4 de dezembro de 2015

O ato de profetizar e determinar: Uma análise histórica, teológica e a apologética (2/3)


2. Análise teológica

Conforme vimos na introdução, as palavras profetizar e determinar (ou decretar) não são sinônimos, isto é, não possuem o mesmo significado, porém estão relacionadas entre si. Analisarei o ato de “profetizar e determinar bênçãos” na parte apologética deste ensaio. Destarte, vejamos, então, as implicações do ato de profetizar no contexto do Antigo, do Novo Testamento e no tempo presente.    

a) O ato de Profetizar no Antigo Testamento

A profecia no Antigo Testamento era dada aos profetas através de palavras inspiradas vindas diretamente de Deus (Nm 22.35; Is 51.16; 59.21; Ez 2.6-7; 3.4, 10), de teofanias (Êx 3; Nm 20.16, Js 5.13-15, Jz 6.11-24; 13), sonhos (Gn 37.5-11; 1Rs 3.5) e visões (Gn 15.1; Nm 12.6; 1 Sm 3.1-21; Mq 1.1). Um homem não era profeta necessariamente porque recebia sonhos, visões, por ter realizado algum milagre, por ter feito predições e as mesmas se cumprirem nem tampouco por se auto intitular profeta. Antes, um homem era profeta porque recebeu o chamado direto de Deus para esta vocação, como Moisés (Êx 4.10-13), Jeremias (Jr 1.1-2), Amós (Am 7.14-15), Ezequiel (Ez 2.6-7; 3.26-27), dentre outros.
                                   
Profetizar, no Antigo Testamento, enfatizava dizer antecipadamente, por inspiração divina, o que há de suceder no futuro; abarcava também expor verbalmente ou pela escrita eventos profetizados que já haviam se cumprido historicamente (veja, como exemplo, Dt 9.25-29; 1Cr 16.15-22; Ne 1.8-10; Sl 105.5-45; Jr 32.20-24; Dn 9.13-15). Palmer Robertson diz que profecia não deveria ser definida principalmente como a predição do futuro. Ao contrário, ela é a transmissão da revelação de Deus que ocasionalmente pode envolver eventos futuros.9

No entanto, hoje não existem mais profetas do calibre dos profetas do Antigo Testamento, ou seja, que recebem, falam e registram palavras inspiradas vindas diretamente de Deus, que recebem sonhos, visões e que fazem predições. Esta questão será expandida a seguir, no ato de profetizar no Novo Testamento.

Todavia, o papel do profeta no Antigo Testamento não consistia em adivinhar a vida das pessoas. Nenhum profeta do Antigo Testamento manifestou tal atitude como vemos os “profetas modernos” das igrejas de viés pentecostal e neopentecostal fazerem. Pelo contrário, a adivinhação é uma prática comum de religiões e seitas pagãs como o montanismo, xamanismo, esoterismo, religiões afro que envolvem o candomblé, umbanda e quimbanda, espiritismo, dentre outras.    

Contudo, mais do que teofanias, sonhos e visões, profetizar, no Antigo Testamento, era comunicar a vontade de Deus ao povo. Os profetas eram os porta-vozes de Deus que anunciavam “o que Ele haveria de fazer e o comportamento que requeria do seu povo. Essas coisas foram primeiramente anunciadas verbalmente pelos profetas e posteriormente registradas por eles”10, que não eram apenas prognosticadores no sentido de prever eventos futuros, como o anúncio do cativeiro babilônico, descrito em Jeremias 25.1-13; 29.10, mas, sobretudo, homens capacitados por Deus para falarem a sua Palavra exortando e convocando o povo a se arrepender de seus pecados e a se voltar para Deus (Jr 1.1-10; Jn 1.1-2; 3.1-10; Ag 1; 2; Zc 1.1-6).

Quando o profeta transmitia a mensagem inspirada da parte de Deus verbalmente ou pela escrita, ele não o fazia como alguém que simplesmente reproduzia palavra por palavra que Deus havia lhe dito, nem tampouco em frenesi (pulando, rodopiando, gritando), que é o comportamento usual que pessoas adeptas de seitas e religiões sincréticas como o neopentecostalismo manifestam em seus ditos cultos. O profeta era um agente de Deus que falava as suas palavras, mas suas características pessoais não eram suprimidas. Ele transparecia sua formação acadêmica, social e econômica na transmissão verbal ou pela escrita. Assim, Deus usava o profeta de acordo com a sua capacidade e estilo. Ele transmitia a mensagem divinamente inspirada sem anular suas próprias características e sem deixar de ser fiel às palavras que ouviu.  

