Além disso, não convém omitir
sua descida às regiões infernais, cuja importância não é de pouco valor para a
efetivação da redenção. Ora, se bem que dos escritos dos antigos, este artigo
que se lê no Credo parece não ter sido particularmente usado outrora nas
Igrejas; contudo, em se tratando da suma da doutrina, é preciso dar-lhe o lugar
necessário, visto que ele contém mistério excelente e longe de desprezar-se de
matéria da máxima relevância. Há, na verdade, também alguns dentre os antigos que
não o omitem, donde é lícito conjeturar que, inserido após certo decurso de tempo,
tornou-se costumeiro às igrejas não de imediato, mas gradualmente.
Isto, certamente, está fora de
controvérsia: que ele foi tomado pelo consenso de todos os piedosos, uma vez
que ninguém há dentre os patrísticos que não registre em seus escritos a
descida de Cristo às regiões infernais, ainda que divergindo na interpretação. Mas,
pouco importa de quem, ou em que tempo, foi ele primeiramente inserido. Antes
de tudo, deve-se atentar para isto no Credo: que ele constitui, em todas as
partes, a suma plena e absoluta da fé, no qual nada se deve introduzir, senão o
extraído da puríssima Palavra de Deus. Não obstante, se alguns relutam em
admitir esta cláusula, por razão que logo ficará evidente, se verá de quão
grande interesse é ela para a suma de nossa redenção, de tal sorte que, se for
excluída, se perde muito do fruto da morte de Cristo.266
Há também, por outro lado, os
que afirmam que aqui não se diz algo novo, mas apenas se repete, em outras
palavras, o que fora antes dito acerca do sepultamento, uma vez que nas
Escrituras amiúde se emprega o termo Inferno em lugar de sepultura. Os que argumentam
quanto ao sentido do termo, concedo ser verdadeiro, ou seja, não raro se toma
inferno por sepultura, porém apresentam duas razões, às quais eu sou
prontamente induzido a dissentir deles. Ora, de quão grande displicência teria
sido em seguida, em virtude de um conjunto mais obscuro de palavras, complicar
mais do que esclarecer algo que está longe de difícil, o que já foi exposto em
palavras francas e claras? Com efeito, quantas vezes duas expressões que exprimem
a mesma coisa são encadeadas na mesma conexão, devendo a segunda ser uma explicação
da primeira. Mas, na verdade, que tipo de explicação será esta, se quem assim
fala: “que Cristo foi sepultado” quer dizer “que ele desceu às regiões
infernais”?
Em segundo lugar, não é
provável que nesta síntese, na qual resumidamente, quanto se pode fazer no
menor número de palavras, se compendiam os principais artigos da fé, pudesse
infiltrar-se, sorrateira, uma repeticiosidade tão supérflua. Nem nutro dúvida
de que prontamente hajam de concordar comigo quantos tenham ponderado um pouco
mais diligentemente esta questão.
9. Improcedência da interpretação de que Cristo desceu ao Hades para libertar os justo ali aprisionados
Outros o interpretam
diferentemente, dizendo que Cristo desceu às almas dos patriarcas que haviam
morrido sob a lei, para que lhes levasse a proclamação da redenção consumada, e
as livrasse do cárcere onde se mantinham encerradas. E para isto invocam,
indevidamente, os testemunhos do Salmo: “porque Deus haverá de quebrar as
portas de bronze e as trancas de ferro” (Sl 107.16). De igual forma, de Zacarias:
“que Deus redimirá os cativos do poço em que não havia água” (Zc 9.11). Como,
porém, o Salmo vaticina os livramentos daqueles que, cativos em regiões longínquas,
estão confinados em cadeias, Zacarias, porém, compara a calamidade babilônica a
um poço ou abismo profundo e seco em que o povo fora lançado, e ao mesmo tempo
ensina que a salvação de toda a Igreja é a saída das profundezas inferiores.
Não sei como haja acontecido que a posteridade imaginasse existir um lugar
subterrâneo a que deram o nome de limbo. Mas, a despeito de esta fábula contar com
grandes autores, e é hoje também seriamente defendida por muitos como sendo a
verdade, entretanto não passa de fábula. Ora, a ideia de encerrar as almas dos
mortos em um cárcere é pueril. Que necessidade, pois, houve de a alma de Cristo
descer ali para que ele as libertasse?
