Nada, literalmente, é
possível sem o poder ordenador e criativo de Deus.
O filósofo alemão Martin
Heidegger afirmou que a questão básica visada pela Metafísica é: “Por que
existe algo ao invés de nada?”. Mediante tal definição, diz o filósofo, a ideia
de uma Metafísica Cristã é um “círculo quadrado”,1 uma contradição
em termos. Por quê? Porque o cristão já sabe, de antemão, a resposta para a
questão. Sabemos que há algo ao invés de nada porque Deus criou o mundo.
A despeito de nossa opinião
acerca da definição heideggeriana de Metafísica, nós podemos concordar que ele
estava certo a respeito de uma coisa. A crença de que Deus criou o mundo, que a
realidade é – em um sentido fundamental – criação, é fundamental para o
pensamento cristão.
Essa é uma confissão cristã
ecumênica.2 Entretanto, talvez não exista tradição cristã na qual o
ensino a respeito da criação possua um papel fundamental como na vertente que
parte da Escritura, passando por Irineu, Agostinho, Calvino e Kuyper até
ao Comment.3 Nesta corrente da tradição cristã, a criação é concebida
de uma maneira particularmente abrangente, e mesmo a salvação é, em larga
medida, entendida como a recuperação da criação tal como originalmente
pretendida por Deus. A criação é algo fundacional para todas as coisas. Mais
ainda, a criação é boa de um modo primordial e profundo – tão profundo, de
fato, que bondade da criação continua a se manifestar mesmo em meio à terrível
perversão.
Diferentemente de outras
compreensões do Cristianismo ortodoxo, essa veia da tradição supramencionada
não vê a redenção como algo que está em oposição à criação (como o é na
Teologia Dialética), ou como uma complementação ou realização dela (como em
algumas compreensões do Tomismo), ou como paralela a ela, sem nenhuma ligação
intrínseca (como nas várias teorias dos “dois reinos”4; antes, a
redenção é vista como uma ação que restaura e renova a criação. Dessa forma, a
criação, encarnando a intenção que Deus mantinha desde o princípio, é o próprio
objeto da salvação em Cristo. O ponto fulcral da Redenção é a restauração da
vida e do mundo à forma planejada para eles desde o princípio. Salvação implica
em re-criação; a graça restaura a natureza.
Contudo, a fim de
compreendermos isso apropriadamente, precisamos ter uma visão do conceito de
criação muito mais abrangente e variegada do que aquela do uso comum entre os
cristãos. A primeira coisa que vem à mente da maioria das pessoas quando
tratamos a respeito da criação é o assim chamado “mundo natural” – isto é, o
mundo físico e biológico. Logo pensamos nas estrelas e galáxias, assim como nas
moléculas e átomos, e nas árvores e flores, assim como nos pássaros e feras.
Mas essa é uma visão extremamente limitada da criação. Na visão bíblica, a
criação é tudo aquilo que Deus ordenou que viesse à existência, o que Ele
colocou em prática como parte da Sua criativa mão-de-obra humana.5
Sem dúvida isso inclui a grande variedade de entidades e processos físicos, bem
como a enorme diversidade da flora e da fauna que Deus criou “segundo suas
espécies”; todavia, abrange muito mais do que isso. A criação inclui realidades
humanas tais como a família e outras instituições sociais, a presença da beleza
no mundo, a habilidade para apreciar tal beleza, os fenômenos da ternura e do
riso, a capacidade de conceituação e raciocínio, a experiência da alegria e o
senso de justiça. Uma variedade quase inconcebível de objetos, instituições,
relacionamentos e fenômenos são parte da rica textura da criação de Deus.
É um fato marcante que a
religião bíblica não é a única que apresenta tal visão. Embora exista um senso
no qual a ideia de criação (entendida como um arranjo ordenado e contingente da
realidade posto em movimento por um Deus transcendental) seja única no
pensamento bíblico – certamente os gregos nunca conceberam isso –, a ideia
geral de uma ordem cósmica divinamente sancionada, que engloba tanto o mundo
natural quanto a sociedade e a vida humana, é amplamente difundida dentre os
povos.