b) O ato de profetizar no Novo Testamento

A profecia no Novo Testamento foi tão importante e necessária quanto à profecia no Antigo Testamento. Ainda estavam presentes no começo do período do Novo Testamento profetas com as características dos profetas do Antigo Testamento. Alguns falavam da parte de Deus mais no anonimato, uma vez que a ênfase no Novo Testamento não era mais revelacional como no Antigo Testamento, pois o Novo Testamento complementa e elucida o Antigo; ou seja, o Antigo Testamento é a promessa; o Novo Testamento é o cumprimento”11, especialmente o cumprimento das promessas e profecias acerca da redenção. 

Um profeta que esteve interposto entre o período do Antigo e do Novo Testamento foi João Batista. Ele saia pelas ruas e lugares ermos proclamando a plenos pulmões a vontade de Deus. Anunciou a vinda do reino de Deus (Mt 3.1-2), profetizou a vinda de Jesus Cristo e o pentecostes (Mt 3.3, 11-12), pregou sobre a redenção (Jo 1.29) e, também, uma mensagem ética instando o povo a se arrepender de seus pecados (Mt 3.5-10). Por outro lado, no Novo Testamento, ainda houve profetas como Ágabo, por exemplo, que profetizou acerca da fome que haveria de acontecer em Jerusalém no tempo do governo de Cláudio (At 11.28) e que Paulo seria preso (At 21.10-11).

No Novo Testamento, profetizar se refere mais especificamente a descrever verbalmente através da pregação do evangelho ou pela escrita fatos profetizados que já haviam ocorrido historicamente (veja, como exemplo, as pregações de Pedro em At 2.14-36; 3.12-26; 4.8-12, a pregação de Estevão em At 7.1-50 e a pregação de Paulo em Atenas, na Grécia, em At 17.22-34).

Contudo, não estou dizendo que não havia um número significativo de profecias de natureza escatológica no Novo Testamento. Pelo contrário, Mateus, Pedro, João, Lucas, Paulo, dentre outros, falaram e escreveram inspirados pelo Espírito Santo acerca de eventos que se cumpriram historicamente no passado (veja Mt 24.19-20; At 2.16-18; Jo 21.15-23; Lc 21.20-23; At 20.29-32) e sobre eventos que ainda vão se cumprir historicamente no futuro (veja Mt 24.29-31; At 2.19-21; Ap 8; 9; 11.3-19; 18; 20.11-15; 21; Lc 21.25-27; 1Ts 5.1-3; 2Ts 2.1-12). Feita essa observação, entendemos a importância que o mistério profético teve no período apostólico, visto que o cânon das Escrituras do Novo Testamento estava sendo composto.

Heber Carlos de Campos afirma que o dom de profecia era absolutamente importante para a vida da igreja neotestamentária. Sem a manifestação deste dom a igreja haveria de padecer, pois os profetas eram a vida da igreja, as molas mestras que empurravam a igreja para frente, fazendo com que ela seguisse os caminhos indicados pelo Senhor.12 Devido a sua importância, Paulo fez questão de mencionar o dom de profecia nas quatro listas de dons apresentadas por ele em Romanos 12; 1 Coríntios 12; 14 e Efésios 4. Augustus Nicodemus Lopes corrobora que a profecia neotestamentária não é o descobrimento e revelação, em público, de pecados ocultos de pessoas presentes, mas mensagens exortativas na forma de instrução bíblica, baseadas em interpretações ex tempore das Escrituras.13

Assim como o profeta no Antigo Testamento, o profeta no Novo Testamento também não adivinhava fatos que estavam ocorrendo no presente na vida das pessoas, como doenças, problemas conjugais, financeiros nem pressupunha fatos futuros incertos de acontecer, como os “profetas pentecostais e neopentecostais” fazem. O comportamento que estes “profetas modernos” demonstram para com os crentes a fim de terem credibilidade é, indubitavelmente, manipulação psicológica, hipnose e manifestações espetaculares (Jr 14.14). A Adivinhação é um pecado condenado por Deus nas Escrituras (Lv 19.26c; Dt 18.10-14). Sendo assim, profetizar não é adivinhar, antes, é edificar, exortar e consolar as pessoas [a igreja] através da pregação do evangelho (1Co 14.3).
                                
c) Distinção dos profetas do Antigo Testamento, dos apóstolos e dos profetas das igrejas locais    

