Salvação pela fé, não pelas obras
Por
que a salvação pelas obras exigidas pela lei não é possível? Certamente o
Judaísmo também confessa a graça de Deus em dar a Israel a lei, mas seu
entendimento dessa graça coloca Israel na posição de alcançar a justiça e a
salvação pela prática do que a lei requer. Tudo o que é requerido para atingir
a salvação futura é, ao menos, uma observância mínima da lei, se não uma
prática do bem que suplante o mal. O apóstolo Paulo discorda desse entendimento da relação entre a lei e a salvação. Do seu encontro com o Jesus
crucificado e exaltado, Paulo recebeu uma consciência da pecaminosidade humana
que tomou impossível a crença em que a salvação poderia ser realizada pelas
obras da lei.
Apesar de Paulo nunca ter criticado a lei como tal por ser ela uma santa, correta e boa expressão da justiça que Deus requer, não obstante, em Cristo, Paulo sabe, pessoal e teologicamente, que a lei não pode produzir na conduta humana a justiça que ela requer (Rm 7; 8.1). O defeito está não na lei, mas nos seres humanos pecadores, e o remédio de Deus para esse defeito humanamente intransponível é Jesus Cristo. Esse aprofundado entendimento do pecado humano só admite uma salvação que seja dom de Deus, uma justiça não baseada nas obras, mas recebida pela fé em Cristo (5.17). Conquanto o entendimento pessoal que o apóstolo tinha da justiça tenha sido alterado primeiramente pelo encontro que teve com Jesus Cristo em sua visão, ele descobriu esse mesmo ensino de uma justiça baseada na fé nos escritos de Moisés e dos profetas (10.5-20). Deus sempre esteve demandando de Israel fé, fé no evangelho (Rm 10.15-17).
Apesar de Paulo nunca ter criticado a lei como tal por ser ela uma santa, correta e boa expressão da justiça que Deus requer, não obstante, em Cristo, Paulo sabe, pessoal e teologicamente, que a lei não pode produzir na conduta humana a justiça que ela requer (Rm 7; 8.1). O defeito está não na lei, mas nos seres humanos pecadores, e o remédio de Deus para esse defeito humanamente intransponível é Jesus Cristo. Esse aprofundado entendimento do pecado humano só admite uma salvação que seja dom de Deus, uma justiça não baseada nas obras, mas recebida pela fé em Cristo (5.17). Conquanto o entendimento pessoal que o apóstolo tinha da justiça tenha sido alterado primeiramente pelo encontro que teve com Jesus Cristo em sua visão, ele descobriu esse mesmo ensino de uma justiça baseada na fé nos escritos de Moisés e dos profetas (10.5-20). Deus sempre esteve demandando de Israel fé, fé no evangelho (Rm 10.15-17).
O
provocante sumário que Paulo faz desse ensino consta
em Romanos l 0.4: Cristo é o fim da lei, para que todo aquele que
tem fé seja justificado (RSV). Que quer dizer o apóstolo ao descrever
Cristo como o fim (te/os) da lei? Basicamente, há duas possibilidades: Cristo é
"o fim da lei" ou por ser a terminação ou a cessação da lei ou de alguma parte dela ou
por ser seu alvo, sua culminação ou o seu cumprimento. Na Igreja antiga e ainda
na Reforma, os intérpretes favoreciam o alvo/cumprimento, mas hoje o pêndulo
interpretativo pende em favor da terminação/cessação. Essa questão é muito
complexa. Fim é, obviamente, uma metáfora que descreve a relação de
Cristo com a lei, mas o termo propriamente dito não dá toda a informação
necessária para determinar com precisão como Paulo entendia essa relação. Essa informação tem que ser colhida de um exame de todo o ensino de
Paulo sobre a lei. Mas como uma exposição completa do conceito de Paulo
exigiria considerável espaço, e como nesse capítulo só estamos interessados
no impacto que esse ensino tem sobre o conceito paulino do Israel judaico,
vamos apenas mencionar as nossas conclusões concernentes ao conceito de Paulo
sobre a lei.
