No artigo anterior, iniciamos
a publicação de trechos do livro Calvinismo, do
teólogo, pastor e estadista holandês Abraham Kuyper. Prosseguimos, nesta segunda parte,
com a abordagem feita pelo autor acerca das duas teorias que se opõem a
doutrina calvinista de soberania das esferas: a Soberania Popular proclamada
pela Revolução Francesa de 1789 e a Soberania do Estado defendida pela escola
alemã. Esperamos contribuir para uma correta compreensão da política sob a luz
do cristianismo. Boa leitura!
A
Revolução Francesa – Soberania Popular
O que foi que impeliu e animou
a disposição dos homens na grande Revolução Francesa? Indignação pelos abusos
que tinham se insinuado? Um horror ao despotismo coroado? Uma nobre defesa dos direitos
e liberdades do povo? Em parte certamente, mas nestas motivações há tão pouco
de pecaminoso, que até mesmo um calvinista agradecidamente reconhece o
julgamento divino nestes três particulares, o qual naquele tempo foi executado
em Paris. Mas a força propulsora da Revolução Francesa não encontra-se nesta
aversão aos abusos. Quando Edmund Burke compara a “Gloriosa Revolução” de 1688
com o princípio da Revolução de 1789, ele diz: “Nossa revolução e aquela da
França são exatamente o contrário uma da outra em quase cada particular, e no
espírito todo da operação.”60 Este mesmo Edmund Burke, tão severo
antagonista da Revolução Francesa, defendeu varonilmente sua própria rebelião
contra a Inglaterra,61 como “originando-se de um princípio de
energia que se evidenciou neste povo bom a principal causa de um espírito
livre, extremamente oposto a toda submissão implícita da mente e da opinião.”
Revoluções
Calvinistas
As três grandes revoluções no
mundo calvinista deixaram intacta a glória de Deus, não somente isto, elas até
mesmo originaram-se do reconhecimento de sua majestade. Todos admitirão isto de
nossa rebelião contra a Espanha, sob William o Silencioso. Igualmente, isto não
foi posto em dúvida sobre a “gloriosa revolução”, que foi coroada pela chegada
de William III de Orange 63 e o destronamento dos Stuarts. Também é
igualmente verdade de sua própria Revolução.
A
Revolução Americana
Este reconhecimento é expresso
muitas vezes por John Hancock na Declaração de Independência, a qual os
Americanos declararam em virtude - “da lei da natureza e da natureza de Deus”;
que eles agiram – “como dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis”;
que eles apelaram para – “o Supremo Juiz do mundo para a retidão de suas intenções”;64
e que eles produziram sua “declaração de independência”- “com a firme confiança
na proteção da providência divina”.65 Nos “Artigos da Confederação”
é confessado no preâmbulo, - “que tem agradado ao grande Governador do mundo
inclinar os corações dos legisladores”.66 É também declarado no
preâmbulo da Constituição de muitos Estados: - “Agradecemos ao Deus
Todo-Poderoso pela liberdade civil, política e religiosa, que ele nos tem
permitido gozar até aqui e olhamos para ele para abençoar nossos esforços”.67
Deus é ali honrado como “o Soberano Governador”,68 e o “Legislador
do Universo”69 e é ali admitido especificamente, que somente de Deus
o povo recebeu “o direito de escolher sua própria forma de governo”.70
Em um dos encontros da Assembleia,
Franklin propôs, num momento de suprema ansiedade, que eles deveriam pedir
sabedoria a Deus em oração. E se alguém ainda tem duvidas se a Revolução Americana
foi homogênea com a de Paris ou não, esta dúvida é posta completamente de lado
pela luta cruel entre Jefferson e Hamilton em 1793. Portanto, como o
historiador alemão Von Holtz declarou: “Es wäre Thorheit zu sagen dass die
Rosseauschen Schriften einen Einfluss auf die Entwicklung in America ausgeübt
haben”.71 (“Seria simples loucura dizer que a Revolução Americana
tomou emprestado sua energia propulsora de Rousseau e seus escritos”.) Ou como o
próprio Hamilton o expressou, ele considerava “a Revolução Francesa não ser
mais aparentada com a Revolução Americana do que a esposa infiel numa novela
francesa é igual a matrona puritana na Nova Inglaterra”.
