O calvinismo, de semelhante modo, também é um
conhecimento não-científico. Entretanto, é mais do que um agregado de
conhecimento que se apoia na expansão do horizonte, vindo a entrar em contato
com diferentes pessoas de tempos em tempos, isto é, a expansão de uma área de
observação – na verdade, é a visão que nos foi passada no lar, ou que talvez
tenhamos adquirido com dificuldade. Não é uma concepção científica, mas uma
visão acerca de Deus, do mundo, da vida, do homem, de nossos semelhantes e
também de nós mesmos.
Tal visão deixa sua marca no ser humano: é possível ver nos rostos de alguns humanistas o “ser humanista”; nos rostos de alguns católicos romanos, o “ser católico-romano”; o mesmo vale para alguns indivíduos calvinistas. No entanto, tal visão não é, de modo nenhum, ciência. Há calvinistas firmes, tanto homens quanto mulheres, que não se aplicam ao estudo, por impossibilidade ou falta de vontade; contudo, embora não possuam tempo ou desejo para o trabalho científico, eles levaram adiante e incentivarão a ação calvinista com orações, ajuda financeira ou dádivas.
Tendo isto em vista, passo agora a tratar do
conhecimento científico. Ora, este último inclui o conhecimento científico
especializado, que se limita a uma só área, mas abrange também o conhecimento
filosófico. Esses dois conhecimentos não possuem uma relação clara entre si, no
entanto, eles não coincidem, pois a filosofia é a ciência que busca aprender de
todas as ciências especializadas, uma vez que se interessa por todas as coisas.
No entanto, ela dá prosseguimento à inquirição, visto que se preocupa também
com as relações internas dos campos de investigação, dos quais as ciências
especializadas se ocupam individualmente. A filosofia também levanta questões
acerca dos métodos, os quais são aplicados em cada ciência especializada, a fim
de fazer progresso.
A filosofia é, portanto, a ciência geral; mas
não uma bacia de captação. Ora, aquilo que a cosmovisão é para o conhecimento
não-científico, a filosofia é para o conhecimento científico.
A RELAÇÃO ENTRE
CONHECIMENTO NÃO-CIENTÍFICO E CONHECIMENTO CIENTÍFICO
De que modo se dá a relação
entre conhecimento não-científico e conhecimento científico?
Jamais nos livramos do
conhecimento não-científico. Quando estudamos, estamos construindo sobre o
conhecimento não-científico. Houve um tempo quando a ciência, de modo crítico,
concebia todo o conhecimento não-científico como algo que deveria ser superado.
No entanto, ela abriu mão de tal posição. O homem de ciência também parte dos
sons e cores – estes de fato existem! Não dentro de nós, mas fora de nós! A cor
se encontra no exterior, e ouvimos o som a vários metros de distância; existem
fora de nosso pensamento, e os tomamos, pois, como ponto de partida. E apenas
quando alguém se firma nesses elementos, é que podemos prosseguir e investigar.
De outro modo, tudo se torna confuso, não restando mais nada, devido à crítica
de nossa ciência labiríntica.
Agora, quando prosseguimos,
também é necessário a visão geral da filosofia. Esta, no entanto, se encontra
em conformidade com o conhecimento não-científico: se constrói sobre e especula
a respeito dele.
No conhecimento
não-científico, o conhecimento de fé também desempenha um papel. Caso tu não
creias, e permaneceres na descrença, terás uma filosofia na qual a descrença,
esse erro, desempenha um papel. Contudo, quando crês em Deus mediante Sua
Palavra e nela crês, tu obténs uma filosofia, cuja base é formada pela fé
não-filosófica e não-científica em Deus e nas Sagradas Escrituras.
Portanto, a fé não se torna
filosófica mediante tal ato.