Paulo
revela duas atitudes básicas para com a lei. Primeiro, quando está em foco a
pecaminosidade da humanidade, Paulo vê a lei como um juiz pronunciando a
sentença de morte. A lei não pode libertar do pecado, ela só pode aumentar o
pecado e permanecer em juízo sobre o pecador (Rm 5.20). O crente, tendo-se
unido a Cristo em sua morte e ressurreição, morreu para o pecado e, portanto,
não está mais sob a lei como juiz, não está mais sob o poder da lei de aumentar
o pecado e de pronunciar sobre o pecador o juízo de morte. Estar livre do
pecado em Cristo significa estar livre da lei em sua relação com o pecado e com
o pecador (Rm 6). Se essa fosse a exclusiva perspectiva de Paulo sobre a lei, o
sentido de fim seria terminação/cessação. Nesse aspecto, a lei
chegou ao fim em Cristo para o crente.
Há,
porém, no ensino paulino, uma segunda perspectiva sobre a lei. Em Romanos 8,
depois de focalizar mais uma vez o que a lei não podia realizar por causa do
pecado, o apóstolo ensina que a obra de Cristo e a vida no Espírito têm como
sua meta o cumprimento das justas exigências da lei (Rm 8.2-4). Para o apóstolo
Paulo, há um real sentido em que a justiça exigida pela lei não foi terminada
pela morte e ressurreição de Cristo. Ao contrário, essa justiça articulada e
requerida pela lei realizou cumprimento em Cristo, e, agora, em Cristo e por
meio do Espírito, essa justiça descreve e modela a vida cristã.
Se
ambas essas perspectivas formam o substrato de Romanos 10.4, então a
interpretação de fim como alvo ou cumprimento faz a maior justiça a
todo o ensino de Paulo. Alvo nos habilita a falar tanto do que
cessa, porque o alvo foi atingido, como daquilo que continua, porque há uma
harmonia essencial entre o que leva ao alvo ou prepara para ele, e o alvo
propriamente dito. Paulo sabe quais funções da lei e quais formas de justiça
cessaram, como também a justiça essencial da lei que continua porque a lei foi
cumprida em Cristo. É esse cumprimento em Cristo que provê unidade ao
entendimento paulino da lei.
Como
esse entendimento da lei afeta a atitude de Paulo para com o Judaísmo e para
com aqueles que não aceitam Cristo como o fim da lei? É óbvio que ele não pode
mais aceitar o ensino tradicional do Judaísmo, segundo o qual o arrependimento
e a prática das obras da Torá (lei) são suficientes para se alcançar a salvação
final. Embora permita que os cristãos judeus observem partes da Torá que não
admite que sejam impostas aos gentios, e embora continue a aplicar a categoria
de eleição mesmo ao Israel judaico descrente, ele não pode admitir um conceito
da observância da Torá que não dê nenhum lugar ao Cristo crucificado e ressurreto,
nem veja nenhuma necessidade dele. Embora tendo recebido essa visão da lei e da
justiça por revelação no caminho de Damasco, ele descobriu que essa justiça
sempre foi recebida pela fé, uma vez que esse era o ensino do Antigo Testamento
(Rm 4.13; 10.6). Tanto para o judeu como para o gentio, o caminho da salvação é
o mesmo, pois ambos têm que invocar o nome do Senhor Jesus para serem salvos
(Rm 10.9-13). Consequentemente, Paulo culpa o Israel judaico por sua falta de
fé. Essa é a sua desobediência primária (10.14-21).
Agora
dá para começar a avaliar a grande tristeza e incessante dor no
coração de Paulo pela situação e pelo destino da maior parte do Israel
judaico (Rm 9.2), pois, mesmo Deus sendo fiel, que opções Deus tem, se Israel
não responde com fé? Se o poder do pecado é tão universalmente presente que
ninguém é justo e ninguém pode ser justificado pelas obras da lei (Rm 3.9, 10),
qual é a presente situação do Israel judaico, que continua a buscar a justiça
de Deus tentando fazer o que a lei exige, e não pela fé? Se ele persiste em
seguir esse caminho, pode Deus fazer alguma coisa, senão rejeitar um povo tão
desobediente (Rm 10.21,
NIV)?