A
Revolução Francesa Ignorou Deus
Em princípio a Revolução
Francesa é distinta de todas estas revoluções nacionais, as quais foram empreendidas
com lábios orando e com confiança na ajuda de Deus. A Revolução Francesa ignora
Deus. Ela se opõe a Deus e se recusa a reconhecer uma causa mais profunda da vida
política do que aquela que é encontrada na natureza, isto é, neste caso, no
próprio homem. Aqui o primeiro artigo da confissão da mais absoluta
infidelidade é – “ni Dieu ni maitre”. O Deus soberano é destronado e o homem
com seu livre arbítrio é colocado no assento vago. É a vontade do homem que
determina todas as coisas. Todo poder, toda autoridade procedem do homem.
Assim, parte-se do homem
individual para a maioria dos homens; e naquela maioria dos homens concebida
como o povo está escondida a fonte mais profunda de toda soberania. Não há
indícios, como em sua Constituição,73 sobre uma soberania derivada
de Deus, a qual ele, sob certas condições, implanta no povo. Aqui se afirma que
em todo lugar e em todos os estados uma soberania original pode proceder
somente do próprio povo, não tendo raiz mais profunda do que na vontade humana.
Portanto, é uma soberania do povo, o que é perfeitamente idêntico ao ateísmo. E
aqui encontra sua auto humilhação. Na esfera do Calvinismo, como também em sua
Declaração, o joelho está dobrado diante de Deus, ao posso que diante do homem
a cabeça está orgulhosamente erguida. Mas aqui, do ponto de vista da soberania
do povo, o punho está desafiadoramente cerrado contra Deus, enquanto que o homem
humilha-se perante seus semelhantes, dando falso brilho a esta auto humilhação pela
ficção ridícula de que, milhares de anos antes, homens de quem ninguém tem
qualquer lembrança determinaram um contrato político, ou, como eles o chamam
“Contrato Social”.
Os
Resultados da Revolução Francesa
Agora, perguntem pelo
resultado? Então, deixem a História falar sobre como a rebelião da Holanda, a
“gloriosa Revolução” da Inglaterra e sua própria rebelião contra a Coroa
Britânica tem trazido honra a liberdade; e respondam por vocês mesmos a
pergunta: A Revolução Francesa tem resultado em algo mais exceto o algemar da
liberdade nos ferros do Estado onipotente? De fato, nenhum país em nosso século
19 tem tido uma história do Estado mais triste do que a França.
A Escola
Alemã – Soberania do Estado
Não é de admirar que, desde os dias de De Savigny e
Niebuhr, a Alemanha científica tenha se libertado desta fictícia soberania do
povo. A Escola Histórica, fundada por aqueles homens eminentes, tem exposto ao ridículo
a ficção apriorística de 1789. Todo historiador especialista a ridiculariza
agora. Somente aquilo que eles recomendaram em lugar dela não traz impressão
melhor.
Não mais seria a soberania do
povo, mas a soberania do Estado, um produto do panteísmo filosófico alemão. As
ideias são encarnadas na realidade, e entre estas a ideia do Estado foi a mais
alta, a mais rica, a mais perfeita ideia da relação entre os homens. Assim, o
Estado tornou-se uma concepção mística. O Estado foi considerado como um ser misterioso,
com um ego oculto; com uma consciência de Estado desenvolvendo-se lentamente; e
com uma poderosa vontade de Estado crescendo, a qual por um processo lento
esforçou-se para às cegas alcançar o mais alto propósito do Estado. O povo não
foi entendido como sendo a soma total dos indivíduos como com Rousseau. Foi
corretamente visto que um povo não é um agregado, mas um todo orgânico. Este organismo
necessariamente deve ter seus membros orgânicos. Lentamente estes órgãos
chegaram a seu desenvolvimento histórico. A vontade do Estado opera por estes
órgãos, e tudo deve dobrar-se perante esta vontade.
As
Formas da Soberania do Estado
Esta soberana vontade do Estado poderia revelar-se numa república,
numa monarquia, num César, num déspota asiático, num tirano como Filipe da
Espanha, ou num ditador como Napoleão. Todas estas eram apenas formas nas quais
a ideia única do Estado incorporou-se; os estágios de desenvolvimento num processo
sem fim. Mas, em qualquer forma que este ser místico do Estado se revelasse, a
ideia continuou suprema; em poucas palavras, o Estado afirmou sua soberania e
para cada membro permaneceu a pedra de toque de sabedoria para dar lugar a esta
apoteose do Estado.