As Escrituras iniciam com esta
majestade: no princípio criou Deus os céus e a terra. Todo aquele que crê
nisso, não é consequentemente um homem ou mulher de ciência. Entretanto, pode
continuar tranquilamente crendo nisso, mesmo quando se aplica à pesquisa. Pois
não há ciência que possa excluir isso do indivíduo: aquele que perde sua fé por
causa do ambiente acadêmico não a perde como uma consequência de investigações
– ele a perde na luta contra aquela descrença que se sustenta, entre outras
coisas, com a ajuda de vários elementos de tradição pagã na ciência.
Logo, podes construir tua
ciência sobre a fé nas Escrituras e em Cristo. E, desse modo, adquire para si
uma filosofia que, no campo das ciências, possui o mesmo êxito que o calvinismo
possui no que diz respeito à biocosmovisão, na área não-científica.
A BASE DA FILOSOFIA
CALVINISTA
Dessa maneira, a filosofia
calvinista deve partir de uma base não-científica. Com efeito, toda filosofia
assim o faz; no entanto, nem todas elas se dão conta disso. Essa base
supracitada nos é dada nas Sagradas Escrituras. Precisamente por esse motivo,
seus conteúdos não devem servir como uma superestrutura, quer seja no modo
paradoxal ou no católico-romano [i.e. dicotomia natureza-graça]. E, de
semelhante modo, as Escrituras não podem ser analisadas exegeticamente num sentido
filosófico, e nem a fortiori [por uma razão ainda mais forte] segundo um
sentido de interpretação pagão.
Se alguém busca levar a sério
o primeiro ou segundo desses modos, então terá que estudar o pensamento pagão
em toda sua história: somente desse modo será capaz de compreender seus dilemas
e refutá-los. Como exemplo de dilema, podemos citar aquele existente entre
monismo e dualismo. Com monismo, subentende-se a ideia de unidade, que implica
que Deus e o mundo são (supostamente) a mesma coisa, ou que existe
(supostamente) uma unidade entre eles, da qual ambos, Deus e o mundo, se
originaram. Com dualismo, subentende-se a correlação segundo a qual Deus e as
coisas – o mundo ou a matéria – são originalmente correlatos entre si. O
dualismo é, portanto, algo totalmente diferente do reconhecimento da dualidade:
aquele que confessa que o mundo foi criado reconhecerá tranquilamente que Deus
e o mundo são duas coisas distintas; mas ao mesmo tempo ele forçosamente
rejeitará, devido à sua fé, a ideia dualista de que Deus e o mundo são ambos
eternos ou ambos temporais.
Agora, pelo contrário, a lei e
as coisas sujeitas à lei – pois uma lei sem algo sobre o qual é válida é tão
absurdo quanto um elemento sujeito sem lei – estão correlacionadas.
Ora, como se sabe, a lei ocupa
um papel importante no pensamento calvinista. Ao tratar sobre a lei dos Dez
Mandamentos, é preciso discernir seu uso tripartido: é um freio para os ímpios,
pedagogia para conduzir a Cristo e parâmetro de santificação. No fundo da
questão, esse uso tripartido remete a um só tema: a lei como mandamento do amor
é a norma para vida humana. Pois inicialmente aplicada ao Paraíso, essa lei
veio a se virar contra nós com sua maldição, quando, após tendo nós pecado, ela
não se furta de exercer seu juízo; ao passo que agora, após Cristo tê-la
cumprido perfeitamente, é agora reconhecida pelo cristão como norma para sua
vida. A lei, nesse sentido, permanece fora e acima de nós: mesmo quando, no
estado de justificação e união com Cristo, a vida está de acordo com a lei, ela
não coincide com esta última. Afinal, o mandamento: “não farás” é algo
diferente do cumprimento deste mandamento.
A filosofia calvinista somente
pode afirmar tanto um quanto o outro. Nesse meio tempo, ela se depara com o
termo “lei” num outro sentido, a saber, trata-se da “lei no cosmos” e da “lei
positiva”.
