João 14.12 - Em verdade, em verdade
vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras
maiores fará, porque eu vou para junto do Pai.
Jesus fez esta promessa aos seus discípulos na
noite em que foi traído, antes de ir com eles para o Getsêmani, durante o
jantar em que instituiu a Ceia. O Senhor falou que iria para o Pai preparar
lugar para os discípulos (Jo 14.1-4), e em seguida explicou como eles chegariam
lá (14.5-6). Respondendo ao pedido de Filipe para que lhes mostrasse o Pai,
Jesus explica que Ele está de tal forma unido ao Pai, e que vê-lo é ver o Pai
(14.7-9). E como prova de que Ele está no Pai e o Pai está nEle, Jesus aponta para
as obras que realizou (14.10-11). E em seguida, faz esta promessa: aquele que
crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu
vou para junto do Pai (14.12).
Esse dito de Jesus é difícil
porque parece prometer que seus discípulos seriam capazes de realizar os
milagres que Ele realizou, e até mesmo maiores, se somente cressem nEle – e
pelo que lemos no livro de Atos e na história da Igreja, esta promessa não parece
ter-se cumprido. Compreender o real sentido desta passagem tem se tornado ainda
mais crucial pois ela tem sido usada, após o surgimento do movimento
pentecostal e seus desdobramentos, para defender modernas manifestações
miraculosas, iguais e maiores dos que as efetuadas pelo próprio Jesus Cristo.
1. As “obras” são os milagres
físicos realizados por Jesus
A interpretação popular e mais
comum, aceita pela maioria dos evangélicos no Brasil (esta maioria, por sua
vez, é composta por pentecostais e neopentecostais), é que Jesus
realmente prometeu que seus discípulos seriam capazes de realizar os mesmos
milagres que Ele realizou, e mesmo maiores. É importante notar que muitos
membros de igrejas históricas, como presbiterianos, batistas, congregacionais e
episcopais, entre outros, também foram influenciados por este ponto de vista.
Nesta interpretação, a palavra obras é entendida exclusivamente como se
referindo aos milagres físicos que Jesus realizou, como curas, exorcismos e
ressurreição de mortos. Os adeptos desta interpretação entendem que existem
hoje pastores, obreiros e crentes com capacidade para realizar os mesmos
milagres de Jesus – e até maiores. Defendem que curas, visões, revelações e outras atividades miraculosas estão acontecendo no seio de determinadas igrejas
nos dias de hoje, exatamente como aconteceram nos dias de Jesus e dos apóstolos.
E desta perspectiva, se uma igreja evangélica não realiza estes sinais e
prodígios, significa que ela é fria, morta, sem fé viva em Jesus.
Apesar desta interpretação
parecer piedosa e cheia de fé (e é por isto que muitos a aceitam), tem algumas dificuldades
óbvias. Primeira, apesar dos milagres que realizaram, nem os apóstolos, que
foram os cristãos mais próximos desta promessa, parecem ter suplantado aqueles
de Jesus, em número e em natureza. Jesus andou sobre as águas, transformou água
em vinho, acalmou tempestades e suas curas, segundo os Evangelhos, atingiram
multidões. Não nos parece que os apóstolos, conforme temos no livro de Atos,
suplantaram o Mestre neste ponto. Segundo, a História da Igreja não registra,
após o período apostólico, a existência de homens que tivessem os mesmos dons
miraculosos dos apóstolos e que tenham realizado milagres ao menos parecidos
com os de Jesus. Na verdade, os grandes homens de Deus na História da Igreja
nunca realizaram feitos miraculosos desta monta, como Agostinho, Lutero,
Wycliffe, Calvino, Bunyan, Spurgeon, Moody, Lloyd-Jones e muitos outros.
Os
pregadores pentecostais que afirmam ser capazes de realizar milagres
semelhantes, e ainda maiores, não têm um ministério de cura e milagres
consistente e ao menos semelhantes aos de Jesus. O famoso John Wimber, um dos
maiores defensores das curas modernas, morreu de câncer na garganta. Antes de
morrer, confessou que nunca conseguiu curar uma criança com problemas mentais,
e nem conhecia ninguém que o tivesse feito.
Os cultos de cura de determinadas igrejas neopentecostais alegam
milagres que são de difícil comprovação. Terceiro, esta interpretação deixa sem
explicação o resto da frase de Jesus: aquele que crê em mim fará também as
obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai (14.12). E por último, esta interpretação implica que os cristãos que não
fizeram os mesmos milagres que Jesus fez não tiveram fé suficiente, e assim,
coloca na categoria de crentes “frios” os grandes vultos da História da Igreja
e milhões de cristãos que nunca ressuscitaram um morto ou curaram uma doença.
