Lutero disse que a doutrina da
justificação pela fé é o artigo pelo qual a igreja permanece ou cai. Calvino
salienta que a doutrina da justificação é o eixo ao redor do qual a igreja
gira. Antony Hoekema, por sua vez, enfatiza que se a igreja estiver errada nessa doutrina,
estará igualmente errada nas demais.2
1. A definição de justificação
Em termos simples, podemos
definir a justificação como “um ato de Deus pelo qual ele declara o pecador
eleito como sendo justo sobre a base da justiça de Cristo, uma vez que a
justificação se refere à justiça de Cristo sendo legalmente creditada ao eleito
de Deus.”3
Berkhof sintetiza que, com
base nessa justiça, todas as ordens da lei são satisfeitas com respeito ao
pecador.4 Ou seja, a pessoa passa a ser considerada totalmente justa
diante da lei de Deus e todas as exigências da lei são plenamente satisfeitas.5
Nessa mesma linha de
pensamento, John Murray afirma que a justificação é simplesmente a declaração a
respeito do relacionamento da pessoa com a lei com a qual o juiz tem o dever de
julgar.6 John Stott expande esse pensamento nestas sublimes
palavras:
Justificação é um termo legal
ou jurídico, extraído da linguagem forense. O contrário de justificação é
condenação. Os dois são o decreto de um juiz (onde se declara o julgado como
culpado ou inocente do crime cometido). Dentro do contexto cristão, eles são
veredictos escatológicos alternativos que Deus, como juiz, poderá anunciar no
dia do juízo (Hb 4.13). Portanto, quando Deus justifica os pecadores hoje, está
na verdade antecipando o seu próprio julgamento, isto é, trazendo até o
presente o que de fato faz parte dos últimos dias.7
Concluímos, então, que a
Justificação não é um processo, mas um ato declaratório de Deus. Acontece fora
de nós, e não em nós.8 É instantâneo, e não gradual. É a ação de Deus
em declarar judicialmente que a situação de determinada pessoa está em harmonia
com as demandas da lei.9 Noutras palavras, é ser plenamente
absolvido do crime cometido como se nunca o tivesse feito.
2. A necessidade da justificação
A razão insofismável pela qual
era necessário haver a justificação é o pecado. Paulo diz em Romanos
3.23 que todos pecaram, e estão afastados
da glória de Deus. (NTLH) Ainda, na carta aos Romanos,
o apóstolo discorre mais sobre a realidade da corrupção radical do homem (1.21,23-31). Jesus disse também no sermão do monte em Mateus 5.20
que, se a vossa justiça não exceder a dos
escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (ACF)
Não obstante, todos pecaram
por estarem unidos pactualmente ao nosso representante federal, Adão. Deus
imputou o pecado dele a todos. Nós estávamos lá naquele dia em Adão! Partindo
desse pressuposto, o homem pós-pecado é morto espiritualmente (Gn 2.16-17; Ez
18.4; Rm 6.23). No entanto, como todos morreram espiritualmente em Adão ao
pecar contra Deus, toda a humanidade nasce pecadora, morta espiritualmente e
completamente incapaz de se voltar para Deus em arrependimento e fé através de
sua escolha (Rm 3.10-12; 1Co 2.14).
Portanto, foi necessário que Deus,
pela sua soberania, graça e misericórdia no conselho trinitariano, traçar todo
o plano da redenção e enviar Cristo Jesus, o justo, para morrer pelos injustos,
para assim sermos justificados por Deus, adotados na família divina e
retornarmos novamente a comunhão íntima e profunda com o Pai em espírito (Hb
10.19-20).
3. O autor da justificação
Indubitavelmente, Deus é o
autor da justificação dos pecadores eleitos. “A salvação é obra de Deus do
começo ao fim. Trata-se de um plano eterno, perfeito e infalível de Deus Pai.
Deus planejou nossa salvação antes de lançar os fundamentos da terra.
1 Pedro 1.20 – Pois
vocês sabem que não foi por meio de coisas perecíveis como prata ou ouro que
vocês foram redimidos da sua maneira vazia de viver que lhes foi transmitida
por seus antepassados, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro
sem mancha e sem defeito, conhecido antes da criação do mundo, revelado nestes
últimos tempos em favor de vocês. (NVI)
Não foi a cruz que tornou o
coração de Deus favorável a nós; foi o coração terno de Deus que providenciou a
cruz. O sacrifício de Cristo no calvário não foi a causa da graça, mas o
resultado”.10 “Não foi Jesus Cristo quem tomou a iniciativa, no
sentido de fazer algo que o Pai relutava ou não estava disposto a fazer. Não
há dúvida de que Cristo veio por sua própria vontade e se entregou gratuitamente.