Para que possamos compreender plenamente a questão do ato de profetizar no contexto do Antigo e Novo Testamento, é necessário delinearmos a diferença que existe entre os profetas do Antigo Testamento, dos apóstolos e dos profetas das igrejas locais. Portanto, uma das melhores formas de compreender os apóstolos e os profetas do Novo Testamento é compará-los com os profetas do Antigo. Vejamos, pois:

i. Os profetas do Antigo Testamento

1. Eles foram chamados

Neste período, homens como Moisés, Jeremias, Isaías, Ezequiel, Amós, entre outros, foram chamados diretamente por Deus para exercerem o ofício profético. O profeta do Antigo Testamento era uma autoridade oficial, isto é, um representante de Deus entre o povo. Sua autoridade adivinha da vocação divina, que também era passada publicamente a ele pelo ministério de outro profeta, como no caso de Eliseu, que foi o substituto do profeta Elias (veja 1Rs 19.6).

2. Eles foram revestidos de autoridade

Na lei de Moisés há um preceito estabelecido por Deus onde os profetas que se levantassem de modo repentino entre o povo deveriam ser julgados. Suas palavras deveriam ser examinadas para ver se, de fato, procediam de Deus ou não (Dt 13.1-5). Em contrapartida, também foi estabelecido por Deus, na lei de Moisés, que as palavras dos profetas reconhecidos como o próprio Moisés, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós e Ageu fossem recebidas pelo povo sem questionamento algum como sendo a Palavra de Deus falada e escrita por eles. Era como se fosse o próprio Deus falando pessoalmente por meio deles! Se houvesse contestação por alguém sobre a autoridade do profeta e de sua palavra, tal pessoa era punida por Deus, como foi o caso da sedição de Miriã e Arão contra Moisés (Nm 12.1-15) e a rebelião de Corá, Datã e Abirão, que resultou na morte deles e de seus seguidores (Nm 16.1-40).

3. Eles foram infalíveis na transmissão da profecia

A mensagem que os profetas do Antigo Testamento transmitiram era impassível de erro. Eles foram os receptores, transmissores e registradores da revelação inspirada por Deus ao seu povo.

4. Eles atuaram num âmbito universal

O ministério dos profetas do Antigo Testamento teve uma ampla extensão. Eles não falaram e escreveram somente para o povo de Israel, mas para a igreja de todas as épocas. A mensagem dos profetas abrange os cristãos de todas as eras.

ii. Os apóstolos

1. Eles também foram chamados       

A semelhança dos profetas do Antigo Testamento, os apóstolos também foram chamados, porém, de forma pessoal por Jesus Cristo. Diferente do modo de Deus se revelar aos profetas, que era por meio de palavras diretas, sonhos e visões, a revelação de Deus aos apóstolos foi através da pessoa de Jesus Cristo. Os doze apóstolos, e de modo igual Paulo, foram comissionados como os profetas do Antigo Testamento para este ofício singular na história. 

2. Eles também foram revestidos de autoridade

O preceito estabelecido por Deus na lei de Moisés de que o profeta e sua palavra não poderiam ser questionados se aplica também as palavras faladas ou escritas dos apóstolos. Até mesmo o conselho ou a opinião pessoal de um apóstolo que não recorriam as palavras do próprio Jesus, como no caso de Paulo e suas respostas em 1 Coríntios 7.6, 8, 10, 12, 25, 32, 35, 40 às perguntas feitas pela a igreja acerca do casamento, não podiam ser questionadas. As palavras dos apóstolos tinham a mesma autoridade que as palavras de Jesus.

3. Eles também foram infalíveis na transmissão da profecia

A mensagem que os apóstolos ou pessoas associadas a eles [como Marcus e Lucas] transmitiram no Novo Testamento era impassível de qualquer erro, pois também foram receptores, transmissores e registradores da revelação inspirada por Deus à igreja.

4. Eles também atuaram num âmbito universal

De modo similar ao ministério dos profetas do Antigo Testamento, o ministério dos apóstolos alcançou não somente o povo de Israel, mas também os gentios e cristãos de todas as épocas.

Feitas as distinções entre os profetas do Antigo Testamento e os apóstolos, fica claro que eles foram os sucessores dos profetas do Antigo Testamento. Mesmo assim, é importante observar que existem algumas pequenas distinções de caráter funcional entre o ministério dos profetas e o ministério dos apóstolos que não há necessidade de mencioná-las aqui.

