Precisamos agora tratar de
mais duas passagens nas cartas de Paulo, que são usadas como base para a
existência de apóstolos em nossos dias: 1 Coríntios 12.28 e Efésios 4.11.1
Nelas, “apóstolos” figuram em listas onde aparecem dons espirituais e
ministérios.
A uns estabeleceu Deus na
igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro
lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar,
socorros, governos, variedades de línguas (1Co
12.28).
E ele mesmo concedeu uns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para
pastores e mestres (Ef 4.11).
A interpretação destas
passagens pelos defensores do apostolado moderno é que ser apóstolo era um dom
espiritual ligado a um ministério - o mais importante de todos - visto que
estas listas são de dons e ministérios que Deus concedeu às igrejas para sua
edificação. Assim, o apostolado deveria ter permanecido ativo na igreja de
Cristo através dos séculos, bem como os demais dons mencionados nestas listas.
Quando confrontados com o fato de que não surgiram apóstolos como os doze e Paulo no cristianismo histórico após a morte deles no século I, os defensores do apostolado moderno argumentam que isto se deveu à falta de abertura espiritual para sua manifestação, causada pela corrupção e pela institucionalização da igreja depois do período apostólico. Segundo eles, a Reforma protestante não foi profunda o suficiente no retorno às Escrituras e deveria ter restaurado a validade e exercício dos dons espirituais e de todos os ministérios mencionados no Novo Testamento — inclusive o de apóstolo - nas igrejas cristãs. O atual movimento de reforma apostólica reivindica que isto está sendo feito agora, e que o movimento de reforma apostólica é a continuação da Reforma protestante, levando-a a sua plenitude pela restauração do apostolado na igreja de Cristo.
Este raciocínio se baseia numa
interpretação equivocada de “apóstolos” nestas duas listas. Acredito que em
nenhuma das duas listas, o termo “apóstolos” se refira a um dom espiritual,
como o de ensino ou de profetizar, mas a um ofício, exercido por um número
limitado de pessoas levantadas por Deus na igreja em seus primórdios para
estabelecer de maneira definitiva o fundamento da igreja de Cristo aqui neste
mundo. E, este ministério ou ofício, devido à sua natureza fundacional, era
temporário e cessou quando os escritos apostólicos foram reconhecidos e aceitos
pelas igrejas cristãs, formando o que conhecemos como o Novo Testamento.
O conceito de apostolado como
um ofício exclusivo dos doze e de Paulo na igreja cristã nascente encontra
oposição da parte de estudiosos liberais do Novo Testamento. Para eles, a
igreja primitiva era inicialmente baseada nos carismas (dons) espirituais. A
liderança era exercida por pessoas que tinham dons espirituais de apostolado,
profecia, ensino, liderança, etc. À medida que o tempo passou, de acordo com o
pensamento liberal, os dons espirituais foram sendo gradativamente substituídos
pelos ofícios, enquanto a igreja se tornava mais e mais institucionalizada, naquilo
que ficou conhecido como Ur Katholicismus, "catolicismo primitivo”,
resultando numa ordem hierárquica complexa, fixa e semelhante à militar.
Portanto, os documentos do Novo Testamento que falam de ofícios ou de uma ordem
hierárquica ou institucional de apóstolos, bispos, presbíteros e diáconos, não
podem ter sido escritos no século I, mas somente em meados do século II em
diante, em defesa destes ofícios. Assim, Atos, Efésios e as Pastorais (1 e 2
Timóteo e Tito) são consideradas como obras tardias do século II e no caso das
cartas de Paulo, são obras pseudepígrafas elaboradas por alguém se passando por
ele.2
Um exemplo dessa linha de
pensamento se vê no liberal alemão E. Kãsemann, que diz perceber no livro de
Atos este catolicismo incipiente que mais tarde desabrochou no catolicismo
pleno, com seus dogmas e hierarquia elaborados. Entre estas tendências
“católicas”, Kãsemann inclui a sucessão apostólica e transmissão de autoridade.
