Antes de mais nada, a
depravação total da humanidade é uma doutrina bíblica. O pecado de Adão
deformou intensivamente a natureza humana. Não só o homem foi degradado pelo
pecado, mas toda a criação. A depravação é intensiva, completa e afeta a
humanidade em todos os níveis, como apropriadamente afirma o teólogo calvinista
Herman Dooyeweerd:
A queda, a separação
fundamental de Deus, consistiu nisto: o coração humano rebelou-se contra sua
origem divina; a humanidade imaginou ser algo em virtude de si mesma e, com
isso, buscou a Deus dentro da temporalidade. Eis, então, a apostasia contra o
Deus verdadeiro revelado no coração da humanidade por meio de sua Palavra.
É pertinente observar que,
para Dooyeweerd, o coração é onde reside todo significado religioso da criação
de Deus, o que ele chama de ''self completo". Portanto, não é de modo
nenhum errado afirmar que a depravação total reduz o homem à condição de quase
animalidade ao embaçar, neste, a imagem
e a semelhança de Deus. Esta verdade é proclamada, sonoramente, nas incontáveis vidas destituídas de dignidade e que
reduzidas a quase bestialidade vagam perdidas pelo mundo criado. A vida de
bilhões se resume a nascer, comer, reproduzir e morrer. A miséria de suas vidas
reflete a depravação de suas almas. O coração afastado de Deus perdeu sua
condição de "centro supratemporal da existência humana" (Dooyeweerd)
e permitiu a apostasia idólatra de inventar deuses temporais e causou, em Adão,
a morte espiritual dos que, no mundo, não passam de cadáveres que respiram!
Nada e nem ninguém escapa
dessa tragédia. Paulo, em sua carta aos Romanos, no capítulo 3, versículo 23,
nos ensina o seguinte: Porque todos
pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Diante de tal verdade,
podemos afirmar convictamente que, mesmo os mais afortunados economicamente não
escapam da putrefação espiritual causada pelo pecado. O que os distingue é que
apenas são envolvidos por um superficial verniz brilhante de sucesso material,
fato que os faz pensar que vivem.
Corpos vivos e almas mortas é
o homem afligido pela morte espiritual. A falsa impressão de vitalidade trazida
pelo pecado é apenas um paliativo, uma mentira sedutora soprada por Satanás nos
ouvidos humanos. Por isso, muito se ri, muito se diverte e muito se festeja.
Diante da tragédia da morte, o homem "vive", dá-se em casamento e se
regozija diante da putrefação com um orgulhoso senso de imortalidade.
Insensível à tragédia e ao juízo que se avizinham, o homem sem Deus ergue,
desesperadamente, torres que o permita tocar o céu, mas é sempre em vão. O
livro de Gênesis, no capítulo 11.4-8, é exemplar no que se refere às vãs
tentativas humanas. Vejamos, pois:
Disseram
mais: Eia, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo cume toque no céu,
e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a
terra. Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos
homens edificavam; e disse: Eis que o
povo é um e todos têm uma só língua; e isto é o que começam a fazer; agora não
haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos, e
confundamos ali a sua linguagem, para que não entenda um a língua do
outro. Assim o Senhor os espalhou dali
sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade.
Homens mortos espiritualmente
jamais chegarão a Deus por esforço ou vontade própria, mesmo que ergam torres
impressionantemente altas. Pelo contrario, seu esforço é sempre vão, e diante
da banalidade e ineficácia das tentativas que sempre resultam em idolatria, são
entregues pelo próprio Deus à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio
coração..., como afirma o apóstolo Paulo, em Romanos 1:24. Portanto, ser tocado
pelo céu é a redenção possível e verdadeira, já que Assim, pois, não depende de
quem quer ou de quem corre, mas de Deus usar sua misericórdia, como novamente
Paulo nos ensina em Romanos 9:16.