Entendendo a resposta de Paulo: Romanos 11
O remanescente e o resto: eleição e
desobediência
A
notável resposta de Paulo não é nem simples nem esperada, porque em cada
estágio da sua resposta ele rejeita enfaticamente a possibilidade de que nem
mesmo esse povo desobediente Deus tenha rejeitado. O argumento é
assombroso, mas esse assombro é produzido pela consciência da irresistível
graça de um Deus fiel.
O
primeiro estágio do argumento é o mais fácil de entender. Em Romanos 11.1-6,
Paulo introduz a ideia de um remanescente de Israel crente como prova de que
Deus não rejeitou seu povo. O próprio Paulo e todos os outros cristãos judeus
constituem esse remanescente de Israel. Precisamente como tinha acontecido nos
dias de Elias, assim agora, no tempo do apóstolo, somente um remanescente de
Israel respondeu com fé e fidelidade a Deus. Não devemos entender mal a
força maior desse argumento. Erraremos se supusermos que a significação do
remanescente pertence unicamente aos eleitos individuais que constituem o
remanescente. O que Paulo diz não implica que só o remanescente é Israel, e
ninguém mais. Se presumirmos que em Romanos 11.1 o povo de Deus se restringe ao
remanescente eleito, anularemos o resto do argumento de Paulo. Em parte alguma
de Romanos 11 o apóstolo priva o Israel judaico descrente da realidade de ser o
povo de Deus ou do fato da eleição. Em vez disso, Paulo aponta para si mesmo e
para outros cristãos judeus como constituindo prova de que Deus não retirou sua
graça do Israel judaico. Esse remanescente é um sinal de que Deus continua
sendo fiel à sua eleição do Israel judaico. O remanescente significa para todo
o Israel a natureza essencial do verdadeiro Israel e o que Israel sempre é
chamado a ser, porque o remanescente cristão judaico existe como o Israel de
Deus, cuja posição se baseia não nas obras, mas na graça. Por essa razão o
apóstolo salienta a sua solidariedade pessoal com o Israel judaico (Rm 11.1). O
próprio Paulo é o esperançoso sinal de que Deus não rejeitou seu desobediente
povo, porque Paulo também estava num ativo estado de desobediência quando a
graça de Deus lhe foi dada.
Mas mesmo
que o remanescente crente seja um esperançoso sinal concernente à fidelidade de
Deus para com Israel, qual será a situação daqueles que não manifestam os
sinais da eleição? Paulo responde: os mais foram endurecidos (11.7). Devemos resistir à tentação de apressar-nos a traçar inferências dessa
declaração, porque o que Paulo declara não é um novo ensino. Por mais difícil
que a linguagem seja para entendermos, o endurecimento imposto por Deus ao seu
povo por causa da desobediência do próprio povo já era anunciado pelos profetas
do Antigo Testamento. De Moisés a Davi e a Isaías, Israel vê-se às vezes sob
uma ação julgadora de Deus que o mantém incapaz de responder à graça de Deus. A
linguagem profética de juízo emprega figuras de um sono profundo, uma cegueira
incapaz de ver o que Deus está fazendo, uma chocante surdez. Consequentemente,
Israel esqueceu os grandes eventos redentores do êxodo (Dt 29.4), perseguiu o
servo de Deus ungido (Sl 69) e recusou-se a servir a Deus (Is 29). Contudo, no
próprio contexto desses juízos proféticos podem-se encontrar palavras de
esperança para Israel: o surdo ouvirá, o cego verá, e os que erram em espírito
virão a entender (Is 29.18,24). O rigor do juízo profético visa claramente
evocar arrependimento e fé, e, por conseguinte, não podemos inferir que tais
juízos são absolutos e finais, além dos quais não haveria nenhuma esperança.
Assim, a resposta que o apóstolo dá à questão sobre a situação do Israel
descrente é precisamente a mesma que é dada pelos profetas do Antigo Testamento
durante outros períodos de desobediência de Israel.
