6 de maio de 2016

Um Futuro para o Israel Judaico? (2/2)


Salvação pela fé, não pelas obras

Por que a salvação pelas obras exigidas pela lei não é possível? Certamente o Judaísmo também confessa a graça de Deus em dar a Israel a lei, mas seu entendimento dessa graça coloca Israel na posição de alcançar a justiça e a salvação pela prática do que a lei requer. Tudo o que é requerido para atingir a salvação futura é, ao menos, uma observância mínima da lei, se não uma prática do bem que suplante o mal. O apóstolo Paulo discorda desse entendi­mento da relação entre a lei e a salvação. Do seu encontro com o Jesus crucificado e exaltado, Paulo recebeu uma consciência da pecaminosidade humana que tomou impossível a crença em que a salvação poderia ser realizada pelas obras da lei. 


Apesar de Paulo nunca ter criticado a lei como tal por ser ela uma santa, correta e boa expressão da justiça que Deus requer, não obstante, em Cristo, Paulo sabe, pessoal e teologicamente, que a lei não pode produzir na conduta humana a justiça que ela requer (Rm 7; 8.1). O defeito está não na lei, mas nos seres humanos pecadores, e o remédio de Deus para esse defeito humanamente intransponível é Jesus Cristo. Esse aprofundado entendimento do pecado humano só admite uma salvação que seja dom de Deus, uma justiça não baseada nas obras, mas recebida pela fé em Cristo (5.17). Conquanto o entendimento pessoal que o apóstolo tinha da justiça tenha sido alterado primeiramente pelo encontro que teve com Jesus Cristo em sua visão, ele descobriu esse mesmo ensino de uma justiça baseada na fé nos escritos de Moisés e dos profetas (10.5-20). Deus sempre esteve demandando de Israel fé, fé no evangelho (Rm 10.15-17).

O provocante sumário que Paulo faz desse  ensino  consta  em Romanos l 0.4: Cristo é o fim da lei, para que todo aquele que tem fé seja justificado (RSV). Que quer dizer o apóstolo ao descrever Cristo como o fim (te/os) da lei? Basicamente, há duas possibilidades: Cristo é "o fim da lei" ou por ser a terminação ou  a cessação da lei ou de alguma parte dela ou por ser seu alvo, sua culminação ou o seu cumprimento. Na Igreja antiga e ainda na Reforma, os intérpretes favoreciam o alvo/cumprimento, mas hoje o pêndulo interpretativo pende em favor da terminação/cessação. Essa questão é muito complexa. Fim é, obviamente, uma metáfora que descreve a relação de Cristo com a lei, mas o termo propriamente dito não dá toda a informação necessária para de­terminar com precisão como Paulo entendia essa  relação. Essa informação tem que ser colhida de um exame de todo o ensino de Paulo sobre a lei. Mas como uma exposição completa do conceito de Paulo exigiria considerável es­paço, e como nesse capítulo só estamos interessados no impacto que esse ensino tem sobre o conceito paulino do Israel judaico, vamos apenas mencionar as nossas conclusões concernentes ao conceito de Paulo sobre a lei.

Paulo revela duas atitudes básicas para com a lei. Primeiro, quando está em foco a pecaminosidade da humanidade, Paulo vê a lei como um juiz pronunciando a sentença de morte. A lei não pode libertar do pecado, ela só pode aumentar o pecado e permanecer em juízo sobre o pecador (Rm 5.20). O crente, tendo-se unido a Cristo em sua morte e ressurreição, morreu para o pecado e, portanto, não está mais sob a lei como juiz, não está mais sob o poder da lei de aumentar o pecado e de pronunciar sobre o pecador o juízo de morte. Estar livre do pecado em Cristo significa estar livre da lei em sua relação com o pecado e com o pecador (Rm 6). Se essa fosse a exclusiva perspectiva de Paulo sobre a lei, o sentido de fim seria terminação/cessação. Nesse aspec­to, a lei chegou ao fim em Cristo para o crente.

Há, porém, no ensino paulino, uma segunda perspectiva sobre a lei. Em Romanos 8, depois de focalizar mais uma vez o que a lei não podia realizar por causa do pecado, o apóstolo ensina que a obra de Cristo e a vida no Espírito têm como sua meta o cumprimento das justas exigências da lei (Rm 8.2-4). Para o apóstolo Paulo, há um real sentido em que a justiça exigida pela lei não foi terminada pela morte e ressurreição de Cristo. Ao contrário, essa justiça articulada e requerida pela lei realizou cumprimento em Cristo, e, agora, em Cristo e por meio do Espírito, essa justiça descreve e modela a vida cristã.

