Um neologismo tem se tornado
comum nos últimos anos – fidelização. Trata-se de um termo da área de
publicidade e marketing que traduz um desejo de empresas em diferentes ramos de
atividade: o de que seus clientes ou consumidores se mantenham fiéis a elas e a
seus produtos. Especialmente em setores nos quais existe forte concorrência, trata-se
de um alvo buscado com crescente intensidade. Evidentemente, a fidelidade das
pessoas a um determinado fornecedor ou prestador de serviços pode não ter
quaisquer implicações éticas. Se alguém é cliente da pizzaria “a” ou “b” e
utiliza os serviços dessa ou daquela companhia de telefonia celular, isso não
tem maiores consequências fora da área mercadológica. Em outras esferas,
todavia, a fidelidade adquire uma importância muito maior, como é o caso da política
partidária. No Brasil, há muito tempo um bom número de políticos tem se
envolvido com uma prática condenável: a troca frequente de partidos, geralmente
por motivos pouco elogiáveis. Eles se filiam a uma legenda, elegem-se por ela e
depois, movidos por interesses muitas vezes questionáveis, simplesmente se
transferem para outra. Em anos recentes têm sido aprovadas leis visando coibir
a chamada “infidelidade partidária”.
Pois bem, esse é um tema que também interessa de perto às igrejas evangélicas. É um fato conhecido que muitas delas, se não todas, experimentam um considerável êxodo de membros. Muitas vezes é feito um grande esforço no sentido de atrair novos adeptos, para depois perder parte deles pelos mais diferentes motivos. Muitos líderes parecem não estar preparados para lidar com essa realidade e são escassos os materiais publicados que tratam do assunto desde uma perspectiva pastoral. O objetivo deste artigo é analisar essa questão dos pontos de vista histórico e bíblico, bem como propor estratégias a serem tomadas para amenizar esse problema.
1. Dimensão histórica
O problema da evasão de
seguidores já pode ser visto no Novo Testamento, desde a época do ministério de
Jesus. É bem conhecido o episódio em que, depois de um discurso contundente do
Mestre, muitos de seus discípulos deixaram de segui-lo (Jo 6.66). Na igreja primitiva,
o abandono da comunhão cristã geralmente estava associado à apostasia, à deserção
da fé, sendo condenado vigorosamente. É essa a atitude do autor da 1ª Epístola
de João, que se refere aos desertores como “anticristos” e acrescenta: Eles
saíram do nosso meio; entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido
dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse
manifesto que nenhum deles é dos nossos (1Jo 2.19). Na 1ª Epístola a Timóteo, Paulo
afirma que, nos últimos tempos, alguns apostatariam da fé (1Tm 4.1). É
importante lembrar que os primeiros cristãos entendiam estar vivendo nos últimos
dias. Assim, a realidade da apostasia era algo contemporâneo, e não somente
futuro. A epístola aos Hebreus lida muito diretamente com a problemática do
abandono da fé, exortando os crentes a perseverarem no evangelho (2.1-3;
3.12-13; 6.11-12). A certa altura, o autor deixa claro que a deserção da comunidade
cristã era uma realidade naqueles dias, mas apela aos seus leitores para que
resistam contra isso: Não deixemos de
congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto
mais quanto vedes que o Dia se aproxima (10.25).
Essa problemática continuou
existindo nos três primeiros séculos da era cristã, o período em que o
cristianismo era considerado uma religião ilegal (religio illicita). As duas
principais causas de afastamento da igreja eram o fascínio das heresias ou das
religiões alternativas e o temor das perseguições. Muitos cristãos deixavam a
“igreja católica”, a corrente principal do cristianismo, considerada ortodoxa,
fiel ao legado de Cristo e dos apóstolos, para se unir a manifestações
heterodoxas como o gnosticismo, o montanismo, o marcionismo e outros
movimentos. A literatura cristã antiga está repleta de alusões a esses grupos e
aos males que causavam à igreja e seus fiéis.