Essa
perspectiva veterotestamentária continua no próximo estágio do argumento de
Paulo (Rm 11). Aqui o apóstolo descreve o Israel endurecido como tendo
tropeçado, mas não tendo caído. Claramente, a distinção de Paulo entre tropeçar
e cair visa descrever um juízo que é menos que final. Sua descrição é tomada
por empréstimo dos juízos proféticos que falam de um laço, uma armadilha, uma
cova aberta ou de obstáculos que fazem tropeçar, como também da profecia
concernente à pedra que, em Sião, faz Israel tropeçar. Tropeço não é uma
condição irrevogável. Os profetas falam de juízos históricos de Deus sobre
Israel que, por serem históricos em sua natureza, sempre estão abertos para
possível mudança. Em acréscimo, esses juízos históricos não estão desligados do
plano divino de salvação, mas, ao contrário, promovem os seus propósitos. Assim
como o endurecimento de faraó serviu ao propósito da graça de Deus (Rm 9.17),
assim também o endurecimento de Israel serve à salvação dos gentios. Não
somente a incredulidade de Israel tomou-se a ocasião histórica para o
ministério de Paulo entre os gentios (At 13.46; 28.28), mas também para que, em
face dessa incredulidade, Deus se voltasse para aqueles que não eram seu povo
precisamente para manter o caráter gracioso da salvação.
Contudo,
esse voltar-se para os gentios não é um fim em si mesmo. Ele contribui, antes,
para a intenção última de Deus de salvar Israel despertando ciúme em Israel. O
fato de se agregarem os gentios não destitui definitivamente o Israel judaico.
Em vez disso, serve ao propósito de Deus de realizar a plena inclusão de
Israel. Empolgado pelas promessas do Antigo Testamento, o apóstolo não pode
imaginar que a completitude escatológica do plano divino de salvação não inclua
a plenitude escatológica de Israel, e, assim, o apóstolo ensina que Deus ainda
não fechou o livro para o Israel judaico descrente, porque ele ainda antecipa a
sua plena inclusão, um evento análogo ao da ressurreição dos mortos (Rm 11.12,
14). A porta ainda está aberta para a futura salvação do Israel judaico, a
despeito do presente juízo de endurecimento por causa da incredulidade. Coisa
estupenda, o endurecimento que Deus opera em seu desobediente povo não é sua
negação da sua eleição desse povo.
Como
pode o apóstolo manter em tensão duas realidades que na superfície parecem
contraditórias, a saber, endurecimento e eleição? Parte da nossa dificuldade em
captar o que o apóstolo está dizendo nasce dos nossos modos de pensamento
predominantemente individualistas. Temos a tendência de presumir que benefícios
e bênçãos são recebidos unicamente com base na dignidade, ação ou mérito
individual. Talvez estejamos começando a entender hoje que os indivíduos não se
sustêm sozinhos, mas são modelados, abençoados e até julgados com base numa
rede completa de relações essenciais com os outros, quer família quer nação. A
força e a realidade das relações corporativas que definem quem somos como
indivíduos estão começando a modificar o nosso individualismo tradicional. Tais
relações corporativas são a base da esperança de Paulo quanto a Israel. Ele vê
uma relação entre a presente colheita de crentes entre o Israel judaico e a sua
esperança escatológica quanto ao futuro do Israel judaico. O remanescente
crente constitui os primeiros frutos dedicados ao Senhor e representa um
"bolo inteiro de farinha" ou a colheita inteira (cf Nm
15.17-21). Exatamente como Jesus Cristo, como as primícias dos que
dormem, representa e garante a ressurreição daqueles que lhe pertencem (lCo 15.23), assim também o remanescente eleito do Israel judaico representa e
assegura a salvação escatológica do Israel judaico. Em acréscimo, a esperança
escatológica de Paulo tem suas raízes em Abraão e nos patriarcas de Israel.
Graças à eleição de Deus, eles formam a raiz da oliveira de Israel, e sua consagração
a Deus – sua santidade – significa que os ramos têm o mesmo caráter de
santidade, sendo consagrados a Deus (Rm 11.16). Assim, para o apóstolo Paulo,
as bênçãos continuam sendo uma possibilidade futura para o Israel endurecido,
por causa da relação corporativa com aqueles que receberam a graça de Deus. A
desobediência não tem necessidade de cancelar a esperança futura arraigada na
graça eletiva de Deus.