Esclareço que não estou
dizendo que Deus não faz milagres hoje. Creio que Ele faz, sim. Creio que Ele é
poderoso para agir de forma sobrenatural neste mundo e que Ele faz isto
constantemente. O que estou questionando é a interpretação desta passagem que
afirma que se tivermos fé faremos milagres maiores do que aqueles realizados
por Jesus.
2. As “obras” se referem ao
avanço do Reino de Deus no mundo
A outra interpretação entende
que Jesus se referia obra de salvação de pecadores, na qual, obviamente,
milagres poderiam ocorrer. Os principais argumentos em favor desta
interpretação são estes:
a. A expressão quem crê em
mim é usada consistentemente no Evangelho de João para se referir ao crente em
geral, em contraste com o mundo que não crê. Examine as passagens abaixo:
Jo 6:35 – Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da
vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.
Jo 6:47 – Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em
mim tem a vida eterna.
Jo 11:25-26 – Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a
vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim
não morrerá, eternamente. Crês isto?
Jo 12:46 – Eu vim como luz para o mundo, a fim de que
todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas.
Fica claro pelas passagens
acima que aqueles que creem em Jesus são os crentes em geral, e que a fé em
questão é a fé salvadora. Por analogia, a expressão quem crê em mim em João
14.12 também se refere a todo crente, e não àqueles que teriam uma fé tão forte
que seriam capazes de exercer o mesmo poder de Jesus em realizar milagres – e
até suplantá-lo!
b. O termo obras referindo-se às atividades de Jesus, é usado no Evangelho de João para se
referir a tudo aquilo que Ele fez, conforme determinado pelo Pai, para mostrar
Sua divindade, para salvar pecadores e para glorificar ao Pai. Veja estas
passagens: Jo 4:34; 5:20,36; 6:28,29; 7:3;
9:3,4; 10:25,32,33,37,38; 14:10,11; 14:12; 15:24; 17:4. O termo obras não se
refere exclusivamente aos milagres de Jesus, muito embora em algumas
ocorrências os inclua. No contexto da passagem que estamos examinando, Jesus
usa o termo obras para se referir às palavras que Ele tem falado: Não crês
que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as
digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras (Jo
14.10). É evidente, portanto, que não se pode entender o termo obras em Jo
14.12 como se referindo exclusivamente aos milagres físicos realizados por
Jesus. O termo é muito mais abrangente e se refere a toda atividade terrena
realizada com o fim de salvar pecadores: palavras, atitudes e, sem dúvida,
milagres.
c. A frase porque eu vou para
junto do Pai fornece a chave para entender este dito difícil. Enquanto Jesus
estava neste mundo, sua ação salvadora era limitada pela sua presença física.
Seu retorno à presença do Pai significava a expansão ilimitada do Reino pelo
mundo através do trabalho dos discípulos, começando em Jerusalém e até os
confins da terra. Como vimos, as obras que Ele realizou não se limitavam
apenas aos milagres físicos, mas incluíam a influência dos mesmos nas pessoas e
a pregação do Reino efetuada por Jesus. Estas obras, porém, estavam limitadas
pela Sua presença física em apenas um único lugar ao mesmo tempo. As obras
maiores a serem realizadas pelos que creem devem ser entendidas deste ponto de
vista: os discípulos, através da pregação da Palavra no mundo todo, suplantaram
em muito a área de atuação e influência do Senhor Jesus, quando encarnado.
Adotar a interpretação acima
não significa dizer que milagres não acontecem mais hoje. Estou convencido de
que eles acontecem e que estão implícitos neste dito do Senhor Jesus.
Entretanto, eles ocorrem como parte da obra de expansão do Reino, que é a obra
maior realizada pela Igreja.
O dito de Jesus, portanto, não
está prometendo que qualquer crente que tenha fé suficiente será capaz de
realizar os mesmos milagres que Jesus realizou e ainda maiores. A Escritura, a
História e a realidade cotidiana estão aí para contestar esta interpretação – e
sim que a Igreja seria capaz de avançar o Reino de Deus de uma forma que em
muito suplantaria o que Jesus fez em seu ministério terreno. Os milagres
certamente estariam e estão presentes, não como algo que sempre deve acontecer,
dependendo da fé de alguns, e não por mãos de pretensos apóstolos e obreiros
super-poderosos, mas como resposta do Cristo exaltado e glorificado às orações
de seu povo.
Autor:
Augustus Nicodemus Lopes
Fonte: O Tempora,! O Mores!