De bom grado, aliás, admito
que Cristo as haja iluminado pelo poder de seu Espírito, de sorte que
reconhecessem que a graça foi então exibida ao mundo, a qual haviam degustado
apenas em esperança. E, com razão provável, aqui se pode aplicar a passagem de
Pedro, na qual ele diz que Cristo foi e pregou aos espíritos que estavam em uma
“torre de observação”, que traduzem comumente por prisão (1Pe 3.19). Ora, até
mesmo o contexto nos conduz a isto: que os fiéis que morreram antes desse tempo
foram co-participantes conosco da mesma graça, pois que Pedro daí amplia o poder
da morte de Cristo, que tenha ela penetrado até os mortos, enquanto as almas
piedosas têm desfrutado da visão atual dessa visitação, que haviam ansiosamente
esperado. Por outro lado, fez-se mais patente aos réprobos que eles estão excluídos de toda salvação. Entretanto, o
fato de Pedro não falar tão distintivamente, não se deve assim tomar como se,
sem qualquer discriminação, esteja ele misturando os piedosos com os ímpios. Ao
contrário, ele quer apenas ensinar que foi comum a uns e outros o significado
da morte de Cristo.
10. Descer ao Hades é expressão dos tormentos espirituais que Cristo sofreu em nosso lugar
Mas, em referência à descida
de Cristo às regiões infernais, deixada de parte a consideração do Credo, é
preciso buscar uma explicação mais certa. E a Palavra de Deus nos é patenteada,
não apenas como santa e pia, mas também plena de maravilhosa consolação. Nada
se teria passado, se Cristo tivesse experimentado apenas a morte corporal. Pelo
contrário, era ao mesmo tempo necessário que ele sentisse a severidade da
vingança divina, para que não só se visse sujeito à ira, como também nele o
justo juízo fosse satisfeito. Ademais, ele se viu obrigado a lutar, por assim dizer,
de mãos travadas,267 com as hostes dos infernos e com o horror da
morte eterna.
Pouco antes referimos do
Profeta que “foi imposto sobre ele o castigo de nossa paz”; que “ele foi
ferido” pelo Pai “por causa de nossas transgressões”; que “foi esmagado por
causa de nossas enfermidades” (Is 53.5), palavras com as quais significa ter-se
submetido por fiador, avalista e até mesmo como culpado, em lugar dos transgressores,
para que pagasse e saldasse todas as penas que deles se deveriam exigir,
excetuado apenas isto: que “não podia ser retido pelos tormentos da morte” (At
2.24). Portanto, nada há de surpreendente dizer-se que ele desceu às regiões infernais,
uma vez que tenha ele sofrido esta morte infligida aos pecadores por um Deus
irado.
É por demais frívola, e até
mesmo ridícula, a objeção daqueles que dizem que desse modo se transtorna a
ordem, porquanto é absurdo que ao sepultamento se ponha o que o precedeu, pois
no Credo, onde foram expostas as coisas que Cristo sofreu à vista dos homens,
anexa-se apropriadamente aquele julgamento invisível e incompreensível que
manteve diante de Deus, para que saibamos não só que o corpo de Cristo foi
entregue por preço de redenção, mas houve também um preço maior e mais
excelente, a saber, que ele sofreu na alma os terríveis tormentos de um homem
condenado e perdido.
NOTAS:
266. Primeira edição: “que se
nos constitui plena e, em toda as partes, suma absoluta da fé, no qual nada se
introduz, senão o extraído da mui pura Palavra de Deus. Se, com efeito, a
relutância impede a alguns de admiti-lo no Credo, entretanto, bem logo se fará
evidente de quão grande interesse [é ele] à suma de nossa redenção, de [tal]
sorte que [em sendo] ele posto de parte, depereça muito do fruto da morte de
Cristo.”
267. Primeira edição: “De
onde, ademais, se Lhe impôs lutar, dir-se-ia de mãos travadas...”
Autor: João
Calvino
Trecho extraído das Institutas, volume 2, capítulo 16, pág
265-268. Edição clássica (latim).
Editora: Cultura Cristã