A
metáfora da oliveira torna-se uma declaração sumária de tudo o que Paulo vem
dizendo. A oliveira existe unicamente porque Deus escolheu plantar Israel no
meio das nações. Devido à incredulidade daqueles que são o Israel judaico, os
gentios são enxertados na oliveira para compartir dos privilégios dados por
Deus a Israel. Os cristãos gentios se tornam parte da oliveira, uma parte do
Israel que Deus elegeu. Visto que a sua posição foi criada pela graça, e não
por sua própria natureza, qualquer pensamento ou atitude da parte deles que
diminua a graça pela presunção de outra base para a sua condição de membros de
Israel redundará em juízo. Especificamente, os crentes gentios não devem
presumir nenhum tipo de superioridade sobre o Israel judaico descrente, sobre
os ramos que foram cortados, porque todos os crentes vivem exclusivamente da
graça de Deus concedida soberanamente. Como Israel existe somente com base na
graça de Deus e como a graça promete até curar a infidelidade de Israel (Os
14.4), o apóstolo tem motivo para alimentar esperança até quanto aos ramos que
foram cortados. Deus, que é soberano e gracioso, certamente pode, e talvez até
mais facilmente do que com os ramos gentílicos, enxertá-los novamente.
Naturalmente, para que essa esperança seja concretizada, aqueles que estão sob
juízo e presentemente cortados terão que vir com fé, pois o único modo de ser
Israel é esse (Rm 11.23).
O mistério de uma plenitude final
O
clímax da apresentação de Paulo é a revelação de um mistério concernente à
salvação do número completo de gentios e de todo o Israel. Esse mistério tem se provado de fato muito misterioso para os intérpretes, como a nossa discussão
indicará. Todavia, mistério nada tem a ver com ser misterioso. O uso bíblico de
mistério refere-se ao conselho de Deus concernente ao seu plano de
salvação, que estava oculto porque ainda não tinha sido revelado ou porque uma
revelação parcial não tinha sido entendida plenamente. Embora seja possível que
o apóstolo tenha recebido esse mistério por revelação direta, é mais provável
que ele o tenha recebido por discernimento profético do plano de salvação
desdobrado diante dos seus olhos e iluminado pelo Antigo Testamento. Paulo
descobriu que o plano de Deus continha inesperadas avenidas e surpreendentes
complexidades, mas a clareza do seu discernimento do mistério essencial dos
movimentos da graça de Deus permanece enevoada pelas complexidades que são
verdadeiros enigmas para os intérpretes. Afinal de contas, os caminhos
de Deus estão além da nossa capacidade de rastreá-los (Rm 11.33).
Uma
das complexidades é o sentido de todo o Israel (Rm 11.26). Quem é
esse Israel que será salvo? Embora alguns afirmem que se refere simplesmente a
todos os eleitos, tanto judeus como gentios, nem o contexto prévio nem o subsequente
dão suporte a essa ideia. Apesar de se poder apontar para a metáfora da
oliveira como um símbolo de Israel que abrange os crentes judeus e gentios e
para o fato de que em Gálatas 6.16 Paulo se refere à Igreja cristã como o
Israel de Deus, o fardo da preocupação de Paulo em todo o capítulo 11 de
Romanos é o Israel que foi endurecido e cortado. Sua preocupação não é
simplesmente com a salvação dos eleitos, pois esse é um nível que não levanta
nenhuma preocupação (cf Rm 11.7). Antes, a sua preocupação está centrada em se
a eleição de Israel por Deus não está mais em vigor por causa da incredulidade.
Paulo sente verdadeira agonia por seus compatriotas judeus que não creem, e sua
esperança quanto à salvação de todo o Israel inclui precisamente aqueles que presentemente
são classificados como inimigos de Deus quanto ao evangelho (11.28).
Portanto, é improvável que todo o Israel se refira simplesmente a
todos os judeus e gentios eleitos.