Por exemplo, já foi dito que a
noção de “criação” presente em outras nações do antigo Oriente Próximo (na
Mesopotâmia, Egito e nos arredores) referia-se primariamente ao modo pelo qual
a sociedade fora organizada. Os vários “mitos de criação”, embora não
excluíssem o mundo físico e biológico, foram inicialmente engendrados para
explicar o mundo humano com sua cultura e sociedade, as instituições como a
realeza, e o sacerdócio. O trabalho de Richard Clifford a respeito desses
antigos mitos de criação é particularmente iluminador nesse sentido.
Contudo, a noção de uma ordem
do mundo divino toda-abrangente se encontra muito mais difundida no antigo
Oriente Próximo. Todas as culturas virtualmente possuem mitos e religiões que
pressupõem uma ordem, e que relaciona tal ordem, em primeiro lugar, com a
ordenação da sociedade humana. A Religião Comparada e a Antropologia Cultural
se deparam com essa ideia de uma ordem universal – na qual a humanidade e todas
as suas manifestações culturais se ajustam perfeitamente como um bebê no útero
– em todas as sociedades humanas, virtualmente. As grandes exceções são as
sociedades moldadas pela linhagem vigente, desde a Renascença europeia, das
filosofias e ideologias seculares do Ocidente. Tais sociedades criaram uma
lacuna entre o mundo natural e o mundo humano, de forma que os padrões da vida
humana e cultural não são mais buscados em uma ordem externa dada, mas, sim, no
próprio sujeito, que produz sua própria ordem a partir de sua própria
autoridade.
Tudo isso para dizer que a
ideia bíblica de criação, que engloba muito mais do que o mundo natural, não é,
de maneira alguma, peculiar, visto a partir de uma perspectiva da História
universal. O que de fato é peculiar a respeito do conceito bíblico é, antes, o
Criador transcendente e soberano que faz tudo acontecer, e o fato de que Este
Criador realiza Sua obra sem qualquer material preexistente. A criação bíblica
é uma creation ex nihilo, a criação a partir do “nada”6, o que
significa, é claro, uma criação que não é realizada a partir de coisa alguma,
sem qualquer tipo de matérias-primas. Deus simplesmente falou e as coisas
passaram a existir.
Consequentemente, de um ponto
de vista amplamente cultural e histórico, não é de todo surpreendente que a
Bíblia inclua elementos como a ordem política ou a instituição do casamento
como coisas criadas por Deus – como partes daquilo que Ele ordenou desde o
princípio. Nem deveríamos concluir, a partir de textos bíblicos que mencionam a
ordem política e o casamento (tenho em mente aqui principalmente Romanos 13:1,
1 Pedro 2:13 e 1 Timóteo 4:3-4), que estas sejam as únicas instituições sociais
e realidades culturais que pertencem à disposição das coisas por Deus ordenada.
São simplesmente ilustrações incidentais de uma verdade geral, adotada por toda
a Escritura, segundo a qual nada, literalmente falando, é possível sem o poder
criativo e ordenador de Deus, o qual estabelece a lei para as criaturas e as
relações e fenômenos criados em toda a sua vasta variedade.
É especialmente a ideia de lei
criacional que clarifica a concepção bíblica de criação. Como um rei soberano,
Deus decreta Suas leis (Seus decretos, Seus estatutos, Suas ordenanças, Suas
palavras) para tudo aquilo que existe. A realidade é constituída pelo Sua
criativa palavra de comando. Consequentemente, tudo é criacional no sentido de
que é tanto constituído e normatizado pelo fiat7 divino. Isso se
aplica tanto ao instinto do pássaro de construir seu ninho quando aos
princípios da jurisprudência ou ao pensamento lógico. Evidentemente, no caso
das dimensões da criação que são tipicamente humanas, as normas e padrões que
são postos em prática por Deus também exigem a responsabilidade da
implementação humana, e por isso variam no seu desenvolvimento em tempos e
locais diferentes.