Todavia, simplesmente não existe nada disso em Atos e a tese de Kãseman tem
sido, em geral, rejeitada.3 A argumentação proveniente do
liberalismo alemão já foi respondida adequadamente por estudiosos
conservadores, que demonstram a falta de qualquer base convincente para a
rejeição da autenticidade de Efésios, por exemplo, com base nesta distinção
entre carisma e ofício.4
Outra frente de oposição ao
conceito de ofício no período apostólico vem de alguns grupos dentro do campo
pentecostal, com sua ênfase nos dons espirituais e no desejo de tê-los todos
funcionando em nossos dias - inclusive o dom de apóstolo. Se for admitido que o
apostolado seja um ofício ligado aos doze e a Paulo, não se pode reivindicar a
existência hoje de apóstolos com a mesma autoridade deles. A questão é,
portanto, se podemos provar biblicamente que o apostolado, em algum sentido,
era um dom espiritual ou um ministério permanente da igreja de Cristo.
1
Coríntios 12.28
Iniciemos nosso exame do
assunto com a análise de l Coríntios 12.28:
A uns estabeleceu Deus na
igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro
lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar,
socorros, governos, variedades de línguas (1Co
12.28).
A leitura comum desta passagem
é que Paulo usa “apóstolos” nesta lista como um dom espiritual, à semelhança
dos demais dons mencionados nela. Contudo, creio que aqui, “apóstolos” é a
designação de uma determinada classe de pessoas, juntamente com profetas e
mestres, que foram instituídas por Deus em sua igreja para o estabelecimento
dela e sua consequente edificação. E a classe “apóstolos” tinha uma natureza
temporária. Diversos argumentos podem ser usados para demonstrar este ponto.
O
sentido geral de “apóstolo” no Novo Testamento
O termo απόστολος, conforme já
vimos até aqui, é empregado no Novo Testamento de duas maneiras básicas. A mais
frequente é como uma designação do ofício dos doze e de Paulo. Neste uso,
“apóstolo” funciona como um título, como “os doze apóstolos” ou “o apóstolo
Paulo.” Vimos já as qualificações necessárias, bem como as evidências para o
oficio de apóstolo. E como somente os doze e Paulo se enquadram nestes
requerimentos.5 Como oficio, o termo "apóstolo" pertence a
eles somente. Não se pode falar, aqui, que eles foram colocados nesta posição
porque tinham o “dom” de apóstolo.
O outro uso do termo απόστολος
é para designar uma função desempenhada por alguém que foi escolhido e enviado
por uma igreja ou igrejas para uma obra. Conforme vimos no capítulo anterior,
podemos incluir nesta categoria os irmãos que eram “apóstolos das igrejas” (2Co
8.23), Epafrodito, que era “apóstolo” dos filipenses para auxiliar nas
necessidades financeiras de Paulo (Fp 2.25), Barnabé (At 14.4,14) e outros
obreiros referidos como “os demais apóstolos” por Paulo em 1Coríntios 9.5.
Assim, "apóstolo” no Novo
Testamento não é a designação de um dom espiritual. O termo designa o oficio de
apóstolo (os doze e Paulo) e pessoas que foram enviadas com uma missão, Esta
missão tanto podia ser pregar o Evangelho (Paulo e Barnabé, At 14.4,14; Silas e
Timóteo, lTs 2.17;“os demais apóstolos”, 1Co 9.5; talvez Andrônico e Júnias, Rm
16.7) ou entregar uma oferta em dinheiro (os irmãos, 2Co 8.23; Epafrodito, Fp
2.25). Isto não quer dizer que os doze, Paulo e os demais chamados de apóstolos
não tivessem dons espirituais ou que não precisavam deles. Usando apenas Paulo
como exemplo, encontramos em sua pessoa dons como mestre e profeta (At 13.1; 2Tm
1.11), línguas (1Co 14.18), sinais e prodígios (2Co 12.12), para mencionar
alguns. Ou seja, apóstolos como Silas e Timóteo, enviados para pregar o
Evangelho, provavelmente teriam dons de evangelista, mestre, pastor, governos,
e outros relacionados com esta função.6 O que quero dizer é que,
enquanto “profetas” e “mestres” designam uma classe reconhecida de pessoas
(veja At 13.1-2) e os dons espirituais correspondentes (veja 1Co 14.2; Rm
12.6-7), não há um dom que corresponda ao ofício de apóstolo nesta mesma
proporção.