No contexto das perseguições,
muitas delas restritas e localizadas, e outras amplas e gerais, um grande
número de pessoas abandonava a comunidade cristã. Elas o faziam justamente para
não serem submetidas aos sofrimentos resultantes da ação repressora do estado.
Porém, cessada a perseguição, surgia um difícil problema pastoral a ser
enfrentado pelos bispos, os líderes da igreja. Muitos desses indivíduos que
haviam negado a Cristo e se entregue à idolatria e outras práticas,
arrependiam-se e manifestavam o desejo de retornar à igreja. As atitudes dos
bispos variavam em relação a tais pessoas: alguns deles, adotando uma postura
tolerante, reintegravam-nas com relativa facilidade; outros, conhecidos como
“rigoristas”, submetiam-nas a um longo e árduo processo de reinserção na
comunidade cristã. Em alguns casos, esse processo podia durar a vida inteira e
o indivíduo somente era readmitido à comunhão no seu leito de morte, caso
tivesse se mantido fiel até então. Essa situação viria a resultar no desenvolvimento
do sacramento da penitência, que visava lidar com a realidade do pecado na vida
dos batizados.1
Com o advento da era
constantiniana, no início do quarto século, marcada pela aliança da igreja com
o estado e pelo surgimento do cristianismo como religião oficial do Império
Romano, o problema da deserção tomou novos contornos. Agora, sendo a igreja majoritária
e aliada ao poder civil, era altamente desejável permanecer nela, e muito
arriscado deixá-la. Surgiu assim uma inversão de situações: enquanto nos três
primeiros séculos muitos abandonavam a igreja para não serem perseguidos, agora
essa deserção é que se tornou passível de castigo, principalmente no caso dos
heterodoxos. Um bispo espanhol, Prisciliano, e alguns de seus seguidores, foram
os primeiros indivíduos a serem executados por heresia na história do
cristianismo, em 385.2
Tal situação perdurou ao longo
de toda a Idade Média. No contexto da “cristandade”, ou seja, a sociedade
europeia fortemente influenciada pela Igreja Romana, o problema do abandono da
igreja ou da fé ficou relativamente minimizado. Todas as pessoas eram batizadas
na infância e se tornavam nominalmente cristãs. Os súditos de um estado eram ao
mesmo tempo membros da única igreja. Cidadania e fé se equivaliam. Nesse
contexto, não havia nenhuma tentação ou oportunidade para abandonar a
comunidade eclesial. Essa realidade se alterou profundamente com o surgimento
da Reforma Protestante. Esse movimento rompeu a cristandade e introduziu o
princípio da diversidade religiosa no contexto do cristianismo europeu. Tal
fato incentivou o trânsito das pessoas de uma confissão religiosa para outra.
Além disso, o advento de uma mentalidade secularizante, associada com o
Renascimento e o Humanismo, levou muitas pessoas a simplesmente rejeitarem
qualquer religiosidade institucional.
Curiosamente, por um bom tempo as novas igrejas protestantes mantiveram a mentalidade hegemônica do catolicismo
medieval. Em todas as nações ou regiões protestantes havia uma igreja oficial,
fosse ela luterana, reformada ou anglicana, e os adeptos de outros grupos eram
submetidos a diversas restrições. A única exceção eram os anabatistas, que rejeitavam
qualquer associação entre a igreja e o estado. Esse sistema se transferiu para
as colônias inglesas da América do Norte, onde cada colônia tinha a sua própria
igreja oficial e os dissidentes sofriam sérias limitações e até mesmo rigorosas
punições, como foi o caso dos quacres em Massachusetts. Finalmente, com a
independência americana e a consagração da norma constitucional de separação
entre igreja e estado, surgiu o fenômeno conhecido como denominacionalismo, ou
seja, uma situação em que as mais diversas confissões religiosas têm exatamente
o mesmo status e plena igualdade diante da lei, ninguém podendo ser punido por
pertencer a este ou aquele grupo confessional, ou a nenhum deles.3
Evidentemente essa situação
estimulou ainda mais a “infidelidade eclesiástica”. Como as pessoas tinham
muitas opções religiosas, e não sofriam nenhuma sanção se transitassem de uma
para outra, esse fato passou a ocorrer com frequência. Outras pessoas, por
diferentes razões, simplesmente deixavam suas comunidades de origem e não se
filiavam a nenhuma outra, optando por uma vida irreligiosa.
