Estaremos publicando uma série
de quatro artigos sobre Calvinismo e política, extraídos do livro de Abraham
Kuyper " CALVINISMO", que reúne
uma série de palestras proferidas pelo autor no Princeton University and
Seminary, em 1898. Publicaremos trechos da palestra chamada "Calvinismo e
Política". Ao longo do texto, Kuyper defende, brilhantemente, que o
calvinismo abrange o conceito de Estado e que não se restringe a um movimento
"exclusivamente eclesiástico e dogmático" ou de implicações somente
soteriológicas. Sua argumentação enriquece a concepção da absoluta soberania
divina sobre o cosmos, uma contribuição inestimável do calvinismo, partindo do princípio que ela é abrangente o suficiente para explicar o que
ele denomina de tríplice soberania: Estado, Sociedade e Igreja. Nas palavras do
próprio Kuyper:
Este princípio dominante não era, soteriologicamente, a justificação pela fé, mas, sendo cosmologicamente mais amplo, a soberania do Deus Trino sobre todo o Cosmos, em todas as suas esfera e reinos, visíveis e invisíveis. Essa é uma soberania primordial que se irradia na humanidade numa tríplice supremacia, a saber, 1. A soberania no Estado; 2. A soberania na sociedade; 3. A soberania na Igreja.
Boa e proveitosa leitura a
todos!
Calvinismo
e a política
O impulso religioso do
Calvinismo também colocou debaixo da Sociedade política uma concepção
fundamental toda própria dele, precisamente porque não apenas podou os ramos e
limpou os troncos, mas alcançou a própria raiz da existência humana. Que isso
deveria ser assim torna-se imediatamente evidente a todos que são capazes de
apreciar o fato de nenhum esquema político jamais haver se tornado dominante a
menos que tenha sido fundado numa concepção religiosa especifica ou numa
concepção anti religiosa. E que este tem sido o fato com relação ao Calvinismo
que pode evidenciar-se pelas mudanças políticas que produziu naquelas três
terras de liberdade política histórica, a Holanda, a Inglaterra, a América.
Todo historiador competente,
sem exceção, confirmará as palavras de Brancoft: "O fanático pelo
Calvinismo era um fanático por liberdade, pois, na guerra moral, pela
liberdade, seu credo era uma parte de seu exército e seu mais fiel aliado na
batalha". E Groen van Prinsterer o expressou da seguinte forma: "No
Calvinismo encontra-se a origem e a garantia de nossas liberdades
constitucionais". Que o Calvinismo levou a lei pública novos caminhos, primeiro
na Europa Ocidental, depois nos dois continentes, e hoje mais e mais entre
todas as nações civilizadas, é admitido por todos os estudantes científicos, se
não ainda plenamente pela opinião pública.
Mas, para o propósito que
tenho em vista, a simples afirmação deste importante fato é insuficiente. A fim
de que a influência do Calvinismo em nosso desenvolvimento político possa ser
sentida, deve ser demonstrado por quais concepções políticas fundamentais ele
abriu a porta e como essas concepções políticas nascem de seu principio
radical. Este princípio dominante não era, soteriologicamente, a justificação
pela fé, mas, no sentido mais amplo, a Soberania do Deus Trino sobre todo o
Cosmos, em todas as suas esferas e reinos, visíveis e invisíveis. Essa é uma
soberania primordial que se irradia na humanidade numa tríplice supremacia, a
saber: 1. A soberania no Estado; 2. A soberania na sociedade; 3. A soberania na
igreja. Permitam-me demonstrar este assunto em detalhes expondo a vocês esse
desdobramento tríplice da soberania entendida pelo Calvinismo.
A
soberania no Estado
Primeiro, então, a soberania
nesta esfera política que eu defini como o Estado. E portanto, nós admitimos
que o impulso para formar estados nasce da natureza social do homem, a qual foi
expressa por Aristóteles quando ele chamou o homem de 'ser político'. Deus
poderia ter criado o homem como indivíduos separados, estando lado a lado e sem
conexão genealógica. Assim como Adão foi criado separadamente, o segundo e
terceiro e assim por diante, cada homem teria sido chamado a existência
individualmente; mas este não foi o caso. O homem é criado a partir do próprio
homem e em virtude de seu nascimento ele está organicamente unido a toda raça.
Nós formamos juntos uma humanidade.