É difícil – na verdade,
impossível – tratar cristãmente da criação abstraindo de duas outras categorias
fundamentais da narrativa bíblica: pecado e salvação. Pecado significa a
distorção da criação, e salvação a sua recuperação em Cristo. Isso quer dizer
que, na vida cristã redimida, a criação retorna de modo “vingativo”, por assim
dizer. É na glória ricamente urdida da vida humana criada, na qual mães cantam
canções de ninar para seus bebês, e na qual crianças correm pelo simples prazer
de estarem se deslocando rapidamente, que Deus quer ser glorificado por meio de
nosso serviço e testemunho dedicados a Ele, de forma que todo o mundo possa ver
o que é a verdadeira vida humana criada, apesar das cicatrizes e flagelos do
pecado e da morte. Isso se aplica às nossas idas ao cinema e à produção
cinematográfica; às nossas festas e aos nossos exercícios filosóficos; à nossa
imaginação e à nossa determinação.
A criação se constitui como a
trama e a urdidura8 de nossas vidas diárias – e em Cristo ela se
torna gloriosa. Nós devemos ser, individual e comunitariamente, os “pôsteres”
do Reino – a criação regenerada – de Jesus Cristo. Quando o Apóstolo Paulo diz
que a Igreja é a “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15), ele
certamente não quer com isso dizer que nós, como povo de Deus, de alguma forma
asseguramos ou sustentamos a verdade divina. Pelo contrário, o que a imagem
utilizada pelo Apóstolo transmite é que nós, como povo de Deus, somos
coletivamente os muros e postes que mantiveram os grafites do mundo antigo [o
mundo criado originalmente bom], enviando mensagens para todos aqueles que
passam por nós. Nós devemos ser os letreiros do Evangelho na extraordinária
simplicidade de nossas vidas – extraordinária por causa do poder renovador do
Espírito Santo, e simples por causa do material criacional comum de nossas
vidas cotidianas. É nesse senso profundamente terreno e mundano que a criação
é, para usar a frase cativante de Calvino, o teatro da glória de Deus.
Cosmovisão Reformada (2/3)
NOTAS:
1. No original “wooden iron”,
termo que, se traduzido ipsis litteris, seria “ferro de madeira”. Na verdade, é
utilizado na filosofia retórica para designar a impossibilidade de um argumento
oposto, isto é, duas palavras contraditórias que aparecem juntas numa mesma
proposição, geralmente um adjetivo que se opõe ao substantivo, por exemplo,
“gelo quente”, um “fogo frio”, “luz escura”, etc. Na filosofia grega antiga, o
termo utilizado para designar esse equívoco lógico era σιδηροξύλον
(sideroxylon). O autor do artigo afirma que, uma vez que para Heiddeger a
tarefa da Metafísica é a investigação dos fundamentos últimos da Ontologia, a
Filosofia Cristã não faz sentido para a Metafísica Heiddegeriana, pois o
cristão já parte do pressuposto que Deus é a fonte e fundamento do Ser. Na
verdade, conforme afirmar alguns apologistas pressuposicionalistas no chamado
Argumento Transcendental, a menos que tomemos Deus como pressuposto básico, é
impossível formularmos sequer uma questão, pois uma vez que nossa existência (e
de todo o cosmos) é, por definição, contingente, é preciso que haja um ente
necessário do qual derivam todos os demais. Este Ente Necessário, segundo
Leibniz já formulou, é evidentemente Deus.
2. Ecumênico é aqui utilizado
não para se referir ao movimento intereclesial e interdenominacional que busca
a interação efetiva entre líderes, sacerdotes e fieis de diferentes confissões,
mas, sim, ao fato de que todas as tradições cristãs (Protestante, Católica
Romana, Ortodoxa) aceitam, confessam e pregam a respeito da Criação a partir
das mãos de Deus, conforme especificado na primeira linha do Credo dos
Apóstolos – símbolo aceito e defendido por todas as principais tradições
cristãs –, da seguinte maneira: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do
céu e da terra”.