2. No brasil
Como é sobejamente conhecido,
dois tipos de igrejas protestantes foram implantadas no Brasil no século 19:
aquelas constituídas de imigrantes europeus, como a anglicana e a luterana, e aquelas
surgidas como resultado da atividade missionária europeia e norte-americana (congregacionais,
presbiterianos, metodistas, batistas, episcopais e outros). Embora imperasse no
país a união entre igreja e estado, sendo a Igreja Romana a religião oficial do
império, entre as igrejas protestantes, principalmente as de origem
missionária, ocorria na prática o fenômeno do denominacionalismo, que se
consagrou definitivamente com o advento da República.
Por muito tempo houve
considerável trânsito de membros entre as denominações tradicionais, o que era
visto com certa naturalidade. Ninguém se espantava ou se afligia se um presbiteriano
passava a frequentar uma igreja batista, ou um congregacional se tornava metodista.
Por causas das afinidades entre essas igrejas, tais transferências não chegavam
a chocar. Isso ocorria inclusiva com pastores: no início do século 20, dois ministros
metodistas de igual sobrenome, Manoel de Arruda Camargo e Jovelino Moraes de
Camargo, serviram a igreja presbiteriana por alguns anos, sem que isso causasse
qualquer estremecimento entre as duas denominações.4 Muito diferente
era a situação em que o afastamento de membros ocorria num contexto conflitivo,
quer como resultado de cismas, adesão a grupos considerados heterodoxos ou
quebra de padrões doutrinários e éticos. A seguir, são examinados alguns desses
casos em conexão com a igreja presbiteriana brasileira.
2.1 Cisões ou Cismas
Historicamente, a ocorrência
de divisões nas igrejas tem sido uma causa importante para o afastamento de
membros. O primeiro cisma ocorrido no incipiente presbiterianismo nacional foi
aquele associado ao Dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1885), engenheiro
pertencente a uma família aristocrática do Maranhão. Em abril de 1874, ele foi
recebido por profissão de fé e batismo pelo Rev. Alexander Blackford, na Igreja
Presbiteriana do Rio de Janeiro. Poucos meses depois foi eleito presbítero e
acompanhou o missionário em algumas viagens evangelísticas. O pastor seguinte daquela
igreja, Rev. Dillwin M. Hazlett, estando envolvido com outras atividades,
entregou-lhe o púlpito com frequência. Dotado de um temperamento místico, que
anteriormente o havia levado a envolver-se com o espiritismo, o Dr. Miguel
começou a fundamentar seu ensino em sonhos e visões, pretendendo ter revelações
diretas de Deus. Em fevereiro de 1879, ele foi suspenso do presbiterato. Em
setembro daquele ano retirou-se da igreja com 27 pessoas, muitas delas de sua
família, criando a Igreja Evangélica Brasileira, uma pequena denominação que
existe até os dias de hoje.5 Esse episódio foi objeto de várias
análises do professor Émile Léonard, que o considerou um caso de “iluminismo”
protestante.6 Do ponto de vista pastoral, vale destacar a temeridade
dos missionários em ordenar ao presbiterato esse indivíduo recém-convertido e
posteriormente confiar-lhe o púlpito.
Posteriormente, com o cisma de
1903, que resultou no surgimento da Igreja Presbiteriana Independente, um
número muito maior de membros deixou a igreja presbiteriana “sinodal”, gerando
incontáveis amarguras por anos a fio. A partir da década de 1960, o movimento
de renovação espiritual e posteriormente as influências neopentecostais continuaram
a produzir divisões e afastamento de membros. Por sua natureza e por seu
caráter coletivo, esse tipo de evasão dificilmente pode ser sanado, embora
ocorram casos em que as pessoas acabam se decepcionando com o grupo separatista
e fazem o caminho de volta.