Toda raça humana é de uma
mesmo sangue. A concepção de Estados, contudo,
que subdivide a terra em continentes, e cada continente em nacos, não se
harmoniza com essa ideia. Então a unidade orgânica de nossa raça somente seria
realizada politicamente se um Estado pudesse abraçar todo o mundo e se toda
humanidade tivesse associada em um império. Se o pecado não tivesse ocorrido,
sem dúvida este mundo realmente teria sido assim. Se o pecado, como uma força
desintegradora, não tivesse dividido a humanidade em diferentes seções, nada
teria estragado ou quebrado a unidade orgânica de nossa raça. E o erro dos
Alexandres, dos Augustos e dos Napoleões, não foi que eles foram seduzidos com o pensamento do império
mundial único, mas sim que eles se esforçaram para concretizar esta ideia
embora a força do pecado tivesse dissolvido nossa unidade.
Mas o Calvinismo tem feito
mais. Ele também nos ensina que na política o elemento humano - aqui o povo -
não pode ser considerado como a coisa principal, de modo que Deus seja forçado
a ajudar este povo somente na hora de sua necessidade, mas pelo contrário que
Deus, em sua Majestade, deve brilhar diante dos olhos de cada nação, e que
todas as nações juntas devem ser consideradas diante dele como uma gota num
balde e como pó fino das balanças. Desde os confins da terra Deus intima todas
as nações e povos diante de seu trono de julgamento, pois ele criou as nações.
E por isso todas as nações, e nelas a humanidade, devem existir para sua glória
e consequentemente segundo suas ordenanças, a fim de que sua sabedoria divina
possa brilhar publicamente em seu bem-estar, quando eles andam em suas
ordenanças.
Portanto, quando a humanidade
se desintegra por causa do pecado numa multiplicidade de povos separados;
quando o pecado, no seio das nações, separa os homens e os arrasa, e quando o
pecado revela-se em todo tipo de vergonha e iniquidade - a glória de Deus exige
que estes horrores sejam refreados, que a ordem retorne a este caos, e que uma
força compulsória, de fora, faça-se valer para tornar a sociedade humana uma
possibilidade. Deus tem esse direito e somente ele!
Nenhum homem tem o direito de
governar sobre outro homem, do contrário um direito como este necessária e
imediatamente torna-se o direito do mais
forte. Tampouco um grupo de homens, pode por contrato, de seu próprio direito
constranger você a obedecer um semelhante. Que força obrigatória há para mim
numa alegação de que épocas antes um de meus progenitores fez um 'Contrato
Social' com outros homens daquele tempo? Como homem eu continuo livre e
corajoso, em oposição aos mais poderosos dos meus semelhantes.. Não falo da
família, pois aqui governam laços orgânicos, naturais, mas na esfera do Estado
não cedo ou não me curvo a qualquer um que é homem como eu sou!
A autoridade sobre os homens
não pode originar-se de homens. Nem mesmo de uma maioria em oposição a uma
minoria, pois a História mostra, quase em todas a páginas, que muitas vezes a
minoria estava certa. E assim a primeira tese calvinista de que somente o
pecado tornou indispensável a instituição de governos, esta segunda e não menos
momentosa tese é adicionada que: toda autoridade de governo sobre a terra
origina-se somente da Soberania de Deus! Assim sustenta a palavra de Escritura:
"Por mim reis reinam", ou como o apóstolo noutra parte declarou:
"E as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que
aqueles que se opõe à autoridade resiste a ordenança de Deus. O magistrado é um
instrumento da "graça comum", para frustrar toda desordem e violência
e proteger o bem contra o mal. Mas ele é mais. Além de tudo isso, ele é
instituído por Deus como seu servo, a fim de que ele possa preservar a gloriosa
obra de Deus, na criação da humanidade, da destruição total. Assim Deus,
ordenando os poderes que existem, a fim de que através de sua instrumentalidade
possa manter sua justiça contra os esforços do pecado, concedeu ao magistrado o
terrível direito da vida e da morte. Portanto, todos os poderes que existem,
quer em impérios ou em repúblicas, em cidades ou em estados, governam pela
graça de Deus.
Além disso, Calvino declarou
que a autoridade, como tal, de modo algum e afetada pela questão como um
governo é instituído e de que forma ele se revela. É bem conhecido que
pessoalmente ele preferia uma república, e que não nutria predileção pela
monarquia, como se esta fosse a forma divina e
ideal de governo. Calvino considerava uma cooperação de muitas pessoas
sob controle mútuo, i.e., uma república desejável, agora que é necessária uma
instituição mecânica de governo por causa do pecado. Em seu sistema, contudo,
isto poderia somente significar uma diferença gradual na excelência prática,
mas nunca uma diferença fundamental quanto à essência da autoridade. Ele
considera uma monarquia e uma aristocracia, bem como uma democracia, todas
formas possíveis e praticáveis de governo, contanto que seja imutavelmente
mantido que ninguém sobre a terra pode reivindicar autoridade sobre seus
semelhantes, exceto aquela colocada sobre ele pela "graça de Deus"; e
portanto, o dever último da obediência é imposto sobre nós não pelo homem, mas
pelo próprio Deus!