Uma
interpretação mais satisfatória relaciona todo o Israel com a esperança
mais próxima quanto à "plenitude" de Israel (Rm 11.12, "plena
inclusão" na RSV e na NRSV). Plenitude não significa necessariamente a
salvação de todos os indivíduos que alguma vez pertenceram ou pertençam ao
Israel judaico. As Escrituras dão adequada razão para acreditarmos que os
membros individuais podem ser excluídos. Paulo contrasta plenitude com remanescente,
e no futuro escatológico ele não vê mais um remanescente parcial, mas uma
plenitude de Israel. Mas uma vez que o presente remanescente também é
contrastado com o resto de Israel, que é endurecido, parece que a concretização
da plenitude requer uma remoção do juízo de endurecimento. Se o endurecimento
que agora cega os incrédulos para a graça de Deus em Cristo não for removido,
não haverá possibilidade de suplantar a disparidade entre a presente salvação
de um remanescente do Israel judaico e a antecipada salvação futura da
plenitude do Israel judaico. Todo o Israel refere-se, então, ao
Israel judaico em sua plenitude escatológica.
Uma segunda
perplexidade refere-se a quando e como essa salvação da plenitude de Israel vai
acontecer. A descrição que Paulo faz do mistério continua sendo o tema do seu
prévio argumento, segundo o qual o endurecimento do Israel judaico tem como seu
efeito a salvação dos gentios. Ele agora acrescenta que esse endurecimento
estará em efeito até que haja entrado a plenitude dos gentios, isto
é, até que haja entrado na salvação (Rm 11.25). Devemos salientar que Paulo não
está focalizando estreitamente a salvação de indivíduos separados e sugerindo
que todos os indivíduos gentios serão salvos. O apóstolo está descrevendo a
história divina de salvação, que abrange a humanidade inteira, isto é, o Israel
judaico e o mundo gentílico. Em ambos os casos, indivíduos podem ser excluídos
da participação na salvação prometida sem que isso destrua a validade do
argumento de Paulo. A rejeição do Israel judaico descrente tem em vista a
reconciliação do mundo (gentílico 11.15). Dessa maneira, haverá um endurecimento dessa parte do Israel judaico até que o mundo seja reconciliado com Deus
e a plenitude escatológica dos gentios tenha adentrado o reino de Deus e
recebido a salvação. A plenitude dos gentios constitui, então, o limite
escatológico imposto ao endurecimento do Israel judaico, porquanto nesse
momento a intenção salvífica do endurecimento terá atingido o seu alvo.
Todavia,
se isso é tudo que o mistério revela, a salvação do Israel judaico estará
limitada para sempre a um remanescente, e a plenitude escatológica de Israel
pode ser apenas a soma de todos os judeus cristãos através de todos os séculos.
Embora alguns intérpretes sustentem essa ideia, essa abordagem simplesmente
aritmética da plenitude, somando o remanescente de todas as eras, destrói a dinâmica
do argumento de Paulo. Paulo descreve uma relação recíproca do endurecimento de
Israel produzindo a plenitude dos gentios, o que, por sua vez, produz ciúme e a
plenitude de Israel. Assim, mesmo que Paulo não fale, em Romanos 11.25 diretamente de uma remoção do endurecimento de Israel, a força impulsora de
todo o seu argumento implica que vai acontecer isso. Só pela remoção dessa
cegueira poderá uma entidade ser descrita como a plenitude de
Israel, e não apenas um remanescente. Paulo promete mais do que a
existência continuada de um remanescente. Assim como o endurecimento de Israel
serve à salvação do mundo, assim também a salvação do mundo tem o propósito de
evocar ciúme e daí a salvação do Israel endurecido.
A
esperança do apóstolo quanto ao futuro de Israel tem suas raízes na profecia do
Antigo Testamento (Rm 1l.26):
Virá
de Sião o Libertador e ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha
aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados.
Essa
profecia combina Isaías 59.20 e 27.9 com possíveis ressonâncias do Salmo 14.7
e de Jeremias 31.33, e sua forma também é muito significativa. A citação
segue a tradução grega (Septuaginta), que difere consideravelmente da versão
hebraica desses versículos. O texto hebraico diz: e virá a Sião como
Redentor, aos de Jacó que se converterem da sua transgressão. Embora a
existência da diferente redação da Septuaginta possa indicar uma controvérsia
pré-cristã concernente ao sentido dessa profecia, o texto hebraico admite a
possibilidade de que a prometida salvação dependa do prévio arrependimento de
Israel. De fato, essa é a posição do Judaísmo normativo: A salvação messiânica é
condicional, requerendo o arrependimento de Israel, o estudo da Torá e as boas
obras. Enquanto tal arrependimento não ocorrer, a salvação messiânica não
poderá chegar. E. E. Urbach expõe sucintamente as consequências dessa posição
rabínica:
Se o arrependimento, tão-somente, torna possível a redenção e a aproxima, não há necessidade alguma dos sofrimentos messiânicos.