A
divisão da lista entre pessoas e dons
Percebe-se, num exame mais
cuidadoso, que Paulo parece dividir a lista de 1Coríntios 12.28 em duas partes.
Na primeira, marcada pela sequência “primeiramente... segundo... terceiro,” ele
enumera os apóstolos, profetas e mestres, pessoas que foram estabelecidas por
Deus na igreja como seus ministros.7 Eles estão numa posição de
maior importância em relação ao que vem na segunda parte da lista. Esta é
composta de cinco dons ou atividades, colocadas de maneira genérica: milagres,
curas, socorros, governos e variedades de línguas. “Operadores de
milagres" que vem em seguida a mestres, é a tradução de δυνάμεις,
“milagres” - a palavra “operadores” não ocorre no grego. Depois de “milagres” é
que aparece a palavra “dons” χαρίσματα se referindo a curar. Ou seja, Paulo
menciona no início da lista pessoas que foram estabelecidas na igreja por Deus
e, depois, passa a citar de maneira abstrata os dons espirituais.8
Esta divisão da lista entre
pessoas e dons também aparece claramente no versículo seguinte: “Porventura,
são todos apóstolos? Ou, todos profetas? São todos mestres? Ou, operadores de
milagres? Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas?
Interpretam-nas todos?” (1Co 12.29). É evidente a distinção entre ser
apóstolos, profeta ou mestre e ter dons de curar e falar em línguas. Portanto,
estando no topo da primeira parte da lista, “apóstolos” não pode ser
considerado como um dom similar aos que vêm na segunda parte.
E interessante ainda observar
que na lista de Romanos 12.6-8 Paulo segue uma ordem inversa: ele inicia com
dons (profecia e ministério) e termina com pessoas (o que ensina, o que exorta,
o que contribui, etc.), o que mostra que ali ele estava interessado primeiramente
em tratar dos dons, enquanto que em Corinto ele deseja estabelecer a supremacia
dos ofícios ocupados por pessoas dotadas, supremacia essa sobre os dons como o
de fazer milagres, curar e especialmente falar em línguas.9
As
razões para a divisão da lista
Há vários motivos prováveis
pelos quais Paulo faz esta distinção na lista entre pessoas dotadas por Deus
(apóstolos, profetas e mestres) e dons espirituais (milagres, curar, socorros,
governos e línguas), Ele certamente desejava corrigir a supervalorização do dom
de línguas que acontecia na igreja de Corinto.10 Esta é a razão
principal pela qual ele apresentou a lista em sequência, “primeiramente,
apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres"
agrupando em seguida os dons espirituais sem ordem aparente, mas deixando as
línguas por último (1Co 12.28). Barrett corretamente observa que o objetivo de
Paulo era destacar a importância para a Igreja desses três ofícios da palavra,
pelos quais ela é implantada e edificada. Ele poderia ter enumerado por ordem
os demais dons também, mas julgou não ser necessário, apenas colocando línguas
e interpretação em último lugar. Apóstolos, profetas e mestres são ministérios
da Palavra e, portanto, “o ministério cristão primordial”.11 Eles
figuram aqui em “ordem de eminência”,12 pois, como ministérios da
Palavra, são de importância vital para a existência e manutenção das igrejas.
Os dons mencionados na segunda parte da lista ocupam posição secundária quanto
a isto, especialmente o dom de línguas, o menos útil de todos para a edificação
da igreja, conforme Paulo argumenta no capitulo 14 desta carta.
Outra razão pela qual Paulo se
refere aos apóstolos, profetas e mestres como pessoas que vêm primeiro numa
lista de importância para a edificação da igreja é a oposição que ele sofria da
parte de, pelo menos, um grupo da igreja de Corinto quanto ao seu apostolado.