Mesmo assim, ele o fez em submissão à iniciativa do Pai”11 (Jo
10.17-18).
4. A base da justificação
Se o autor da justificação é
Deus, a base da justificação é a justiça de Cristo. Todavia, o fator que
predomina nesta justiça é a obediência de Cristo, a qual é composta pelo
aspecto ativo, referente à obediência à lei por nós, e a obediência passiva,
que consiste no cumprimento penal dos pecados por meio do sofrimento e morte de
cruz.
Todavia, não devemos fazer
separação entre os aspectos da obediência. Tanto o lado ativo quanto
passivo da obediência do Redentor estão praticamente interligados, e formam o pilar da plena obediência de Cristo, que culmina na sua justiça como
base da nossa justificação. Berkhof ressalta que a base da justificação
encontra-se somente na justiça perfeita de Jesus Cristo.12
Isaías 53.12 – Por isso, eu lhe darei muitos como a sua
parte, e com os poderosos repartirá ele o seu despojo, porquanto derramou a sua
alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o
pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu. (ARA)
Filipenses 2.7-9 – Ao contrário, esvaziou a si mesmo, ao
assumir a forma de um escravo, tornando-se como os seres humanos são (natureza
humana afetada pelo pecado). E, quando ele surgiu como um ser humano (no estado
de humilhação), humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte – (e)
morte na estaca (cruz) como um criminoso! (BJC) ... e ser encontrado nele, não tendo a minha
própria justiça que procede da lei, mas a que vem mediante a fé em Cristo, a
justiça que procede de Deus e se baseia na fé. (NVI)
Romanos 3.21-22a – Mas agora se manifestou uma justiça que
provém de Deus, independente da lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas,
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem. (NVI)
5. A distinção entre a Justiça Transferida e a Justiça Pessoal
Basicamente, o termo imputar
ou transferir significa “atribuir algo a uma pessoa”; “denota creditar ou pôr
esse algo em sua conta. O que é imputado ou transferido a pessoa passa a ser
legalmente dela; e isto é contado como uma coisa que lhe pertence”.13
No contexto bíblico, imputação
não significa trocar a natureza ou a essência da pessoa, isto é, a condição
anterior, o seu caráter. Entretanto, a imputação ou atribuição afeta somente a posição legal
da pessoa. Quando os pecados dos eleitos foram transferidos para Cristo na
cruz, isso não fez de Jesus pecador nem tampouco contaminou a sua natureza, afetando o seu caráter santo. Essa transferência, na verdade, apenas tornou
Cristo o responsável legal pelos pecados dos eleitos.
Sobre a questão de justiça imputada,
Calvino sintetizou a iustitia aliena,
isto é, a justiça que vem de outro, que vem de fora. Não há nenhuma
dúvida de que aquele que é ensinado a procurar justiça fora de si próprio é
destituído de justiça em si mesmo. Mais adiante, Calvino diz: Você pode ver que
nossa justiça não está em nós, mas em Cristo, e que a possuímos somente sendo
participantes em Cristo; de fato, com ele possuímos todas essas riquezas.14
Portanto, conforme diz as Escrituras, a justiça de Cristo é imputada ou
transferida a nós. A nossa justificação vem de fora, iustitia extra nos, procedendo da justiça de Cristo.