A
Soberania do Estado Contrapõe-se à de Deus
Assim todo direito
transcendente em Deus, para o qual o oprimido erguia sua face, morreu. Não há
outro direito exceto o direito imanente que está anotado na lei. A lei está
certa, não porque seu conteúdo está em harmonia com os princípios eternos do
direito, mas porque ela é a lei. Se no período seguinte ela fixa o próprio
oposto, isto também deve estar certo. E o fruto desta teoria enfraquecedora é,
naturalmente, que a consciência do direito está embotada, que toda estabilidade
do direito afasta-se de nossa mente, e que todo entusiasmo mais alto pelo
direito é extinguido. Aquilo que existe é bom porque ele existe; e não é mais a
vontade de Deus, daquele que nos criou e nos conhece, mas torna-se a sempre
mutável vontade do Estado, que, não tendo ninguém acima dela, realmente
torna-se Deus, e deve decidir como será nossa vida e nossa existência.
E quando, além disso, vocês
consideram que este Estado místico expressa e aplica sua vontade somente através
de homens – que prova a mais é exigida de que esta soberania do Estado,
exatamente como a soberania popular, não excede a humilhante sujeição do homem
a seu semelhante e nunca eleva-se ao dever de submissão que encontra sua força
na consciência?
O
Calvinismo Aponta para a Fonte do Direito Eterno
Entretanto, em oposição tanto
à soberania popular ateísta dos enciclopedistas, como a soberania do estado
panteísta dos filósofos alemães, o calvinista mantém a soberania de Deus, como
a fonte de toda autoridade entre os homens. E defende nossas mais altas e
melhores aspirações colocando cada homem e cada povo diante da face de nosso Pai
celeste. Toma conhecimento do fato do pecado, que outrora foi jogado fora em
1789, e que agora, em extravagância pessimista, é considerando a essência de
nosso ser.
O Calvinismo aponta para a
diferença entre a concatenação natural de nossa sociedade orgânica e o laço
mecânico que a autoridade do magistrado impõe. Ele torna fácil para nós
obedecer a autoridade, porque, com toda autoridade, nos motiva a honrar a
exigência da soberania divina. Ergue-nos de uma obediência nascida do medo do
exército forte, para uma obediência por causa da consciência. Ensina-nos a
olhar por cima da lei existente para a fonte do Direito eterno de Deus, e cria
em nós a coragem indomável para protestar incessantemente contra a injustiça da
lei em nome deste Direito superior. E embora o Estado possa poderosamente
afirmar-se e oprimir o livre desenvolvimento individual, acima deste Estado
poderoso há sempre brilhando diante dos olhos de nossa alma, como infinitamente
mais poderosa, a majestade do Rei dos reis. Cujo tribunal justo sempre mantém o
direito de apelação para todos os oprimidos, e para quem a oração do povo
sempre sobe, para abençoar nossa nação e, nesta nação, nós e nossa casa!
Calvinismo e Política (1/4)
NOTAS
60. Burke, Works, III, p. 25,
Ed. McLean, London.
61. NT –
Burke refere-se a revolução americana contra o domínio inglês.
62. NT – Também conhecido
como “Guilherme, o Silencioso”.
63. NT – Também conhecido
como “Guilherme de Orange”.
64. Constituição Americana,
por Franklin B. Hugh; Albany; Weed, Parsons & Co.; 1872, Vol. I, p.5.
65.
Ibidem, p. 8.
66.
Ibidem, p. 19.
67.
Ibidem, II. p. 549.
68.
Ibidem, p. 555.
69.
Ibidem, p. 555.
70. Ibidem, p.
549.
71. Von Holtz, Verfassung und
Democratie der Vereinigten Staten von America; Dusseldorf, 1973;
I, p. 95.
72. John F. Morse, Thomas
Jefferson; Boston, 1883; p. 147. Num
sentido positivamente cristão Hamilton
propôs numa carta a Bayard (Abril de 1801) a fundação de “Uma Sociedade Constitucional
Cristã”, e escreveu em outra carta, citada por Henry Cabot Lodge, Alexandre Hamilton; Bostom, 1892; p.
256; “Quando eu encontro a doutrina do Ateísmo promovida abertamente
na Convenção Parisiense, e com ruidoso aplauso; quando eu vejo a espada do fanatismo
estendida para forçar um credo político sobre cidadãos, que foram instados a submeterem-se
aos exércitos da França como os precursores da Liberdade; quando eu vejo a mão da
voracidade estendida para prostar e arrebatar os monumentos da adoração
religiosa, eu reconheço
que tenho prazer em crer que não há semelhança real entre qual foi a causa
da América
e a causa da França”.
73. NT – Refere-se a
Constituição Americana.
Autor: Abraham
Kuyper
Trecho extraído do livro Calvinismo, pág 93-97. Editora: Cultura Cristã