Ao colocar os apóstolos no topo de uma lista daqueles que foram estabelecidos
por Deus na igreja para a sua edificação, Paulo estava lembrando aos coríntios
que os apóstolos eram o ofício mais elevado na igreja de Cristo por causa de
sua utilidade e propósito. Talvez, ao ter se referido à cabeça como membro do
corpo (1Co 12.21) Paulo já tinha em mente o apostolado.13
Ofícios
Alguns estudiosos percebem a
importância desta distinção entre pessoas e dons e identificam os três
primeiros da lista como sendo ofícios.14 John MacArthur aponta para
o uso do verbo τίθημι, “estabelecer” na passagem, o qual é usado com frequência
para indicar uma designação oficial de alguém para um ofício. Jesus “designou”
os seus doze discípulos (Jo 15.16). Deus “constituiu” os presbíteros como
bispos (supervisores) do rebanho de Deus (At 20.28) e o próprio Paulo foi
“designado” pregador, apóstolo e mestre (2Tm 1.11). Da mesma forma, Deus
“estabeleceu” soberanamente em sua igreja apóstolos, profetas e mestres.
MacArthur acredita que os dois ofícios de apóstolo e profetas foram temporários
e cessaram quando o Novo Testamento foi completado.15 Calvino tem
uma posição semelhante, embora para ele somente o ofício de apóstolo era
temporário e que os outros dois, profetas e mestres, são permanentes.16
De acordo com Robertson e
Plummer, esta lista indica que “os apóstolos eram a ordem primeira da igreja”.
Eles eram análogos aos profetas do Antigo Testamento, enviados ao novo Israel
como os profetas foram enviados ao antigo. Como tal, pertenciam à igreja toda e
não a congregações locais.17 E como tal, o ofício de apóstolo cessou
como também o dos profetas do Antigo Testamento.
Quem
são os “apóstolos” desta lista
À luz destes argumentos, a
explicação que nos parece mais plausível para o significado de “apóstolos”
nesta lista é que Paulo tem em mente os doze e a si mesmo.18 Esta
posição, contudo, não é consenso.
Diversos exegetas entendem que
o termo se aplica, além dos doze e Paulo, a Tiago, Barnabé, Silas e mesmo
evangelistas ou missionários como Timóteo e Tito.19 O argumento
usado por quase todos que defendem esta posição é que Paulo usa o termo
apóstolo” num sentido muito mais amplo do que os doze e ele mesmo. Na frase
clássica de Robertson e Plummer, “não poderia ter havido falsos apóstolos (2Co
11.13), a menos que o número de Apóstolos [sic] fosse indefinido”.20
Contudo, não estamos negando que o termo é usado de maneira ampla por Paulo, como
já analisamos detalhadamente desde o início de nosso estudo. O que vimos também
foi que os contextos geralmente indicam quem Paulo tem mente quando usa o termo
“apóstolo”. O fato de que ele chama várias pessoas diferentes de apóstolos não
quer dizer que ele está usando a palavra sempre no mesmo sentido. Carson
corretamente afirma que “as tentativas de estabelecer o que o apostolado
significava para Paulo simplesmente apelando para o alcance semântico pleno da
palavra, como ela aparece em seus escritos, é um procedimento profundamente
errado no nível metodológico".21 Além do que, seria absurdo
pensar que evangelistas e missionários figurariam acima de profetas e mestres
na igreja apostólica. Os argumentos que se seguem me parecem suficientes para
estabelecer a posição de que, aqui, “apóstolos” é a designação dos doze e de
Paulo.