A questão sobre como aquelas
pessoas, que pela autoridade divina devem ser revestidas com poder, são
indicadas, segundo Calvino não pode ser assegurado semelhantemente para todas
as pessoas e para todos os tempos. E, contudo, ele não hesita em afirmar, num
sentido ideal, que as condições mais desejáveis existem onde o próprio povo
escolhe seus próprios magistrados. Onde existe uma condição como esta, ele
conclui, o povo deveria agradecidamente reconhecer nisto um favor de Deus,
precisamente como tem sido expresso no preâmbulo de mais de uma de suas
constituições; - “Graças ao Deus Todo-Poderoso que deu a nós o poder de
escolher nossos próprios magistrados.”
Em seu Comentário sobre
Samuel, Calvino entretanto admoesta tais povos: E vós, Ó povos, a quem Deus deu
a liberdade de escolher seus próprios magistrados, cuidem-se de não se privarem
deste favor, elegendo para a posição de mais alta honra, patifes e inimigos de
Deus. Posso adicionar que a escolha popular é bem sucedida, naturalmente, onde
nenhum outro governo existe, ou onde o governo existente se enfraquece. Onde
quer que novos Estados tem sido instituídos, exceto pela conquista ou pela
força, o primeiro governo sempre tem sido instituído pela escolha popular; e
assim também onde a mais alta autoridade tem caído em desordem, quer pelo
desejo de uma fixação do direito de sucessão, quer através de revolução
violenta, sempre tem sido o povo que, através de seus representantes,
reivindicou o direito de restaurá-lo. Mas com igual resolução, Calvino afirma
que Deus tem o poder soberano no modo de administração de sua providência, para
tirar de um povo esta condição mais desejável, ou nunca concedê-la
absolutamente quando uma nação é inapta para ele, ou, por seu pecado tem sido completamente
privada da bênção.
O desenvolvimento histórico de
um povo mostra, naturalmente, por quais outros modos a autoridade é concedida.
Esta concessão pode fluir do direito de herança, como numa monarquia
hereditária. Ela pode resultar de uma guerra renhida, tal como Pilatos tinha
sobre Jesus, “dado a ele de cima”. Pode proceder dos eleitores, como fez o
velho império alemão; como também, pode repousar com os Estados de um país,
como foi o caso na velha república holandesa. Numa palavra, ela pode assumir
uma variedade de formas, porque há uma diferença infindável no desenvolvimento
das nações. Uma forma de governo como a de vocês não poderia existir um único
dia na China. Mesmo agora, os povos da Rússia estão inaptos para qualquer forma
de governo constitucional. E entre os Kafires e Hotentotes da África, até mesmo
um governo tal como existe na Rússia seria totalmente inconcebível. Tudo isto
está determinado e apontado por Deus pelo conselho oculto de sua providência.
Tudo isso, contudo, não é
teocracia. Uma teocracia somente foi encontrada em Israel, porque em Israel
Deus intervinha imediatamente. Ele mantinha em suas próprias mãos a jurisdição
e a liderança de seu povo tanto pelo Urim e Tumim quanto pela Profecia; tanto
por seus milagres salvadores quanto por seus julgamentos punitivos. Mas a confissão
calvinista da soberania de Deus vale para todo o mundo, é verdade para todas as
nações, e está forçosamente em toda autoridade que o homem exerce sobre o
homem; até mesmo na autoridade que os pais possuem sobre seus filhos. É,
portanto, uma fé política que pode ser expressa resumidamente nestas três
teses: 1. Somente Deus – e nunca qualquer criatura – possui direitos soberanos
sobre o destino das nações, porque somente Deus as criou, as sustenta por seu
poderoso poder, e as governa por suas ordenanças. 2. O pecado tem, no campo da
política, demolido o governo direto de Deus, e por isso o exercício da
autoridade com o propósito de governo tem sido subsequentemente conferido aos
homens como um remédio mecânico. 3. E, em qualquer forma que esta autoridade
possa revelar-se, o homem nunca possui poder sobre seu semelhante em qualquer
outro modo senão por uma autoridade que desce sobre ele da majestade de Deus.
Diretamente opostas a esta
confissão calvinista há duas outras teorias. A da Soberania Popular, como foi
antiteisticamente proclamada em Paris em 1789; e a da Soberania do Estado, como
recentemente tem sido desenvolvida pela escola histórico-panteísta da Alemanha.
Ambas teorias são idênticas na essência, mas por causa da clareza exigem um
tratamento separado.
Calvinismo e Política (4/4)
Calvinismo e Política (4/4)
Autor:
Abraham Kuyper
Trecho extraído do livro
Calvinismo, pág 87-93. Editora: Cultura Cristã