Por outro lado, “devemos
também ter o cuidado de não confundir a justiça imputada (a qual recebemos pela
fé e que é a única base de justificação) com os atos pessoais de justiça
(santidade), realizados pelos crentes como resultado da obra do Espírito Santo
em seus corações”.15
Vincent Cheung ressalta que “a justificação é uma justiça imputada, e a
santificação é uma justiça infundida. A justificação é uma declaração
instantânea de justiça, mas a santificação (progressiva, não no aspecto
posicional de santificados) se refere ao crescimento espiritual do crente após
ele ter sido justificado por Deus”.16
Romanos 4.6-11 – Davi diz a mesma coisa, quando fala da
felicidade do homem a quem Deus credita justiça independente de obras: Como são
felizes aqueles que têm suas transgressões perdoadas, cujos pecados são
apagados. Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa. Destina-se
esta felicidade apenas aos circuncisos ou também aos incircuncisos? Já dissemos
que, no caso de Abraão, a fé lhe foi creditada como justiça. Sob quais
circunstâncias? Antes ou depois de ter sido circuncidado? Não foi depois, mas
antes! Assim ele recebeu a circuncisão como sinal, como selo da justiça que ele
tinha pela fé, quando ainda não fora circuncidado. Portanto, ele é o pai de
todos os que creem, sem terem sido circuncidados, a fim de que a justiça fosse
creditada também a eles. (NVI)
6. O agente da justificação
Conforme vimos,
o autor da justificação é Deus e sua maravilhosa graça; a base da justificação
é a justiça de Cristo; não obstante, o agente ou o meio da justificação é a fé.
“A regeneração precede tanto a fé como a justificação, e nunca é dito que ela
segue ou resulta da fé, nem que deve sempre ser confundida com a justificação.
É a regeneração que leva à fé, e é a fé que leva à nossa justificação”.17
Gálatas 2.16b – Assim, nós também cremos em Cristo Jesus
para sermos justificados pela fé em Cristo...
É dito na Escritura,
principalmente por Paulo, que “a fé justifica porque ela recebe e abraça
a justiça de Cristo oferecida no evangelho”.18 “A fé, para Calvino,
era apenas a causa instrumental da justificação. Somente Deus justifica. Então,
nós transferimos esta mesma função a Cristo porque a ele foi dado ser nossa
justiça. Heber Carlos de campos afirma que é pela fé somente que o homem é
justificado, mas a fé em si mesma não justifica. Através dela o homem abraça a
Cristo por cuja graça somos justificados.19
Comparamos a fé a uma espécie
de vaso. A menos que venhamos esvaziados e com a boca de nossa alma aberta para
procurar a graça de Cristo, não seremos capazes de receber Cristo.20
Portanto, a fé é nossa resposta divinamente capacitada ao chamado eficaz de
Deus, e a justificação é a resposta à nossa fé, a qual, antes de tudo, veio de
Deus (2Tm 2.24-26).21
7. Quando ocorre a justificação?
Berkhof responde:
Em Romanos 8.29-30, a
justificação está entre os dois atos de Deus realizados no tempo (antes de
todas as coisas), os quais são a vocação eficaz e a glorificação, sendo que
esta começa no tempo presente (a partir da conversão) e se completa na
eternidade futura. Estes três juntos: conhecimento, predestinação e chamado
resultam de outros dois que são explicitamente indicados como eternos, a saber
- justificados e glorificados eternamente.
Porém, o Espírito não
aplicou nem poderia aplicar esse ou qualquer outro fruto da obra de Cristo
desde a eternidade. Contudo, podemos falar de uma justificação do corpo global
de Cristo que aconteceu em sua ressurreição (Rm 4.25), mas esta justificação é
puramente objetiva, e, portanto, não deve ser confundida com a justificação
pessoal do pecador (no ato da conversão)”.22
Mesmo que os eleitos
de Deus já tenham sido conhecidos, predestinados, chamados, justificados e
glorificados por Deus em Cristo antes mesmo da criação e da queda, todavia os
eleitos não nascem regenerados, mas mortos espiritualmente. Sendo assim, eles
precisam se arrepender de seus pecados e crerem em Jesus como
salvador, para que possam receber todos os benefícios da obra de Cristo em suas
vidas.
8. A extensão da justificação
Isso nos remete a extensão da expiação de Cristo. Para entendermos até
onde a justificação abarca, precisamos entender por quem Cristo
morreu. Por todas as pessoas ou somente pelos seus eleitos? Conforme diz a
tradição reformada – “Deus justifica somente o seu povo, sua igreja, aqueles
que pertencem a Deus, aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por eles
morresse e ressuscitasse”.23
Em Romanos 8.33 é dito
claramente que a extensão da justificação está limitada somente aos eleitos de
Deus, os quais ele justificou por meio da obra redentora de Cristo. Quem fará
alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. (NVI)
A morte de Cristo pelo mundo
inteiro ou por todas as pessoas em geral, conforme vemos dentre tantos textos (Is 53.4-12; Mt 26.28; Mc 10.45; Jo 1.29; Jo 3.16; Rm 5.7-10; 1Co 15.3;
Gl 1.3-4; Tito 2.14; 1Jo 2.1-2; Hb 2.9; Ap 5.8-9; Mc 4.11-12; Jo 10.11,15,
26-28; Jo 17.6-9, 19-21) não deve ser entendida no âmbito universal, isto é,
que a morte de Jesus foi pelos eleitos e para os não eleitos, para os crentes e
para os que nunca vão querer ser crentes. Expressões como
essa não significam em todo o contexto das Escrituras que a extensão é
universal, mas simplesmente utiliza os termos mundo, por todos e por
nós para sintetizar a universalidade e diversidade dos vários eleitos
espalhados por todo mundo.