3. Comment: public theology
for the common good é o nome do periódico calvinista no qual o presente artigo
foi originalmente publicado. Alguns artigos estão disponíveis on-line:http://www.cardus.ca/comment/
4. A teoria dos “dois reinos”
diz respeito à visão quase maniqueístas que algumas tradições cristãs
(especialmente os chamados “Católicos Tradicionalistas, que não aceitam o
Concílio Vaticano II, e algumas correntes pentecostais) sustentam, concebendo a
Igreja como estando em guerra acirrada e perpétua contra o mundo. Para eles,
portanto, o mundo, ao invés de ser o “palco da glória de Deus” (Calvino) – onde
os atributos invisíveis de Deus e Seu eterno poder se revelam (Romanos 1:18ss)
e a plataforma, por excelência, onde se desenrola o drama da salvação –, é, por
definição, o reino de Satanás no qual a corrupção está irremediavelmente
arraigada. Essa concepção, mais gnóstica do que cristã, não leva em conta que a
Redenção efetuada por Cristo abrange, estende-se e redime todas as áreas da
criação: não apenas o mundo físico, mas também o homem em sua inteireza e todas
suas criações culturais, artísticas, intelectuais, afetivas e sociais.
Portanto, para o cristão, o mundo se torna, cada vez mais, o Reino dos Céus, o
qual há de ser regido pelo cetro de Cristo e onde Ele será de todo glorificado.
5. Esta imagem do homem como
trabalhador na propriedade de Deus retrata um dos aspectos cruciais no
pensamento neo-calvinista kuyperiano (de Abraham Kuyper), a saber, o Mandato
Cultural – a ordem dada ao homem por Deus, logo nos capítulos iniciais de
Gênesis, para dominar e sujeitar a natureza, bem como cultivar e guardar o
jardim. É interessante notar que o Mandato Cultural relaciona-se não somente
com a produção material, mas também com a cultural. Uma vez que a criação foi
criada num estado "muito bom" (diferentemente do que apregoa a
concepção gnóstica – que associa a materialidade ao mal – infelizmente tão
presente no meio evangélico brasileiro), existe um potencial inerente à ordem
criada que consequentemente também é bom. “O ‘Mandato Cultural’ de Gênesis 1.28
e 2.15 nos diz que a humanidade tem a missão de aproveitar esta potencialidade
para desenvolver a cultura como Deus planejou. Tecnologia, cultura popular, o
progresso, e sim, até na política, devem ser entendidas como parte da ordem
original de Deus criou.” (o trecho entre aspas foi extraído do site: http://abrahamkuyper.blogspot.com.br/2010/08/cosmovisao-kuyperiana.html.
6. Lembrando apenas que o
conceito filosófico de Nada aqui utilizado, ao contrário do que prevalece
equivocadamente no senso comum não diz respeito ao vazio nem ao vácuo e, muito
menos, à ausência de entes em determinado espaço (como quando se diz a respeito
de um recipiente vazio que “ele não contém nada”). Na verdade, o nada não
existe, pois se existisse não seria nada. Daí a fórmula clássica geralmente
atribuída a Parmênides: Ex nihilo nihil fit (do nada, nada vem). A expressão
retrata um princípio metafísico que afirma que o Ser não pode provir do
não-Ser. Sendo assim, quando da criação, Deus não apenas deu forma aos
materiais primordiais, mas também criou a partir do nada tais materiais.
Portanto, “pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que
as coisas visíveis se originaram do invisível.” (Hebreus 11:3).
7. Referência à frase latina
“fiat lux” (Haja luz), expressa por Deus na criação, conforme relatado em
Gênesis 1:3. Diz respeito, portanto, ao poder criativo da Palavra de Deus – “o
Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada.”
(Romanos 4:17).
8. No original: warp and woof,
nomes dados aos fios nos tecidos, compostos da urdidura (os fios que são
trançados longitudinalmente) e a trama (os fios que são trançados de modo
cruciforme), gerando assim a tessitura. Portanto, figurativamente, a expressão
também é usada para se referir à estrutura fundamental de todo e qualquer
sistema ou processo.
O
autor
Albert Wolters é professor
emérito de religião e teologia / línguas clássicas na Redeemer University
College. Serviu como membro sênior no Institute for Christian Studies em
Toronto a partir de 1974-1984, obteve seu doutorado em filosofia pela Free
University of Amsterdam, em 1972, autor do livro Creation Regained: Biblical
Basics for a Reformational Worldview. Nascido na Holanda, em 1942, Wolters
emigrou com os pais para o Canadá em 1948. Ele se formou no Calvin College em
1964, e lecionou na Redeemer University College 1984-2012.
Fonte:
Cardus
Tradução: Fabrício
Tavares
Divulgação:
Reformados 21