Se ambas essas perspectivas formam o substrato de Romanos 10.4, então a interpretação de fim como alvo ou cumprimento faz a maior justiça a todo o ensino de Paulo. Alvo nos habilita a falar tanto do que cessa, porque o alvo foi atingido, como daquilo que continua, porque há uma harmonia essencial entre o que leva ao alvo ou prepara para ele, e o alvo propriamente dito. Paulo sabe quais funções da lei e quais formas de justiça cessaram, como também a justiça essencial da lei que continua porque a lei foi cumprida em Cristo. É esse cumprimento em Cristo que provê unidade ao entendi­mento paulino da lei.

Como esse entendimento da lei afeta a atitude de Paulo para com o Judaísmo e para com aqueles que não aceitam Cristo como o fim da lei? É óbvio que ele não pode mais aceitar o ensino tradicional do Judaísmo, segundo o qual o arrependimento e a prática das obras da Torá (lei) são suficientes para se alcançar a salvação final. Embora permita que os cristãos judeus observem partes da Torá que não admite que sejam impostas aos gentios, e embora continue a aplicar a categoria de eleição mesmo ao Israel judaico descrente, ele não pode admitir um conceito da observância da Torá que não dê nenhum lugar ao Cristo crucificado e ressurreto, nem veja nenhuma necessidade dele. Embora tendo recebido essa visão da lei e da justiça por revelação no caminho de Damasco, ele descobriu que essa justiça sempre foi recebida pela fé, uma vez que esse era o ensino do Antigo Testamento (Rm 4.13; 10.6). Tanto para o judeu como para o gentio, o caminho da salvação é o mesmo, pois ambos têm que invocar o nome do Senhor Jesus para serem salvos (Rm 10.9-13). Consequentemente, Paulo culpa o Israel judaico por sua falta de fé. Essa é a sua desobediência primária (10.14-21).

Agora dá para começar a avaliar a grande tristeza e incessante dor no coração de Paulo pela situação e pelo destino da maior parte do Israel judaico (Rm 9.2), pois, mesmo Deus sendo fiel, que opções Deus tem, se Israel não responde com fé? Se o poder do pecado é tão universalmente presente que ninguém é justo e ninguém pode ser justificado pelas obras da lei (Rm 3.9, 10), qual é a presente situação do Israel judaico, que continua a buscar a justiça de Deus tentando fazer o que a lei exige, e não pela fé? Se ele persiste em seguir esse caminho, pode Deus fazer alguma coisa, senão rejeitar um povo tão desobediente (Rm  10.21, NIV)?

Entendendo a resposta de Paulo: Romanos 11

O remanescente e o resto: eleição e desobediência

A notável resposta de Paulo não é nem simples nem esperada, porque em cada estágio da sua resposta ele rejeita enfaticamente a possibilidade de que nem mesmo esse povo desobediente Deus tenha rejeitado. O argumento é assombroso, mas esse assombro é produzido pela consciência da irresistível graça de um Deus fiel.

O primeiro estágio do argumento é o mais fácil de entender. Em Romanos 11.1-6, Paulo introduz a ideia de um remanescente de Israel crente como prova de que Deus não rejeitou seu povo. O próprio Paulo e todos os outros cristãos judeus constituem esse remanescente de Israel. Precisamente como tinha acontecido nos dias de Elias, assim agora, no tempo do apóstolo, somente um remanescente de Israel respondeu com fé e fidelidade a Deus. Não devemos entender mal a força maior desse argumento. Erraremos se supusermos que a significação do remanescente pertence unicamente aos eleitos individuais que constituem o remanescente. O que Paulo diz não implica que só o remanescente é Israel, e ninguém mais. Se presumirmos que em Romanos 11.1 o povo de Deus se restringe ao remanescente eleito, anularemos o resto do argumento de Paulo. Em parte alguma de Romanos 11 o apóstolo priva o Israel judaico descrente da realidade de ser o povo de Deus ou do fato da eleição. Em vez disso, Paulo aponta para si mesmo e para outros cristãos judeus como constituindo prova de que Deus não retirou sua graça do Israel judaico. Esse remanescente é um sinal de que Deus continua sendo fiel à sua eleição do Israel judaico. O remanescente significa para todo o Israel a natureza essencial do verdadeiro Israel e o que Israel sempre é chamado a ser, porque o remanescente cristão judaico existe como o Israel de Deus, cuja posição se baseia não nas obras, mas na graça. Por essa razão o apóstolo salienta a sua solidariedade pessoal com o Israel judaico (Rm 11.1). O próprio Paulo é o esperançoso sinal de que Deus não rejeitou seu desobediente povo, porque Paulo também estava num ativo estado de desobediência quando a graça de Deus lhe foi dada.