A idolatria que detém a
verdade pela injustiça (Romanos 1:18) é a filha dileta da Queda. Sua prática
recorrente na História da humanidade acentuou a cisão do coração humano da
Palavra revelada do Deus verdadeiro e único. Ao longo do tempo, o homem tem buscado soluções para a tensão criada
entre ele e o seu Criador. A Busca incessante pelo absoluto, tanto epistemológico,
moral ou metafísico, levou gigantes do pensamento humano a inúmeras tentativas
de alcançá-lo. Seja com Platão, que o buscou na Pólis ou nos deuses
demasiadamente humanos dos gregos, seja em Aristóteles, que o viu na
"razão" ou, ainda, nos teólogos escolásticos, que o viam
irremediavelmente contrastado com a "natureza", o absoluto só foi
devidamente compreendido na Reforma protestante quando os reformadores,
inspirados pelo Espírito, "religaram" o homem a Deus através da
simples, mas potente verdade Revelada do Deus que existe e fala. A consequência
quase que imediata foi que a transição da idade média para a moderna viu as
grandes descobertas científicas e artísticas do período se basearem em certezas
bíblicas epistemológicas e morais. Homens da envergadura de Nicolau Copérnico
(1473-1543), Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642), René
Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727), Blaise Pascal (623-1662) e
outros gigantes do pensamento humano, sustentaram suas teorias e convicções em
suposições cristãs.
Entretanto, a partir do século
XVIII, a Revolução Francesa e seus pressupostos sentenciaram o que podemos
chamar de início do fim do cristianismo como fundamento civilizatório. Abraham
Kuyper chama a teoria/prática implementada pela revolução francesa de
"antiteísta", porque ela proclama como fundamento da certeza e da
autoridade civil a soberania popular, e não a soberania de Deus. Francis
Schaeffer diz que a revolução francesa substituiu, como absoluto, a Graça pela
liberdade e a elegeu, então, como deusa fundamental. Tanto Kuyper como
Schaeffer estão cobertos de razão, pois tanto a soberania transferida para o
homem como a liberdade sancionada como princípio causaram um grande dano à
certeza da soberania divina sobre a criação. No século XIX, já sob a influência
das premissas revolucionárias, o cristianismo sofre com a atuação de mais
quatro grandes danos à sua estrutura. O primeiro é o crescimento da Teologia
Liberal, que declara sob a tutela inicial de Friedrich Schleiermarcher que a
bíblia é um livro mitológico e sem autoridade divina.
O segundo vem do marxismo, que
embebido de materialismo, reduz toda a criação a uma combinação de embates de
forças produtivas e classes sociais, levando ao extremo o pensamento
historicista e a dialética de Hegel, baseada em antíteses e não mais em
sínteses. O terceiro é o pentecostalismo, não por não ser cristão, mas por
fundar-se em uma concepção gnóstica de realidade, desafiando a soberania de
Deus ao enxergar algo de inerentemente mal em algum aspecto da criação,
transformando o conceito de pecado em algo materialmente palpável; e pior,
sonegando a possibilidade de uma cosmovisão bíblica da realidade criada.
Finalmente, o quarto dano é causado pelo arminianismo e suas variações
pelagiana e semipelagiana. A possibilidade da autonomia moral do homem,
sugerida pelo "livre arbítrio", acaba por levar à autonomia
metafísica, isto é, admite que, em algum momento, um evento qualquer do cosmos
pode ocorrer neutramente livre de Deus. Assim, para os arminianos, não há um
Deus absolutamente soberano, mas homens autônomos dotados de vontade sem
causalidade.