Apocalipse 5.9 ... pois foste morto, e com teu sangue compraste
para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação. (NVI)
Ronald Hanko corrobora que o
que tais passagens ensinam é que Cristo morreu por todos os homens sem
distinção, não por todos os homens sem exceção. Em outras palavras, tais
passagens ensinam que Cristo morreu por todos os tipos de homens (1Tm 2.6a),
por todos que estão nEle (1Co 15.22), ou pelo mundo de seu povo, isto é, por
seus eleitos de todas as nações.24
Concluímos, então, que, assim
como a expiação de Cristo foi limitada, a justificação também é limitada, isto
é, restrita e eficaz somente nos eleitos para a salvação. Em contrapartida, o restante da humanidade não eleita desfruta e participa
também dos benefícios da morte vicária de Jesus, porém não para a salvação e
justificação, mas no que se refere a uma providência geral ou graça comum, que incluí bênçãos
materiais, saúde, prosperidade, dentre outras coisas.
CONCLUSÃO
Duas considerações finais
acerca dos benefícios da justificação:
1) A doutrina da justificação
nos dá esperança para a salvação mediante a fé na justiça de Cristo, visto que nunca será
perdida (1Pe 1.5).
2) A doutrina da justificação
nos remete a confiança e alegria de que nossos pecados foram pagos e perdoados
na cruz de Cristo pelos seus méritos, e que Deus nunca irá nos punir, nos
condenando ao castigo eterno (Rm 8.1). Por outro lado, estamos sujeitos à
consequência de pecados cometidos e a disciplinas oriundas do Senhor por causa
deles (Hb 12.5-11).
Na justificação, Deus não nos
torna justos, Ele perenemente nos declara justos, completamente inocentes como
se jamais houvéssemos pecado contra Ele! É Deus declarando o culpado como
inocente, o injusto como justo!
2 Coríntios 5.19 – Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da
reconciliação. (ARC)
NOTAS:
1. John Macarthur, artigo: Muito antes de Lutero: Jesus e a doutrina da
Justificação.
2. Antony Hoekema. Salvos pela Graça, pág 155.
3. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 184-185.
4. Louis Berkhof. Teologia Sistemática, pág 510.
5. Franklin Ferreira. Teologia Sistemática, pág 254.
6. John Murray. Redenção consumada e aplicada, pág 109.
7. John Stott. Romanos, pág 124.
8. Hernandes Dias Lopes. Comentário Bíblico de Romanos, pág 165.
9. Ibid, pág 166.
10. Hernandes Dias Lopes. Comentário Bíblico de Romanos, pág 168.
11. John Stott. Romanos,
pág 127.
12. Louis Berkhof. Teologia
Sistemática, pág 520.
13. David S. Steele e Curtis
C. Thomas. Justificação pela Fé (A dupla imputação). Jornal: Os Puritanos.
14. Calvino. Institutas da
religião Cristã, III, 11,23.
15. David S. Steele e Curtis
C. Thomas. Justificação pela Fé (A
dupla imputação). Jornal: Os Puritanos.
16. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 188.
17. Ibid,
pág 185.
18. Calvino. Institutas da religião Cristã, III,
11,17.
19. Heber Carlos de Campos. A justificação pela fé nas tradições
Luteranas e Reformadas.
20. Calvino. Institutas da religião Cristã, III,
11,17.
21. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 185.
22. Louis Berkhof. Teologia Sistemática, pág 516-517.
23. Heber Carlos de Campos. A justificação pela fé nas tradições
Luteranas e Reformadas.
24. Ronald Hanko. Doctrine according to Glodiness,
Reformed free publishing Association, pág 155-156.
Autor:
Leonardo Dâmaso
Divulgação:
Reformados 21