2.2 Adesão
a outros grupos religiosos
Outro motivo para a evasão de
membros tem sido o retorno à confissão religiosa original ou a filiação a
outros grupos, evangélicos ou não. São um tanto comuns nos anais da história
presbiteriana os casos em que membros vindos do catolicismo retornavam à velha
igreja ou ingressavam nas fileiras espíritas. Porém, com mais frequência os líderes
lamentam a adesão de fiéis a “seitas” protestantes, como sabatistas,
pentecostais e outros movimentos.7
Um exemplo interessante pode
ser visto no primeiro livro de atas do conselho da Igreja Presbiteriana de
Guarapuava, no interior do Paraná, organizada em 1889. Em maio de 1921, o
conselho dessa igreja excluiu do seu rol 12 pessoas por terem se filiado à
Igreja Presbiteriana Independente, 14 à Igreja Luterana, 23 aos sabatistas e
duas aos espíritas.8 É importante lembrar que muitos desses indivíduos
residiam fora da sede e recebiam escassa assistência pastoral, um problema
comum na época. Além disso, tais deserções provavelmente ocorreram ao longo de
vários anos. No caso das adesões à Igreja Luterana, todos os envolvidos eram de
origem alemã.
Em sua história do
presbiterianismo brasileiro, Júlio Andrade Ferreira se refere ao “duro golpe”
sofrido pela Igreja Presbiteriana do Brás, em São Paulo, quando foi implantada
no mesmo bairro a Congregação Cristã no Brasil.9 Em outro lugar ele
fala das visitas do Rev. Roberto Frederico Lenington a Ponta Grossa, no Paraná,
“onde os adventistas andavam dizimando o rebanho”.10 Obviamente,
essas incursões proselitistas acabavam por afastar membros individuais e
famílias inteiras de muitas igrejas presbiterianas.
NOTAS:
1. Ver: WALKER, Williston. História da igreja cristã. 2 vols. São
Paulo: Aste, 1967, vol. 1, p. 136-39; KELLY, J. N. D. Doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 149-51, 163-66.
2. DOUGLAS, J. D. (ed. geral). The New International Dictionary of the Christian Church. 2ª ed. Grand
Rapids: Zondervan, 1978, p. 804.
3. Ver: ELWELL, Walter A. (ed.). Enciclopédia histórico-teológica da Igreja
cristã. Em 1
volume. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 409-412.
4. LESSA, Vicente Themudo. Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São
Paulo (1863-1903). 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 224, 322s,
559; FERREIRA, História da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2 vols. 2ª ed. São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 76.
5. Ver: LESSA, 2010, p.
144-47; MATOS, Alderi S. Os pioneiros
presbiterianos do Brasil (1859-1900): missionários, pastores e leigos do
século 19. São Paulo: Cultura Cristã, p. 461-63.
6. Ver: LÉONARD, Émile-G. O protestantismo brasileiro. 3ª ed. São
Paulo: Aste, 2002, p. 76-79; idem, O iluminismo num protestantismo de
constituição recente. São Paulo: Ciências da Religião, 1988. Iluminismo aqui significa o apelo a
revelações diretas de Deus.
7. Diversos pastores
escreveram livros ou opúsculos combatendo esses grupos. Por exemplo, Jerônimo
Gueiros, A heresia pentecostal;
Alcides Nogueira, Heresias sabatistas.
8. Atas da Sessão da Igreja
Presbiteriana de Guarapuava (1889-1927), 07.05.1921, fl. 168s.
9. FERREIRA, Júlio A. História da Igreja Presbiteriana do Brasil.
2 vols. 2ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, vol. 2, p. 202.
10. FERREIRA, 1992, vol. 2, p.
130. Na mesma página, ele afirma que o Rev. George Landes visitava todo o
litoral de Santa Catarina, “já atacado por adventistas”.
Autor:
Alderi de Souza Matos
Fonte: Fides Reformata