Mas mesmo que o remanescente crente seja um esperançoso sinal concernente à fidelidade de Deus para com Israel, qual será a situação daqueles que não manifestam os sinais da eleição? Paulo responde: os mais foram endurecidos (11.7). Devemos resistir à tentação de apressar-nos a traçar inferências dessa declaração, porque o que Paulo declara não é um novo ensino. Por mais difícil que a linguagem seja para entendermos, o endurecimento imposto por Deus ao seu povo por causa da desobediência do próprio povo já era anunciado pelos profetas do Antigo Testamento. De Moisés a Davi e a Isaías, Israel vê-se às vezes sob uma ação julgadora de Deus que o mantém incapaz de responder à graça de Deus. A linguagem profética de juízo emprega figuras de um sono profundo, uma cegueira incapaz de ver o que Deus está fazendo, uma chocante surdez. Consequentemente, Israel esqueceu os grandes eventos redentores do êxodo (Dt 29.4), perseguiu o servo de Deus ungido (Sl 69) e recusou-se a servir a Deus (Is 29). Contudo, no próprio contexto desses juízos proféticos podem-se encontrar palavras de esperança para Israel: o surdo ouvirá, o cego verá, e os que erram em espírito virão a entender (Is 29.18,24). O rigor do juízo profético visa claramente evocar arrependimento e fé, e, por conseguinte, não podemos inferir que tais juízos são absolutos e finais, além dos quais não haveria nenhuma esperança. Assim, a resposta que o apóstolo dá à questão sobre a situação do Israel descrente é precisamente a mesma que é dada pelos profetas do Antigo Testamento durante outros períodos de desobediência de Israel.

Essa perspectiva veterotestamentária continua no próximo estágio do argumento de Paulo (Rm 11). Aqui o apóstolo descreve o Israel endurecido como tendo tropeçado, mas não tendo caído. Claramente, a distinção de Paulo entre tropeçar e cair visa descrever um juízo que é menos que final. Sua descrição é tomada por empréstimo dos juízos proféticos que falam de um laço, uma armadilha, uma cova aberta ou de obstáculos que fazem tropeçar, como também da profecia concernente à pedra que, em Sião, faz Israel tropeçar. Tropeço não é uma condição irrevogável. Os profetas falam de juízos históricos de Deus sobre Israel que, por serem históricos em sua natureza, sempre estão abertos para possível mudança. Em acréscimo, esses juízos históricos não estão desligados do plano divino de salvação, mas, ao contrário, promovem os seus propósitos. Assim como o endurecimento de faraó serviu ao propósito da graça de Deus (Rm 9.17), assim também o endurecimento de Israel serve à salvação dos gentios. Não somente a incredulidade de Israel tomou-se a ocasião histórica para o ministério de Paulo entre os gentios (At 13.46; 28.28), mas também para que, em face dessa incredulidade, Deus se voltasse para aqueles que não eram seu povo precisamente para manter o caráter gracioso da salvação.

Contudo, esse voltar-se para os gentios não é um fim em si mesmo. Ele contribui, antes, para a intenção última de Deus de salvar Israel despertando ciúme em Israel. O fato de se agregarem os gentios não destitui definitivamente o Israel judaico. Em vez disso, serve ao propósito de Deus de realizar a plena inclusão de Israel. Empolgado pelas promessas do Antigo Testamento, o após­tolo não pode imaginar que a completitude escatológica do plano divino de salvação não inclua a plenitude escatológica de Israel, e, assim, o apóstolo ensina que Deus ainda não fechou o livro para o Israel judaico descrente, porque ele ainda antecipa a sua plena inclusão, um evento análogo ao da ressurreição dos mortos (Rm 11.12, 14). A porta ainda está aberta para a futura salvação do Israel judaico, a despeito do presente juízo de endurecimento por causa da incredulidade. Coisa estupenda, o endurecimento que Deus opera em seu desobediente povo não é sua negação da sua eleição desse povo.

