Nas linhas seguintes
apresentarei alguns pontos com relação aos motivos pelos quais penso que o
teonomismo não faz jus à teologia bíblica das Escrituras. De semelhante modo,
incluirei alguns comentários exegéticos sobre várias passagens bem como
diretrizes bíblico-teológicas mais abrangentes.
Primeiramente, esclareçamos os
termos aqui abordados. O teonomismo pode ser definido como uma perspectiva
teológica que crê que as leis civis do Antigo Testamento são aplicáveis aos
governos atuais. NÃO É uma perspectiva que acredita que as leis cerimoniais ou
o sistema de sacrifícios ainda estejam em vigor. As pessoas geralmente confundem
essa diferenciação. O termo teonomismo,
em si, se origina da junção de duas palavras gregas: theos, que significa “Deus”, e nomos,
que quer dizer “lei”. Os teonomistas se opõem completamente a qualquer
tentativa por parte do homem de determinar a lei por si mesmo. Desse modo,
contestam a autonomia (a lei própria). Da mesma forma, também se contrapõem à
abordagem dos “dois reinos”1 que vários reformados adotam
atualmente. Agora, contudo, devo apontar primeiramente uma reserva, a saber, a
minha concordância com os teonomistas em vários pontos.
Por exemplo, não creio que a estrutura geral da lei humana deva ser autônoma. Acredito que Deus outorgou a lei moral na natureza [humana], e não apenas nas Escrituras. Isso é demonstrado em Romanos 2:12-16. Portanto, é necessário realizar a exegese apropriada para essa passagem. A expressão “sem lei” não significa “destituído de lei”, antes, quer com isso dizer que os gentios não possuíam a lei que fora dada no Sinai. O versículo 14 clarifica o que Paulo pretende dizer: os gentios são lei para si mesmos. Isso NÃO significa autonomia, mas diz respeito à lei moral escrita em seus corações, como o versículo 15 explicitamente afirma. A Confissão de Fé de Westminster toca nisso quando diz que a lei moral foi dada a Adão como um pacto de obras. Se foi dada a Adão, então foi dada a toda humanidade. Esse é o conceito de lei natural. É evidente, portanto, que se uma nação gentílica, ainda que não tenha a lei entregue no Sinai, ainda assim se governa de acordo com muitos dos mesmos princípios conforme os Dez Mandamentos; portanto, podemos estar certos de que eles, os gentios, regem a si mesmos de acordo com a lei moral impressa no coração humano, isto é, a lei natural.
Uma vez admitida essa reserva, podemos agora
nos debruçar sobre a trajetória do desenvolvimento bíblico-teológico que vai do
Antigo ao Novo Testamento, de modo que podemos chegar a esta importante
conclusão: a trajetória do Israel do Antigo Testamento não nos conduz aos
governos modernos, mas sim à Igreja. Ora, presumivelmente vários teonomistas
afirmariam que tal trajetória vai do Israel do Antigo Testamento em direção à
Igreja e, depois, ao Estado moderno, enquanto que os críticos do teonomismo
diriam que os governos modernos não estão incluídos nessa linha. Examinemos
algumas passagens bíblicas com o intuito de corroborar nosso posicionamento:
A primeira passagem é o
Evangelho de Mateus tomado como um todo.
O Evangelho de Mateus,
especialmente, demonstra claramente (pelo menos a maioria dos atuais eruditos
do Novo Testamento já notaram tal característica) que Jesus revive a história
de Israel. Ora, assim como Israel foi tirado do Egito, também Jesus foi chamado
para fora do Egito (cf. Mateus 2:15 citando Oséias 11:1). No contexto de Oséias
é bastante claro que Deus está se referindo a Israel. E, todavia, Mateus
utiliza o versículo para se referir a Jesus. Como isso é possível senão com base
na teoria de que Jesus é o novo Israel? Mais ainda, da mesma forma como Israel
foi tentado 40 anos no deserto, assim Jesus foi tentado durante 40 dias no
deserto (Mateus 4). Assim como Israel adentrou na Terra Prometida conduzido por
Josué (a forma veterotestamentária do nome de Jesus), Cristo também conduz a
igreja aos novos céus e à nova terra. Dito de outra forma, Jesus é o caminho
por meio do qual alguém deve se tornar parte de Israel.2 Não é fora
de Jesus, mas em Jesus, que somos agora os filhos crentes de Abraão (conforme
Gálatas 3:9 deixa claro: De modo que os
da fé são abençoados com o crente Abraão).
A segunda passagem é Gálatas
6:16:
E,
a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia
sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus.
Ora, muita tinta já foi gasta
com relação à forma como a palavra “e” deve ser interpretada. Se ela significa
“em adição a”, então a passagem apoia o dispensacionalismo, uma vez que o
Israel de Deus é um grupo separado do “eles” disposto anteriormente no
versículo. Contudo, a palavra aqui é quase certamente epexegética3,
podendo ser traduzido da seguinte maneira:
E,
a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia
sejam sobre eles, isto é, o Israel de Deus.
Em outras palavras,
interpretado nesse modo, o Israel de Deus é o mesmo grupo designado pelo “eles”
anteriormente no verso. Dado ainda a confirmação em Gálatas 3:7 (“Sabei, pois,
que os da fé é que são filhos de Abraão”) e Gálatas 3:29 (“E, se sois de
Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”),
bem como o modo no qual o Apóstolo esteve tratando acerca da “Jerusalém do
alto” em Gálatas 4:26-27, parece claro que Paulo não possui dois grupos em
mente, mas apenas um. Os povos da fé são os verdadeiros filhos de Abraão.