Quando as ciências
especializadas buscam leis e formulam seus resultados preliminares, ela
pretende descobrir a regularidade no cosmos. Ora, já por esse motivo a lei
nesse sentido difere do mandamento do amor. Acima e além deste último, a almeja
regularidade implica naquilo que está em conformidade com o mandamento do amor,
bem como naquilo que se encontra em conflito com ele: consequentemente, é
possível apresentar estatísticas tanto do número de casamentos e nascimentos
quando do número de divórcios e assassinatos. Com isso, não se perde a oposição
entre bem e mal, amor e ódio, obediência e desobediência ao mandamento do amor,
mas transversalmente a ela (a oposição) se encontra a oposição entre
regularidade e irregularidade.
O relacionamento mútuo que
existe entre essas duas leis não é o relacionamento que existe entre as funções
superiores e inferiores. Pois, afinal, o mandamento do amor reivindica a
totalidade do ser humano, e o cálculo estatístico da regularidade e
irregularidade, de semelhante modo, faz sentido tanto para o conhecimento das
funções superiores quanto para o conhecimento das funções inferiores. Essa
relação não é de maneira alguma redutível a uma dualidade de fontes do
conhecimento, ainda que o mandamento do amor somente possa ser encontrado por
meio das Escrituras e a regularidade, diferentemente, fora delas. Porque,
enfim, o mandamento do amor somente se torna claro para nós quando investigamos
a história do cosmo; e esta última, a qual continua a desempenhar um papel
importante na tão almejada busca pela regularidade [do cosmo], não será
compreendida sem que se leve em conta as linhas principais de sua história, tal
como apresentada nas Escrituras. Partindo-se tanto do mandamento do amor quanto
a lei da regularidade do cosmo, segue-se que, ainda que concepções incorretas
no que concerne às relações mútuas dessas duas leis devam ser rejeitadas, ambas
possuem, de fato, uma coerência mútua.
Tal coerência primeiramente se fundamenta em
Deus, pois é a vontade dEle que se encontra por trás dessas duas leis: pode-se
pensar aqui na famosa distinção de vontade de mandamento e vontade de decreto
[ou decisão].
É possível identificá-las com a vontade
revelada e a vontade oculta de Deus, já que a primeira distinção diz respeito à
vontade de Deus à parte de Sua cognoscibilidade; a outra, diz respeito à
relação de sua vontade com nosso conhecimento. Fora disso, a vontade de
mandamento, de longe, não é totalmente clara para nós, ao passo que, por outro
lado, podemos investigar a vontade de decreto, tão logo o decreto tenha se
realizado.
Desse modo, finalmente o sentido da lei
positiva se torna compreensível. Tal lei certamente não é a fórmula para se
descobrir a regularidade: ela não registra, descreve ou declara, no entanto,
direciona a vida rumo a uma determinada direção. Contudo, de semelhante modo,
não é idêntica ao mandamento do amor: repetidamente prova-se necessário, com
base precisamente no mandamento a que se destina, criticar um construto de uma
lei, e caso esse esforço se mostre infrutífero, é preciso buscar substituir a
regra por uma outra melhor, elevá-lo à condição de lei positiva, assim que
possível. Entretanto, é justamente pelo fato de que a lei positiva não é
idêntica à lei como regularidade nem ao mandamento do amor, que ela pode fazer
ambas convergirem – pois a lei positiva possui exatamente este sentido,
positivar os mandamentos divinos do amor em sua especificidade numa estrutura
social qualificada, isto é, por uma estrutura social específica durante um
período específico de tempo. Por essa razão, uma lei positiva se liga apenas
àqueles que pertencem a uma estrutura social relevante durante a validade
desta. Contudo, eles se ligam entre si como mandamento de Deus, ainda que
somente indiretamente: pode se pensar aqui na motivação concernente a isso no
Catecismo de Heidelberg: pois é a vontade de Deus nos governar pelas mãos
deles [Pergunta 104].
É claro que várias questões
ainda permanecem. Deve-se ver o que aqui foi exposto apenas como um esforço
inicial, que busca demonstrar como, também em sua análise do conceito de lei, a
filosofia calvinista permanece fiel à sua base religiosa, estando atenta, pois,
tanto para as necessidades práticas quanto das ciências especializadas.
Tradução:
Fabrício Tavares
Divulgação:
Reformados 21