Como pode o apóstolo manter em tensão duas realidades que na superfície parecem contraditórias, a saber, endurecimento e eleição? Parte da nossa dificuldade em captar o que o apóstolo está dizendo nasce dos nossos modos de pensamento predominantemente individualistas. Temos a tendência de presumir que benefícios e bênçãos são recebidos unicamente com base na dignidade, ação ou mérito individual. Talvez estejamos começando a entender hoje que os indivíduos não se sustêm sozinhos, mas são modelados, abençoados e até julgados com base numa rede completa de relações essenciais com os outros, quer família quer nação. A força e a realidade das relações corporativas que definem quem somos como indivíduos estão começando a modificar o nosso individualismo tradicional. Tais relações corporativas são a base da esperança de Paulo quanto a Israel. Ele vê uma relação entre a presente colheita de crentes entre o Israel judaico e a sua esperança escatológica quanto ao futuro do Israel judaico. O remanescente crente constitui os primeiros frutos dedica­dos ao Senhor e representa um "bolo inteiro de farinha" ou a colheita inteira (cf Nm 15.17-21). Exatamente como Jesus Cristo, como as primícias dos que dormem, representa e garante a ressurreição daqueles que lhe pertencem (lCo 15.23), assim também o remanescente eleito do Israel judaico representa e assegura a salvação escatológica do Israel judaico. Em acréscimo, a esperança escatológica de Paulo tem suas raízes em Abraão e nos patriarcas de Israel. Graças à eleição de Deus, eles formam a raiz da oliveira de Israel, e sua consagração a Deus – sua santidade – significa que os ramos têm o mesmo caráter de santidade, sendo consagrados a Deus (Rm 11.16). Assim, para o apóstolo Paulo, as bênçãos continuam sendo uma possibilidade futura para o Israel endurecido, por causa da relação corporativa com aqueles que receberam a graça de Deus. A desobediência não tem necessidade de cancelar a esperança futura arraigada na graça eletiva de Deus.

A metáfora da oliveira torna-se uma declaração sumária de tudo o que Paulo vem dizendo. A oliveira existe unicamente porque Deus escolheu plantar Israel no meio das nações. Devido à incredulidade daqueles que são o Israel judaico, os gentios são enxertados na oliveira para compartir dos privilégios dados por Deus a Israel. Os cristãos gentios se tornam parte da oliveira, uma parte do Israel que Deus elegeu. Visto que a sua posição foi criada pela graça, e não por sua própria natureza, qualquer pensamento ou atitude da parte deles que diminua a graça pela presunção de outra base para a sua condição de membros de Israel redundará em juízo. Especificamente, os crentes gentios não devem presumir nenhum tipo de superioridade sobre o Israel judaico descrente, sobre os ramos que foram cortados, porque todos os crentes vivem exclusivamente da graça de Deus concedida soberanamente. Como Israel existe somente com base na graça de Deus e como a graça promete até curar a infidelidade de Israel (Os 14.4), o apóstolo tem motivo para alimentar esperança até quanto aos ramos que foram cortados. Deus, que é soberano e gracioso, certamente pode, e talvez até mais facilmente do que com os ramos gentílicos, enxertá-los novamente. Naturalmente, para que essa esperança seja concretizada, aqueles que estão sob juízo e presentemente cortados terão que vir com fé, pois o único modo de ser Israel é esse (Rm 11.23).

O mistério de uma plenitude final

O clímax da apresentação de Paulo é a revelação de um mistério concernente à salvação do número completo de gentios e de todo o Israel. Esse mistério tem­ se provado de fato muito misterioso para os intérpretes, como a nossa discussão indicará. Todavia, mistério nada tem a ver com ser misterioso. O uso bíblico de mistério refere-se ao conselho de Deus concernente ao seu plano de salvação, que estava oculto porque ainda não tinha sido revelado ou porque uma revelação parcial não tinha sido entendida plenamente. Embora seja possível que o após­tolo tenha recebido esse mistério por revelação direta, é mais provável que ele o tenha recebido por discernimento profético do plano de salvação desdobrado diante dos seus olhos e iluminado pelo Antigo Testamento. Paulo descobriu que o plano de Deus continha inesperadas avenidas e surpreendentes complexidades, mas a clareza do seu discernimento do mistério essencial dos movimentos da graça de Deus permanece enevoada pelas complexidades que são verdadeiros enigmas para os intérpretes. Afinal de contas, os caminhos de Deus estão além da nossa capacidade de rastreá-los (Rm 11.33).  