Por conseguinte, a interpretação da profecia de Isaías tem consequências críticas. No texto da Septuaginta, citado por Paulo, a ênfase recai completamente na ação de Deus ou do Messias. O Libertador removerá pessoalmente de Jacó a impiedade. Essa ênfase não somente coincide com a experiência pessoal de Paulo, mas também se harmoniza com o ensino do apóstolo concernente ao endurecimento de Israel, endurecimento que terá que ser removido pelo próprio Deus, se a plenitude de Israel deve ser salva. A salvação não está dentro das possibilidades ou realizações próprias do Israel judaico. Só pode ser fruto da iniciativa divina por amor de Israel. O Senhor mesmo renovará a sua aliança com Israel quando tirar de Israel o seu pecado.
Se o arrependimento, tão-somente, torna possível a redenção e a aproxima, não há necessidade alguma dos sofrimentos messiânicos.
Por conseguinte, a interpretação da profecia de Isaías tem consequências críticas. No texto da Septuaginta, citado por Paulo, a ênfase recai completamente na ação de Deus ou do Messias. O Libertador removerá pessoalmente de Jacó a impiedade. Essa ênfase não somente coincide com a experiência pessoal de Paulo, mas também se harmoniza com o ensino do apóstolo concernente ao endurecimento de Israel, endurecimento que terá que ser removido pelo próprio Deus, se a plenitude de Israel deve ser salva. A salvação não está dentro das possibilidades ou realizações próprias do Israel judaico. Só pode ser fruto da iniciativa divina por amor de Israel. O Senhor mesmo renovará a sua aliança com Israel quando tirar de Israel o seu pecado.
O
referido texto diz-nos também quando e como ocorrerá essa salvação? Primeiro é
preciso responder duas outras perguntas. O tempo futuro de virá refere-se a um evento que ainda é futuro, tal como o retorno de Cristo? Ou,
desde que o tempo futuro já está contido na profecia original de Isaías,
refere-se ele à primeira vinda de Cristo? A segunda pergunta, co-relacionada a
essa, é: Sião é a Jerusalém celeste, da qual Cristo vai voltar, ou
é a Jerusalém terrestre, da qual o evangelho saiu para o mundo todo?
É
difícil decidir qual dessas possibilidades é a correta. Bom número de intérpretes
atuais favorece a ideia de que Paulo visualiza uma futura conversão de Israel associada
ao retorno de Cristo. Como o evangelho terá que ser pregado a todas as nações
antes do fim, como o endurecimento de Israel vai durar até que a
plenitude de Israel haja entrado, como a aceitação do Israel judaico pode
estar associada à ressurreição final dos mortos (Rm 11.15), e como, em geral, a
salvação da plenitude do Israel judaico é claramente futura, não será provável
que Paulo tenha entendido Isaías 59.20 como ainda não se tendo cumprido na
primeira vinda de Cristo? Se esse evento salvífico é mais bem entendido como
completamente futuro, também faz sentido interpretar de Sião como uma
referência à volta de Cristo à terra, descendo da Jerusalém celeste (cf Gl
4.26). Mas, se essa opinião estiver certa, então a salvação da plenitude de
Israel, diferentemente da salvação da plenitude dos gentios, não resulta
diretamente, ou ao menos não primariamente, do evangelho e da missão de
pregação confiada à Igreja no mundo. Ao contrário, a salvação da plenitude de
Israel, em distinção do remanescente, será realizada só quando reaparecer
aquele que, ele próprio, é o conteúdo do evangelho.
Por
mais convincente que essa primeira possibilidade possa parecer, outros estão
convencidos de que tal conceito destrói a dinâmica da visão profética de Paulo.