Abraham Kuyper assevera que o apostolado é portador do caráter de uma manifestação extraordinária, não vista nem antes nem depois, na qual nós descobrimos uma obra própria do Espírito Santo. Os apóstolos foram embaixadores especiais – diferentes dos profetas e dos atuais ministros da Palavra. Na história da Igreja e do mundo, eles ocupam uma posição única e têm uma importância peculiar.14 Por outro lado, torna-se necessário compreender, agora, o caráter do ministério dos profetas nas igrejas locais no Novo Testamento.

iii. Os profetas das igrejas locais no Novo Testamento

Estes homens não foram vocacionados por Deus como os profetas do Antigo Testamento e os apóstolos. Eles não possuíam a mesma autoridade e não eram reconhecidos como homens que falavam inspirados como os profetas, os apóstolos e também não recebiam revelações através de palavras proferidas diretamente por Deus, sonhos e visões como eles. Antes, os profetas das igrejas locais no Novo Testamento recebiam o dom da profecia no momento que eram inseridos na igreja de Cristo pela conversão. Este dom era e é uma capacitação que Deus concede aos profetas para que estes exponham oralmente a Palavra de Deus já revelada às pessoas. A função deles não era comunicar novas revelações, mas simplesmente interpretar corretamente as profecias já estabelecidas pelos antigos profetas e pelos apóstolos. Logo, profetizar não é decretar que algo aconteça, como uma benção, por exemplo, mas pronunciar uma mensagem que esteja em consonância com o escopo da revelação divina registrada.   

A mensagem dos profetas [profecia], que é a exposição da Palavra de Deus revelada, não deveria ser desprezada pela igreja (1Ts 5.20), porém julgada e, se não fosse fiel, deveria ser rejeitada (1Co 14.29). A igreja só deveria obedecer a mensagem de um profeta se a mesma estivesse em conformidade com os escritos dos profetas do Antigo Testamento e dos apóstolos. Essa regra vale para os profetas e a igreja de todas as eras.

Tudo o que os profetas e os apóstolos fizeram está concluído. Já não há mais fundamento a ser lançado. Não há mais o ofício profético do Antigo Testamento nem o apostólico, do Novo Testamento. O que Deus continua a fazer nos dias de hoje é iluminar os que são membros do seu povo para que entendam a revelação registrada na Escritura. Deus ainda opera sinais e milagres como nos tempos bíblicos, como obra de sua providência ["através da oração", ênfase minha], mas não pode ser dito que ele faz essas coisas “pelas mãos dos ministros, pastores e missionários da sua igreja hoje”, como foi dito em Atos que ele fazia os prodígios e sinais pelas mãos dos apóstolos. O ofício profético do Antigo Testamento e o ofício apostólico do Novo Testamento não existe mais porque a sua função terminou dentro do plano da redenção histórica de Deus.15      

d) A necessidade do ato de profetizar no tempo presente

Estamos vivendo uma época em que o equívoco teológico e as heresias prevalecem no cenário evangélico brasileiro. As Escrituras nos alertam que nos últimos dias haveriam muitos falsos profetas (Mt 24.11, 24, 2Pe 2.1; 1Jo 4.1); de fato, estamos vivendo os últimos dias. Todavia, além das antigas heresias estarem patentes hoje, contextualizadas, existem também novas heresias que estão sendo disseminadas. Por essa razão, a profecia é oportuna e, sobretudo, urgente. Acredito que a igreja evangélica brasileira nunca precisou tanto de profetas compromissados e submetidos às Escrituras como nos dias atuais. A função primordial do profeta, além de ensinar, é manter a ética; ele é responsável por apontar o erro moral, espiritual e teológico existente no meio do povo de Deus e convocá-lo ao arrependimento e a se voltar para Deus. Os profetas são o norte da igreja que, sem eles, fenece. Sendo assim, os profetas são indispensáveis para esta magna função de profetizar [pregar, ensinar, exortar] o caminho certo a igreja de Cristo em meio a uma geração religiosa onde  impera a corrupção, a perversão moral, espiritual e teológica (1Co 14.22b-25, 39a).


NOTAS:

9. Palmer Robertson. The Final World, Edimburgo: The Banner of Truth Trust, pág 4.
10. Heber Carlos de Campos em Fé cristã e misticismo, pág 95.
11. John MacArthur. Hebrews (Chicago: Moody Press, 1983), pág 4.
12. Heber Carlos de Campos em Fé cristã e misticismo, pág 96.
13. Augustus Nicodemus Lopes. O Culto Espiritual, pág 188.
14. Abraham kuyper. A obra do Espírito Santo, pág 168.
15. Heber Carlos de Campos em Fé cristã e misticismo, pág 83-84.



Autor: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21