Uma das complexidades é o sentido de todo o Israel (Rm 11.26). Quem é esse Israel que será salvo? Embora alguns afirmem que se refere simplesmente a todos os eleitos, tanto judeus como gentios, nem o contexto prévio nem o subsequente dão suporte a essa ideia. Apesar de se poder apontar para a metáfora da oliveira como um símbolo de Israel que abrange os crentes judeus e gentios e para o fato de que em Gálatas 6.16 Paulo se refere à Igreja cristã como o Israel de Deus, o fardo da preocupação de Paulo em todo o capítulo 11 de Romanos é o Israel que foi endurecido e cortado. Sua preocupação não é simplesmente com a salvação dos eleitos, pois esse é um nível que não levanta nenhuma preocupação (cf Rm 11.7). Antes, a sua preocupação está centrada em se a eleição de Israel por Deus não está mais em vigor por causa da incredulidade. Paulo sente verdadeira agonia por seus compatriotas judeus que não creem, e sua esperança quanto à salvação de todo o Israel inclui precisamente aqueles que presentemente são classificados como inimigos de Deus quanto ao evangelho (11.28). Portanto, é improvável que todo o Israel se refira simplesmente a todos os judeus e gentios eleitos.

Uma interpretação mais satisfatória relaciona todo o Israel com a esperança mais próxima quanto à "plenitude" de Israel (Rm 11.12, "plena inclusão" na RSV e na NRSV). Plenitude não significa necessariamente a salvação de todos os indivíduos que alguma vez pertenceram ou pertençam ao Israel judaico. As Escrituras dão adequada razão para acreditarmos que os membros individuais podem ser excluídos. Paulo contrasta plenitude com remanescente, e no futuro escatológico ele não vê mais um remanescente parcial, mas uma plenitude de Israel. Mas uma vez que o presente remanescente também é contrastado com o resto de Israel, que é endurecido, parece que a concretização da plenitude requer uma remoção do juízo de endurecimento. Se o endureci­mento que agora cega os incrédulos para a graça de Deus em Cristo não for removido, não haverá possibilidade de suplantar a disparidade entre a presente salvação de um remanescente do Israel judaico e a antecipada salvação futura da plenitude do Israel judaico. Todo o Israel refere-se, então, ao Israel judaico em sua plenitude escatológica.

Uma segunda perplexidade refere-se a quando e como essa salvação da plenitude de Israel vai acontecer. A descrição que Paulo faz do mistério continua sendo o tema do seu prévio argumento, segundo o qual o endurecimento do Israel judaico tem como seu efeito a salvação dos gentios. Ele agora acrescenta que esse endurecimento estará em efeito até que haja entrado a plenitude dos gentios, isto é, até que haja entrado na salvação (Rm 11.25). Devemos salientar que Paulo não está focalizando estreitamente a salvação de indivíduos separados e sugerindo que todos os indivíduos gentios serão salvos. O apóstolo está descrevendo a história divina de salvação, que abrange a humanidade inteira, isto é, o Israel judaico e o mundo gentílico. Em ambos os casos, indivíduos podem ser excluídos da participação na salvação prometida sem que isso destrua a validade do argumento de Paulo. A rejeição do Israel judaico descrente tem em vista a reconciliação do mundo (gentílico 11.15). Dessa maneira, haverá um endureci­mento dessa parte do Israel judaico até que o mundo seja reconciliado com Deus e a plenitude escatológica dos gentios tenha adentrado o reino de Deus e recebi­do a salvação. A plenitude dos gentios constitui, então, o limite escatológico imposto ao endurecimento do Israel judaico, porquanto nesse momento a intenção salvífica do endurecimento terá atingido o seu alvo.

Todavia, se isso é tudo que o mistério revela, a salvação do Israel judaico estará limitada para sempre a um remanescente, e a plenitude escatológica de Israel pode ser apenas a soma de todos os judeus cristãos através de todos os séculos. Embora alguns intérpretes sustentem essa ideia, essa abordagem simplesmente aritmética da plenitude, somando o remanescente de todas as eras, destrói a dinâmica do argumento de Paulo. Paulo descreve uma relação recíproca do endurecimento de Israel produzindo a plenitude dos gentios, o que, por sua vez, produz ciúme e a plenitude de Israel. Assim, mesmo que Paulo não fale, em Romanos 11.25 diretamente de uma remoção do endurecimento de Israel, a força impulsora de todo o seu argumento implica que vai acontecer isso. Só pela remoção dessa cegueira poderá uma entidade ser descrita como a plenitude de Israel, e não apenas um remanescente. Paulo promete mais do que a existência continuada de um remanescente. Assim como o endurecimento de Israel serve à salvação do mundo, assim também a salvação do mundo tem o propósito de evocar ciúme e daí a salvação do Israel endurecido.