Anteriormente o apóstolo tinha descrito um processo inter-relacionado que é
posto em movimento pela incredulidade do Israel judaico, a aceitação do
evangelho pelo mundo gentílico e um consequente ciúme por parte do Israel
judaico descrente que levará à sua inclusão. Esse modo de ver entende a
proclamação do evangelho (Rm 10) como de importância central para a salvação
tanto do mundo gentílico como do Israel judaico. Embora seja verdade que o
Libertador removerá pessoalmente a cegueira de Israel, Paulo não parece ensinar
que a remoção da dureza do Israel judaico estará associada ao poder ativo do
evangelho. Falando do Israel endurecido, o apóstolo escreve que, quando uma
pessoa se converte ao Senhor em resposta ao evangelho, é por meio de Cristo que
a dureza é removida (2 Co 3.14-16). Não é necessário supor que Cristo remove a
cegueira ou a dureza só por sua vinda em pessoa.
É,
pois, possível que Paulo entenda o tempo futuro da profecia de Isaías como
tendo se cumprido na primeira vinda de Cristo, que pôs em movimento a missão
apostólica da Igreja. Esse conceito de um processo único e inter-relacionado
que leva à salvação do Israel judaico encontra apoio adicional no paralelo traçado
em Romanos 11.30-32. A salvação é sempre dada aos que estão na desobediência.
Os gentios, em sua desobediência, receberam a misericórdia de Deus por causa da
desobediência do Israel judaico descrente. Agora o Israel judaico desobediente
pode receber misericórdia pela misericórdia mostrada para com os gentios. Esse
processo recíproco e inter-relacionado parece claramente estabelecer a ideia de
que a salvação é recebida da mesma maneira pelos judeus e pelos gentios, igualmente pela eficácia da palavra operando na história. Portanto, a fé vem
do que se ouve, e o que se ouve vem por meio da palavra de Cristo, isto
é, pela pregação do evangelho (Rm 10.17).
Se nos
convence esse conceito que vê a conversão do Israel judaico como relacionada
com a primeira vinda de Cristo e com a subsequente proclamação de Cristo no
evangelho, quando vai ocorrer essa conversão? O apóstolo não elabora um
calendário preciso dos eventos, porque ele mesmo não possui tal coisa. Em vez
disso, foi concedido a ele um discernimento profético do resultado de um
processo que o Senhor já tinha posto em andamento. Esse processo já iniciado
reverteu completamente as suas expectativas originais. Em lugar de uma
conversão do Israel judaico seguida pela conversão dos gentios, Paulo viu um
Israel judaico que foi endurecido enquanto os gentios estavam sendo admitidos à
fé. Todavia, esse processo, que agora (Rm 11.30) trouxe a misericórdia de Deus
ao mundo gentílico, teria como seu efeito que o Israel judaico descrente
receberia essa mesma misericórdia. Se o agora encontrado em alguns
manuscritos de Romanos 11.31 estiver incluído, significa que Paulo está relacionando a conversão de Israel ao processo inaugurado pela primeira vinda
de Cristo e a subsequente pregação do evangelho.
Precisamente
quando esse processo redundará na salvação da plenitude de Israel, o apóstolo
não diz. Obviamente, a salvação da plenitude de Israel inclui também aqueles
cristãos judeus que agora creem juntamente com os gentios. Nesse sentido a
salvação de todo o Israel já está a caminho. Contudo, como
dissemos, a dinâmica do argumento de Paulo aponta para a plenitude de Israel
como uma realidade escatológica que não mais terá a marca do endurecimento que
agora caracteriza a existência de Israel e divide o Israel judaico em
remanescente e o resto. O discernimento profético de Paulo estende-se desde o
tempo da sua missão como pregador até a culminação do plano divino de salvação.
Conquanto o agora aponte para um processo de redenção já em
andamento, ele não pode ser usado para restringir a visão de Paulo ao presente
momento. Há uma plenitude escatológica, tanto do mundo gentílico como do Israel
judaico, que aguarda consumação. Esse momento descreve o fim da história
divina da salvação, visto que nesse tempo o seu propósito terá sido plenamente
realizado, mas o tempo da chegada desse momento não pode ser determinado
antecipadamente. Esse momento continua sendo, no sentido próprio da expressão,
uma realidade escatológica que o Pai guarda em suas próprias mãos.
Autor: David E. Howerda
Trecho
extraído do livro Jesus e Israel, pág
122-133. Editora: Cultura Cristã