No século XX, a articulação de
todos os fatores citados acima aprofundou a crise do cristianismo como
fundamento civilizatório. Podemos dizer que ele está morrendo, agonizante. Mas
ressalto, para não incorrer em blasfêmia, que a agonia não é do Cristo Revelado
e nem de suas Verdades absolutas e inefáveis, mas do cristianismo. O
cristianismo compreendido como fundamento da civilização está morto para a
cultura casual! Sua função de parâmetro epistemológico foi mortalmente abalado
pelo relativismo pós-moderno. A contingência miúda da pós-modernidade pretende
eliminar a certeza. A relativização absurda da razão matou a coerência e a
verdade! A licenciosidade confundida equivocadamente com a "sagrada
verdade do outro" é responsável pelo recrudescimento da podridão ética e
moral de nosso tempo. A depravação total do homem nunca foi tão palpável, tão
tangível!
O certo ao ser identificado
com o que dá certo resulta numa sociedade sem qualquer traço de retidão moral.
A felicidade como um fim em si mesma, e o prazer como motor dessa felicidade,
potencializam sobremaneira o pecado. Diante da corrupção causada pelo
relativismo pós-moderno, toda criação cai em um estado de degradação quase
absoluto - a cultura, as leis, a política, a economia, o lazer e o
conhecimento. A profundidade da ruptura causada pela queda traz consequências
amargas e implica em uma arraigada aversão ao Deus Criador, exatamente como
Paulo anteviu em 2 Timóteo 3:1-4: Sabe,
porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão
egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos
pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem
domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais
amigos dos prazeres que amigos de Deus.
Morte em vida é o que resta a
cadáveres insepultos. Tudo gira em torno de pressupostos humanistas, eivados de
sonhos de autonomia e independência, corrompidos pela apostasia e orgulho
idólatra. Como nos dias do dilúvio, o homem vive despreocupado, alimentando seu
vazio com drogas, sexo, festejos e prazeres. A sensação de que tudo é possível
trazida pelo avanço inócuo da tecnologia aumenta a sensação mentirosa e fugaz
de eternidade. A vida cheia de promessas vãs e prazeres imediatos traz uma
falsa sensação de independência diante do senhorio de Deus. A humanidade vive
seu delírio, achando que tem controle sobre a vida, pensando que tudo pode e
que tem tudo. Vive sem Jesus. Então, tudo lhe é subtraído, inclusive a vida!
O fim da era cristã, todavia,
não significa o fim da Igreja de Cristo! O problema não está no cristianismo, o
problema está nos cristãos forjados na empobrecida forja intelectual e
espiritual do pentecostalismo e neopentecostalismo, na herética forja da
teologia liberal, que insiste em fundir-se com os pressupostos humanistas e
antiteístas do marxismo e na débil visão da soberania de Deus contraposta à
força da vontade humana, construída pelo "livre arbítrio" arminiano.
Incapazes de entender, como diz Kuyper: "se tudo que existe é por causa de
Deus, então, segue-se que a criação toda deve dar glória a Deus. O sol, a lua e
as estrelas no firmamento, os pássaros no céu, toda a natureza ao nosso redor,
mas, acima de tudo, o próprio homem que, como sacerdote, deve fazer convergir
para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela. Embora o pecado tenha
insensibilizado grande parte da criação para a glória de Deus, a exigência e o
ideal permanecem imutáveis, que cada criatura deve ser submergida no rio da
religião e terminar por colocar-se como uma oferta religiosa sobre o altar do
Todo-Poderoso". A Igreja de Cristo é invencível, nos prometeu o próprio
Jesus. Os que Deus elegeu serão alcançados irrevogavelmente, para glória e
louvor de seu nome. A confusão de nossos dias não é confusão para Deus; tudo
foi preordenado para que seu nome fosse alçado acima de todos os nomes. O
Senhor Jesus voltará em poder e glória. Os sinais de sua volta são evidentes. O
caos aparente é o perfeito cumprimento de Sua vontade!
SOLI DEO GLORIA!
NOTAS:
1. Abraham Kuyper. Calvinismo
2. Herman Dooyeweerd. Estado e soberania
3. Francis Schaeffer. O Deus que se Revela
4. Site Monergismo
Divulgação: Reformados 21