A esperança do apóstolo quanto ao futuro de Israel tem suas raízes na profecia do Antigo Testamento (Rm 1l.26):

Virá de Sião o Libertador e ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados.

Essa profecia combina Isaías 59.20 e 27.9 com possíveis ressonâncias do Salmo 14.7 e de Jeremias 31.33, e sua forma também é muito significativa. A citação segue a tradução grega (Septuaginta), que difere consideravelmente da versão hebraica desses versículos. O texto hebraico diz: e virá a Sião como Redentor, aos de Jacó que se converterem da sua transgressão. Embora a existência da diferente redação da Septuaginta possa indicar uma controvérsia pré-cristã concernente ao sentido dessa profecia, o texto hebraico admite a possibilidade de que a prometida salvação dependa do prévio arrependimento de Israel. De fato, essa é a posição do Judaísmo normativo: A salvação messiânica é condicional, requerendo o arrependimento de Israel, o estudo da Torá e as boas obras. Enquanto tal arrependimento não ocorrer, a salvação messiânica não poderá chegar. E. E. Urbach expõe sucintamente as consequências dessa posição rabínica: 

Se o arrependimento, tão-somente, torna possível a redenção e a aproxima, não há necessidade alguma dos sofrimentos messiânicos. 

Por conseguinte, a interpretação da profecia de Isaías tem consequências críticas. No texto da Septuaginta, citado por Paulo, a ênfase recai completa­mente na ação de Deus ou do Messias. O Libertador removerá pessoalmente de Jacó a impiedade. Essa ênfase não somente coincide com a experiência pessoal de Paulo, mas também  se harmoniza  com o ensino do apóstolo concernente ao endurecimento de Israel, endurecimento que terá que ser removido pelo próprio Deus, se a plenitude de Israel deve ser salva. A salvação não está dentro das possibilidades ou realizações próprias do Israel judaico. Só pode ser fruto da iniciativa divina por amor de Israel. O Senhor mesmo renovará a sua aliança com Israel quando tirar de Israel o seu pecado.

O referido texto diz-nos também quando e como ocorrerá essa salvação? Primeiro é preciso responder duas outras perguntas. O tempo futuro de virá refere-se a um evento que ainda é futuro, tal como o retorno de Cristo? Ou, desde que o tempo futuro já está contido na profecia original de Isaías, refere-se ele à primeira vinda de Cristo? A segunda pergunta, co-relacionada a essa, é: Sião é a Jerusalém celeste, da qual Cristo vai voltar, ou é a Jerusalém terrestre, da qual o evangelho saiu para o mundo todo?

É difícil decidir qual dessas possibilidades é a correta. Bom número de intérpretes atuais favorece a ideia de que Paulo visualiza uma futura conversão de Israel associada ao retorno de Cristo. Como o evangelho terá que ser pregado a todas as nações antes do fim, como o endurecimento de Israel vai durar até que a plenitude de Israel haja entrado, como a aceitação do Israel judaico pode estar associada à ressurreição final dos mortos (Rm 11.15), e como, em geral, a salvação da plenitude do Israel judaico é claramente futura, não será provável que Paulo tenha entendido Isaías 59.20 como ainda não se tendo cumprido na primeira vinda de Cristo? Se esse evento salvífico é mais bem entendido como completamente futuro, também faz sentido interpretar de Sião como uma referência à volta de Cristo à terra, descendo da Jerusalém celeste (cf Gl 4.26). Mas, se essa opinião estiver certa, então a salvação da plenitude de Israel, diferentemente da salvação da plenitude dos gentios, não resulta diretamente, ou ao menos não primariamente, do evangelho e da missão de pregação confiada à Igreja no mundo. Ao contrário, a salvação da plenitude de Israel, em distinção do remanescente, será realizada só quando reaparecer aquele que, ele próprio, é o conteúdo do evangelho.

