Se você
perguntasse aos teólogos nos seminários ou às pessoas nas ruas, “o que é o
calvinismo?”, as respostas que você obteria seriam bem diferentes.
Apresentações distorcidas são bem abundantes. Por exemplo, no dia de Ação de
Graças em 2007, o Grand Rapids Press publicou um artigo escrito por John M.
Crisp intitulado Pensando como um
Peregrino sobre Ação de Graças. Ele disse a respeito dos peregrinos: “As
suas raízes religiosas retrocediam as
doutrinas melancólicas de João Calvino; e isso significa - ao risco de parecer exagerada –
que eles viviam com o temor importuno de que pendiam, a cada momento, em um fio
delicado sobre o ardente abismo do inferno, apesar de sua fé, boas obras e
manifestações exteriores das bênçãos de Deus”.
Algum
calvinista reconhece isso como uma definição de calvinismo? Escrevi como resposta
ao Grand Rapids Press: “Esta afirmação não é uma simplificação exagerada. É uma
apresentação incorreta. Calvino e muitos dos peregrinos regozijavam em Cristo,
seu Salvador, e tinham vidas cristãs cheias de júbilo e profundidade
espiritual, com certeza de fé nas ricas promessas de Deus”.
É claro que
muitos cristãos e, infelizmente, muitos calvinistas, não têm um entendimento
apropriado do verdadeiro âmago do calvinismo. Charles H. Spurgeon disse certa
vez: “Não há nada sobre o que o homem precisa ser mais instruído do que sobre a
verdadeira natureza do calvinismo”. Quer você seja um calvinista, um não
calvinista ou um anticalvinista, você precisa dar a essa pergunta uma atenção
justa: o que é, realmente, a essência do calvinismo?
O PRINCÍPIO
BÁSICO DO CALVINISMO
A teologia
calvinista inclui todas as doutrinas evangélicas essenciais, tais como a deidade de Cristo, a expiação
objetiva e a pessoa e a obra do Espírito Santo. Também inclui doutrinas desenvolvidas pelos grandes teólogos cristãos, como Atanásio,
Agostinho, Anselmo e Martinho Lutero. Contudo, não é totalmente correto dizer,
como o fez o rabino John Duncan: “Não há tal coisa como calvinismo porque os
ensinos de Agostinho, Remigius [de Lyon], Anselmo e Lutero foram apenas
reunidos por um homem notável e batizado com o seu nome”.
A síntese
de Calvino é bem mais notável que isso. Ele não foi, com certeza, alguém que
teve novos discernimentos com base nos ensinos de Agostinho. A apresentação do plano de
salvação, a escolha dos materiais e
o senso de interconexão da doutrina bíblica por parte de Calvino são
singulares. Ele foi um gênio na organização e sistematização. Sua dívida para com os antecessores não deprecia a sua originalidade, que está evidente
em sua doutrina da filiação divina; em sua ênfase sobre a humanidade do
Redentor e seu ofício tríplice como profeta, sacerdote e rei; em sua explicação
do testemunho interno do Espírito Santo; em seu desenvolvimento do sistema
presbiteriano de governo eclesiástico; em sua explanação de como o culto deve
fundamentar-se no segundo mandamento, o que os puritanos desenvolveriam mais
tarde como o princípio regulador do culto.
Além disso,
os calvinistas, através da história, não têm sido meros imitadores de Calvino.
Por exemplo, ao desenvolverem a
teologia do pacto, a teologia dos decretos e a doutrina da segurança da fé,
eles se esforçaram para explicar todo o conselho de Deus no contexto de toda
profundidade, harmonia e coerência das Escrituras.
Apesar das
diversas correntes contribuintes, o calvinismo é notavelmente bem definido e consistente. Como
Valentijn Hepp escreveu: “O calvinismo é o mais amplo e o mais profundo
cristianismo; ou, se você preferir, o mais puro cristianismo; ou, como eu
prefiro qualificá-lo, o mais consistente e, igualmente, o mais harmonioso
cristianismo”. Qual é o
âmago do sistema calvinista? Através dos séculos, muitos eruditos têm procurado
identificar um conceito singular que governa o calvinismo. Herman Bauke, um
calvinista alemão, reúne pelo menos vinte interpretações do “princípio básico
do calvinismo”.