Em quase todas as ocorrências
do termo απόστολος, nesta carta, a referência é ao próprio Paulo, como apóstolo
de Jesus Cristo (1Co 1.1; 9.1- 2; 15,9) e aos doze (1Co 4.9; 15.7), conforme já
demonstramos acima.22 A única exceção parece ser “os demais
apóstolos” (1Co 9.5), uma referência aos enviados das igrejas para a pregação
do Evangelho. Portanto, ao dizer que Deus estabeleceu na igreja primeiramente
os apóstolos, Paulo não pode ter em mente outra categoria que não aquela dos
doze e ele mesmo.23
Eles foram estabelecidos
primeiramente por Deus na igreja pelo caráter fundamental de seu chamado e obra,
conforme já vimos acima: Edificados sobre
o fundamento dos apóstolos e profetas (Ef 2.20). Os doze e Paulo foram
apóstolos de Jesus Cristo para lançar os fundamentos da Igreja e registrar a
revelação:... o mistério... agora
revelado aos seus santos apóstolos e profetas (Ef 3.5). Os profetas das
igrejas vêm em segundo, em grau de importância, como os intérpretes e
aplicadores da mensagem apostólica.24 E os mestres em terceiro, como
aqueles que regularmente ensinavam nas igrejas com base nas instruções
apostólicas, que cedo adquiriram forma escrita, ao lado das Escrituras do
Antigo Testamento.
O significado de
“primeiramente” (πρωτος 1Co 12.28) é crucial para entendermos o sentido de
“apóstolo” aqui nesta lista.25 Este advérbio pode ser traduzido como
“primeiro de uma série” ou “aquilo que é melhor, proeminente ou mais
importante”.26 O contexto nos ajuda a decidir pela segunda opção.
Nesta parte da carta, Paulo está estimulando os coríntios a buscarem o que é
melhor para a edificação da igreja: Procurai,
com zelo, os melhores dons (lCo 12.31). Portanto, a sequência
“primeiramente... segundo... terceiro” destaca aqueles ministérios que são mais
importantes para a igreja de Cristo, dos quais os "apóstolos” seriam os
mais importantes, seguidos pelos profetas e mestres.27
Somente os doze e Paulo poderiam
figurar como primeiros numa lista de importância de ofícios e ministérios que
Deus estabeleceu na igreja. Conforme Carson, “é difícil imaginar por que Paulo
designaria como ‘primeiramente, em qualquer sentido, aqueles que eram apóstolos
num sentido derivado - mensageiros das igrejas, talvez”.28
De acordo com Godet, Paulo
teria começado a lista pensando em enumerar apenas uma variedade de ministérios
e dons que Deus havia estabelecido na igreja. Ao deparar-se com a desigualdade
de importância e utilidade entre eles, decide então ordená-los conforme o seu
valor para a igreja. A lista, portanto, reflete a primazia do oficio de
apóstolo tanto porque veio primeiro como por sua dignidade.29
Notemos ainda que os
“apóstolos” desta lista foram estabelecidos “na igreja,” εν τη εκκλησία, e não
"nas igrejas”. Esta qualificação cabe apenas aos doze e Paulo, que tinham
um ministério universal e não local. Paulo inicia esta lista de ofícios e dons
dizendo que Deus os estabeleceu “na igreja”. Diversos estudiosos têm observado
que esta é provavelmente a primeira vez em que a palavra "igreja” é usada
por Paulo para se referir à igreja universal e não a uma igreja local.30
A importância desta observação está no fato de que Paulo não pode estar pensando
em apóstolos no seu sentido geral, mas nos doze e em si mesmo. Eles não eram
oficiais ou ministros de igrejas locais, designados por elas para servir
àquelas comunidades - como provavelmente era o caso com os “apóstolos das
igrejas”, os profetas e os mestres. Eles eram ministros estabelecidos por Deus
sobre toda a igreja, isto é, eles eram apóstolos para as igrejas de Corinto,
Éfeso, Colossos, Roma, etc., e também para todas as que haveriam de vir, até os
nossos dias. E nesse sentido que a igreja cristã atual também é apostólica. Ela
se baseia na doutrina dos apóstolos que foi preservada nos escritos
apostólicos. Notemos que, na outra lista de dons que aparece neste mesmo
capítulo (1Co 12.8-10), Paulo tem em mente a igreja de Corinto. Nela, ele descreve
os dons que estavam presentes naquela igreja. Os apóstolos não aparecem nesta
lista.31
Quanto à objeção de que
necessariamente teríamos de incluir profetas e mestres também como ofícios da
igreja universal, podemos ponderar, como C. K, Barret, que "Paulo usa a
palavra igreja’ aqui nos dois sentidos [universal e local] e que este sentido
muda à medida que o texto progride: apóstolos na igreja universal e profetas
nas assembleias das igrejas locais”.32
Em conclusão, entendemos que
“apóstolos” em 1 Coríntios 12.28 é uma referência de Paulo aos doze e a si
mesmo, como o ofício mais elevado na igreja de Cristo, devido à sua função de
trazer a Palavra por revelação divina, e assim estabelecer os fundamentos da
igreja juntamente com os profetas do Antigo Testamento (Ef 2.20). Portanto, não
se pode usar esta passagem para a reivindicação de que existe o dom de apóstolo
e que o mesmo está em operação em nossos dias, uma vez que as qualificações do
ofício não estão mais disponíveis.