Por mais convincente que essa primeira possibilidade possa parecer, outros estão convencidos de que tal conceito destrói a dinâmica da visão profética de Paulo. Anteriormente o apóstolo tinha descrito um processo inter-relacionado que é posto em movimento pela incredulidade do Israel judaico, a aceitação do evangelho pelo mundo gentílico e um consequente ciúme por parte do Israel judaico descrente que levará à sua inclusão. Esse modo de ver entende a proclamação do evangelho (Rm 10) como de importância central para a salvação tanto do mundo gentílico como do Israel judaico. Embora seja verdade que o Libertador removerá pessoalmente a cegueira de Israel, Paulo não parece ensinar que a remoção da dureza do Israel judaico estará associada ao poder ativo do evangelho. Falando do Israel endurecido, o apóstolo escreve que, quando uma pessoa se converte ao Senhor em resposta ao evangelho, é por meio de Cristo que a dureza é removida (2 Co 3.14-16). Não é necessário supor que Cristo remove a cegueira ou a dureza só por sua vinda em pessoa.

É, pois, possível que Paulo entenda o tempo futuro da profecia de Isaías como tendo se cumprido na primeira vinda de Cristo, que pôs em movimento a missão apostólica da Igreja. Esse conceito de um processo único e inter-relacionado que leva à salvação do Israel judaico encontra apoio adicional no paralelo traçado em Romanos 11.30-32. A salvação é sempre dada aos que estão na desobediência. Os gentios, em sua desobediência, receberam a misericórdia de Deus por causa da desobediência do Israel judaico descrente. Agora o Israel judaico desobediente pode receber misericórdia pela misericórdia mostrada para com os gentios. Esse processo recíproco e inter-relacionado parece claramente estabelecer a ideia de que a salvação é recebida da mesma maneira pelos judeus e pelos gentios, igual­mente pela eficácia da palavra operando na história. Portanto, a fé vem do que se ouve, e o que se ouve vem por meio da palavra de Cristo, isto é, pela pregação do evangelho (Rm 10.17).

Se nos convence esse conceito que vê a conversão do Israel judaico como relacionada com a primeira vinda de Cristo e com a subsequente proclamação de Cristo no evangelho, quando vai ocorrer essa conversão? O apóstolo não elabora um calendário preciso dos eventos, porque ele mesmo não possui tal coisa. Em vez disso, foi concedido a ele um discernimento profético do resulta­do de um processo que o Senhor já tinha posto em andamento. Esse processo já iniciado reverteu completamente as suas expectativas originais. Em lugar de uma conversão do Israel judaico seguida pela conversão dos gentios, Paulo viu um Israel judaico que foi endurecido enquanto os gentios estavam sendo admitidos à fé. Todavia, esse processo, que agora (Rm 11.30) trouxe a misericórdia de Deus ao mundo gentílico, teria como seu efeito que o Israel judaico descrente receberia essa mesma misericórdia. Se o agora encontrado em alguns manuscritos de Romanos 11.31 estiver incluído, significa que Paulo está relacionando a conversão de Israel ao processo inaugurado pela primeira vinda de Cristo e a subsequente pregação do evangelho.

Precisamente quando esse processo redundará na salvação da plenitude de Israel, o apóstolo não diz. Obviamente, a salvação da plenitude de Israel inclui também aqueles cristãos judeus que agora creem juntamente com os gentios. Nesse sentido a salvação de todo o Israel já está a caminho. Contudo, como dissemos, a dinâmica do argumento de Paulo aponta para a plenitude de Israel como uma realidade escatológica que não mais terá a marca do endurecimento que agora caracteriza a existência de Israel e divide o Israel judaico em remanescente e o resto. O discernimento profético de Paulo estende-se desde o tempo da sua missão como pregador até a culminação do plano divino de salvação. Conquanto o agora aponte para um processo de redenção já em andamento, ele não pode ser usado para restringir a visão de Paulo ao presente momento. Há uma plenitude escatológica, tanto do mundo gentílico como do Israel judaico, que aguarda consumação. Esse momento descreve o fim da história divina da salvação, visto que nesse tempo o seu propósito terá sido plenamente realizado, mas o tempo da chegada desse momento não pode ser determinado antecipadamente. Esse momento continua sendo, no sentido próprio da expressão, uma realidade escatológica que o Pai guarda em suas próprias mãos.



Autor: David E. Howerda
Trecho extraído do livro Jesus e Israel, pág 122-133. Editora: Cultura Cristã