Algumas
delas são:
A predestinação: Enquanto
alguns eruditos dizem que a predestinação é o âmago da verdade reformada, essa afirmação
pode ser mal entendida, se for admitida no sentindo que tudo procede de
predestinação absoluta, de tal modo que o que acontece no tempo é pouco
relevante. Essa visão hiper calvinista leva a uma tendência a afastar-se da
revelação bíblica para um tipo de teologia mais racionalista.
O pacto: Enquanto o relacionamento pactual
entre Deus e o homem é enfatizado na teologia reformada, não é necessariamente conceito controlador. Todos os homens
estão, de fato, em aliança com Deus ou são transgressores do pacto, mas Calvino
não estruturou todas as doutrinas em cima dessa verdade importante.
A soberania de Deus: Soberania
implica “governo”; portanto, falar de soberania de Deus significa referir-se ao
governo de Deus. A soberania de Deus é a sua supremacia, sua realeza e sua
deidade. A soberania de Deus declara-o como Deus, a incompreensível trindade
que, apesar disso, é conhecível à proporção que decide revelar-se a nós. A
soberania de Deus é exercida em todos os seus atributos, declarando-o como perfeito
em todos os aspectos e possuidor de toda justiça e santidade. Ele é o soberanamente gracioso e
onipotente Jeová, o Altíssimo, que faz a sua vontade nos exércitos dos céus e
nos habitantes da terra (Dn 4:35). Ele não pode ser reduzido a categorias especiais
ou temporais para ser analisado e entendido pelo homem.
Neste ponto
nos aproximamos da verdadeira essência do calvinismo. O calvinista crê que Deus
é o Senhor da vida e Soberano do universo, cuja vontade é a chave da história.
O calvinista crê que Deus é livre e independente de qualquer força, além dele mesmo, para realizar
seus propósitos; crê que Deus sabe o fim desde o princípio; que ele cria,
sustenta, governa e dirige todas as coisas e que seu desígnio maravilhoso será
total e perfeitamente manifestado no fim das eras. Porque dele e por meio
dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente
(Romanos 11:36). Como disse Charles Hodge: “A soberania de Deus é para todas as
outras doutrinas o que a formação granítica é para os outros estratos da terra.
Está por baixo delas e sustenta-as, mas aparece apenas aqui e acolá. Assim,
esta doutrina deve subjazer toda a
nossa pregação e ser afirmada somente de vez em quando”.
A soberania
de Deus é o âmago do calvinismo doutrinário – contanto que entendamos que essa
soberania não é arbitrária, e sim que é a soberania de Deus e pai de nosso
Senhor Jesus Cristo. Como escreveu Duncan: “É uma vontade santa que governa o
universo – uma vontade em que a misericórdia está guardada para ser manifestada no
devido tempo. É solene o fato de que todas as criaturas estão a disposição da
vontade pura; todavia, essa soberania não é meramente livre arbítrio, é o livre
arbítrio do soberano Senhor Jeová e, por isso, distinto da abstração e da
aparente arbitrariedade da
mera vontade”. B.B. Wardfiel escreveu
em sua análise sobre a predestinação: ‘Os escritores bíblicos acharam
constantemente o seu consolo na segurança de que a determinação da sequência
dos acontecimentos e de todos os seus assuntos descansa nas mãos do Deus justo,
santo, amável e fiel... As raízes da eleição divina estão plantadas no
insondável amor de Deus, pelo qual ela se manifesta como o ato supremo da
graça”.
Isso é
calvinismo genuíno, equilibrado, defensável. É o calvinismo expresso em Isaías
9:6, o qual afirma que o governo, ou a soberania, está sobre os ombros daquele
que é “Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da
Paz”. Em Cristo, a soberania amorosa e paternal do Deus das Escrituras é
amplamente diferente da soberania fria e caprichosa dos outros supostos deuses,
tais como Alá. A soberania benevolente, como a própria encarnação, está em
perfeita harmonia com todos os atributos de Deus. Os calvinistas tranquilizam-se
na convicção de que por trás da providência universal de Deus está a plena
aquiescência do Deus trino. A graça e o amor soberanos que foram ao Calvário
têm todo o mundo em suas mãos. A soberania benevolente de Deus, em Cristo, é a
essência de Deus.
Autor: Joel Beeke
Trecho extraído do livro Vivendo para a glória de Deus, pág 53-57.
Editora Fiel