos espirituais que Cristo sofreu em nosso lugar

Mas, em referência à descida de Cristo às regiões infernais, deixada de parte a consideração do Credo, é preciso buscar uma explicação mais certa. E a Palavra de Deus nos é patenteada, não apenas como santa e pia, mas também plena de maravilhosa consolação. Nada se teria passado, se Cristo tivesse experimentado apenas a morte corporal. Pelo contrário, era ao mesmo tempo necessário que ele sentisse a severidade da vingança divina, para que não só se visse sujeito à ira, como também nele o justo juízo fosse satisfeito. Ademais, ele se viu obrigado a lutar, por assim dizer, de mãos travadas,267 com as hostes dos infernos e com o horror da morte eterna.

Pouco antes referimos do Profeta que “foi imposto sobre ele o castigo de nossa paz”; que “ele foi ferido” pelo Pai “por causa de nossas transgressões”; que “foi esmagado por causa de nossas enfermidades” (Is 53.5), palavras com as quais significa ter-se submetido por fiador, avalista e até mesmo como culpado, em lugar dos transgressores, para que pagasse e saldasse todas as penas que deles se deveriam exigir, excetuado apenas isto: que “não podia ser retido pelos tormentos da morte” (At 2.24). Portanto, nada há de surpreendente dizer-se que ele desceu às regiões infernais, uma vez que tenha ele sofrido esta morte infligida aos pecadores por um Deus irado.

É por demais frívola, e até mesmo ridícula, a objeção daqueles que dizem que desse modo se transtorna a ordem, porquanto é absurdo que ao sepultamento se ponha o que o precedeu, pois no Credo, onde foram expostas as coisas que Cristo sofreu à vista dos homens, anexa-se apropriadamente aquele julgamento invisível e incompreensível que manteve diante de Deus, para que saibamos não só que o corpo de Cristo foi entregue por preço de redenção, mas houve também um preço maior e mais excelente, a saber, que ele sofreu na alma os terríveis tormentos de um homem condenado e perdido.




NOTAS:

266. Primeira edição: “que se nos constitui plena e, em toda as partes, suma absoluta da fé, no qual nada se introduz, senão o extraído da mui pura Palavra de Deus. Se, com efeito, a relutância impede a alguns de admiti-lo no Credo, entretanto, bem logo se fará evidente de quão grande interesse [é ele] à suma de nossa redenção, de [tal] sorte que [em sendo] ele posto de parte, depereça muito do fruto da morte de Cristo.”
267. Primeira edição: “De onde, ademais, se Lhe impôs lutar, dir-se-ia de mãos travadas...”



Autor: João Calvino
Trecho extraído das Institutas, volume 2, capítulo 16, pág 265-268. Edição clássica (latim). Editora: Cultura Cristã