Em outras palavras, Jesus Cristo é o ápice da
trajetória do Israel do Antigo Testamento, e, portanto, a Igreja está em
Cristo. Consequentemente, não faz sentido dizer que os governos modernos
deveriam se gerir segundo os princípios que foram dados ao Israel do Antigo
Testamento enquanto tal. Porém, o teonomistas provavelmente hão de replicar
dizendo que a lei civil do Israel veterotestamentário pertence compartilha da
mesma essência que a lei moral dada nos Dez Mandamentos, bem como sua
aplicação. De fato, assim o é. Contudo, trata-se de uma aplicação dos Dez
Mandamentos para um povo e lugar particulares. Os mesmos princípios se aplicam
de diferentes formas na igreja hoje. Afinal de contas, como se deduz da
argumentação bíblico-teológica fornecida acima, os princípios da lei civil do
Israel do Antigo Testamento deveriam ser aplicados à igreja nos dias atuais
(segundo os argumentos do teonomismo), da mesma forma como deveriam ser
aplicados nos governos. E eu concordaria com isso, contanto que estivéssemos
nos referindo à equidade geral. Todavia, os princípios do Novo Testamento para
o governo da Igreja não dizem nada a respeito da espada. Pelo contrário, as
armas são espirituais, pois nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas
contra inimigos espirituais. A propósito, Efésios 6, por sinal, é uma das
razões pelas quais creio que há uma nítida linha separatória entre o exercício
das guerras santas do Israel veterotestamentário e o hodierno confronto
espiritual no qual a Igreja se encontra.
E, por último, não há nada em
Romanos 13 que não possa ser explicado com base na lei natural tal como citado
anteriormente. O magistrado civil está aí para punir o mal. Afinal, Deus o
constitui para a execução de tal tarefa. A lei moral foi implantada no coração
dele. Desse modo, deve se constituir como um terror para aqueles que praticam o
mal. Contudo, não é tarefa do magistrado civil executar um garoto por ter
amaldiçoado seus pais (como era, de fato, nas leis civis do Antigo Testamento).
Instruir e exercer a disciplina eclesiástica são tarefas da Igreja. Em lugar
algum no Novo Testamento algum autor diz que o governo civil deve governar de
acordo com a lei civil veterotestamentária. Pelo contrário, toda vez que o
governo civil é mencionado, é em relação à lei moral natural.
NOTAS:
1. A doutrina dos “dois
reinos” diz respeito à visão de Lutero segundo a qual o crente e a cultura se
encontram em permanente tensão e relação paradoxal. Tal visão afirma que a
cultura humana não é essencial ou necessariamente má, no entanto, o cristão, na
vida e prática, encontrará certamente com alguns obstáculos. Portanto, há o
“reino do mundo” e o “reino de Deus”, esferas de autoridades que, embora
distintas, coexistem e, por isso, relacionam-se. Desse modo, os crentes vivem
em um reino, porém devem obediência irrestrita a outro. Uma vez que a Lei e os
padrões morais de Deus são, na sua quase totalidade, repudiados pelos homens,
fica evidente que os cristãos deparar-se-ão com a oposição. Contudo, como a teologia
reformada posteriormente defendeu ferrenhamente (especialmente na corrente
neocalvinista de Kuyper, Bavinck, Dooyweerd, Vollenhoven, dentre outros), é
dever do cristão cumprir o Mandato Cultural, tentando, na medida de suas
capacidades e objetivando a glória de Deus, reconstruir ou restaurar a cultura
em sua totalidade.
2. O versículo que talvez
retrate de forma mais clara e precisa o fato de Cristo ser antítipo de Israel é
Lucas 9:31, na passagem conhecida como a transfiguração. O versículo, na versão
Almeida Revista e Atualizada, diz o seguinte: os quais apareceram em glória e
falavam da sua partida, que ele estava para cumprir em Jerusalém. A tradução
não nos permite compreender plenamente todo o significado da passagem; assim,
recorrendo ao original, vemos que a palavra traduzida por João Ferreira de
Almeida como “partida” é, no grego, ἔξοδον,
literalmente “êxodo”. No original: οἳ ὀφθέντες ἐν δόξῃ ἔλεγον
τὴν ἔξοδον
αὐτοῦ ἣν ἔμελλεν
πληροῦν ἐν Ἱερουσαλήμ (Lc
9:31 BYZ). O apóstolo Pedro também utiliza o mesmo termo em 2 Pe 1:15.
3. A epexegese é definida,
segundo o dicionário Michaelis, como a “explanação que segue a uma palavra ou
parte maior de um texto, limitando sua aplicação ou esclarecendo o seu
significado; aposição: Ex.: A Grande Guerra, a primeira guerra mundial. 2 Informação
adicional. Calvino, comentando o versículo 5 do capítulo 1 de Colossenses,
aponta para o uso frequente da aposição (ou epexegese) nas cartas paulinas. O
reformador diz: “Também estou bem ciente de que, segundo o idioma hebraico,
Paulo faz uso frequente do genitivo no lugar de um epíteto; mas as palavras de
Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho κατ΄ εζοχην (a guisa
de eminência), a palavra da verdade, com vistas a depositar honra nela, para
que mais pronta e firmemente aderissem à revelação que têm derivado daquela
fonte. Assim, introduz-se o termo evangelho à guisa de aposição.
Autor: Lane Keister
Tradução:
Fabrício Tavares
Divulgação: Reformados 21