NOTAS:
1. É no mínimo interessante que Clark, em seu
artigo, trata destas duas passagens em conjunto numa seção intitulada “Problem
passages” (“Passagens problemáticas”), cf. “Apostleship,”
365ss.
2.
Por exemplo, Arthur Patzia, Ephesians,
Colossians, Philemon em New International Biblical Commentary (Peabody, MS:
Hendrickson Publishers Inc., 1984); Ralph Martin, Ephesians, Colossians, and Philemon em Interpretation (Atlanta:
John Knox Press, 1991). Mas,
veja um posicionamento distinto em Klyne Snodgrass, Ephesians em The NIV Application Commentary (Grand
Rapids: Zondervan, 1996), 202, que rejeita esta reconstrução liberal, bem como
Kirk,“Apostleship since Rengstorf,” 258.
3.
Cf. John B. Polhill, Acts, vol. 26, The
New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers,
1995), 53-54.
4. Cf, por exemplo, as introduções ao Novo
Testamento de Donald Guthrie, Robert H. Gundry, D. A. Carson, etc. Embora o
argumento carisma versus oficio não tenha mais tanta credibilidade nos meios
acadêmicos, a autoria paulina de Efésios continua sendo questionada por autores
liberais com base em outros argumentos.
5. Notemos que o próprio Tiago, que era muito
próximo dos doze e considerado um homem apostólico, não se apresenta como
apóstolo em sua carta (cf.Tg 1.1), enquanto que Paulo e Pedro consistentemente
usam este título (cf. 1Pe 1.1; 2Pe 1.1; Rm 1.1; Ef 1.1; etc.).
6. Silas tinha o dom de profetizar, At 15.27.
Veja a exortação de Paulo a Timóteo para reavivar o dom que havia recebido pela
imposição de suas mãos e dos presbíteros (1Tm 4.14; 2Tm 1.6), bem como sua
exortação para que ele fizesse a obra de um evangelista (2Tm 4.5).
7. Notemos a relação com ICo 12.18.“Deus
dispôs" e “Deus estabeleceu” traduzem a mesma frase em grego, £0£to ó
0£Òç. Cf. F. Godet, Commentary on St. Paul’s First
Epistle to the Corinthians (Edinburgh: T & T Clark, 1890), 222.
8. Cf. Robertson, Corinthians, 280. A NVI
e a NTLH traduziram, equivocadamente, na minha opinião, esta lista sem fazer a
distinção entre pessoas (apóstolos, profetas e mestres) e dons (milagres,
curas, socorros, etc.). Cf. p. ex. N VI: "Na igreja, Deus estabeleceu
primeiramente apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar,
mestres; depois os que realizam milagres, os que têm dons de curar, os que têm
dom de prestar ajuda, os que têm dons de administração e os que falam diversas
línguas". Cf. a tradução correta da ARC,"E a uns pôs Deus na igreja,
primeiramente, apóstolos, em segundo lugar, profetas, em terceiro, doutores,
depois, milagres, depois, dons de curar, socorros, governos, variedades de
línguas".
9. Assim Barrett, Corinthians, 295; Robertson, Corinthians, 280.
10. Cf. sobre isto Lopes, O Culto Espiritual.
Veja ainda Godet, Corinthians, 222.
11.
Barrett, Corinthians, 295.
12.
Robertson, Corinthians, 279.
13.
É o que sugere Godet, Corinthians, 224.
14.
Hans Conzelmann, 1 Corinthians (Philadelphia: Fortress Press, 1975), p.
215; Adolf von Hamack, The Mission and Expansion of the Christianity in the
First Three Centuries. Vol. 1 (New York: Harper, reimpressão 1962), pp.
319-368; Gordon Clark, First Corinthians: a contemporary commentary (Jefferson,
Md: Trinity Foundation, 1991), p. 200.
15.
John MacArthur, 1 Corinthians, em The MacArthur New Testament
Commentary (Chicago: Moody Press, 1984), 322-323.
16. João Calvino, 1 Coríntios (São
Paulo: Edições Parácletos, 1996), 390. Para Calvino, os profetas eram
expositores e pregadores da Palavra e este ofício permanece hoje no ofício de
pastores e mestres.
17.
Robertson, Corinthians, 279.
18.
MacArthur, 1 Corinthians, 323; Gregory J. Lockwood, 1 Corinthians (Saint
Louis: Concordia, 2000), 452; Carson, Showing the Spirit, 88-91.
19.
Cf. Godet, Corinthians, 224; Barrett, Corinthians, 294-295;
Robertson, Corinthians, 279; Morris, First Corinthians, 175.
20.
Robertson, Corinthians, 279.
21.
Carson, Showing the Spirit, 90.
22.
Cf. Carson, Showing the Spirit, 88-91; Lockwood, 1 Corinthians, 452.
23.
Cf Carson, Showing the Spirit, 90.
24. Para Calvino, esses profetas não eram
dotados do dom de vaticinar (predizer), mas eram expositores e intérpretes da
Palavra de Deus, hábeis para aplicar seu ensino às circunstâncias presentes
(Calvino, 1 Coríntios, 390). Nesta mesma
linha, veja J. Gillespie, "Interpreting the Kerygma: Early Christian
Prophecy According to 1 Corinthians 2:6-16,", em Gospel Origins &
Christian Beginnings, eds. J. E. Goehring, et al. (Sonoma, CA: Polebridge
Press, 1990), pp. 151-66. De acordo com Thomas Gillespie, os profetas cristãos foram
os primeiros intérpretes do kerygma, isto é, da proclamação apostólica, e,
portanto, os primeiros teólogos cristãos cf. Thomas Gillespie, The First
Theologians. A Study in Early Christian Prophecy
(Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing
Co., 1991).
25. Cf. Carson, "A palavra reveladora, acredito,
é primeiramente'" (Showing the Spirit, 90).
26. Cf. Louw & Nida, TTpôJTOÇ; TDNT, Trpcotoç
27.
Cf. Calvino, 1 Coríntios, 392; Morris, First Corinthians, 143;
Carson, Showing the Spirit, 36 (embora relutante); Barrett, Corinthians,
295. Os
coríntios, por assim dizer, tinham a sua própria lista de dons por importância.
Não é difícil imaginar qual ocupava o topo da lista: as línguas! Paulo toma a
lista dos coríntios e a coloca de cabeça para baixo, em 12.28, invertendo a
prioridade que eles davam ao dom de línguas, colocando- -o como último da lista
em importância.
28.
Carson, Showing the Spirit, 90.
29.
Godet, Corinthians, 222-223. Nesta mesma linha, Robertson, Corinthians,
278-279.
30.
Como Robertson, Corinthians, 278; Morris, 1 Corinthians, 174;
Lockwood, 1 Corinthians, 452.
31. Cf. Godet, Corinthians, 223.
32. Barrett, Corinthians, 293.
Autor: Augustus Nicodemus
Lopes
Trecho extraído do livro Apóstolos: verdade bíblica sobre o apostolado, pág 123-134. Editora: Fiel