O que a Bíblia quer dizer
quando fala da vontade de Deus? Deus sempre impõe sua vontade? Pode a vontade
de Deus ser resistida ou frustrada? Considere os seguintes textos:
Jó 42:2 – Bem sei que
tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.
Daniel 4.35 – Todos
os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade,
ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa
deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?
No céu
está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada. (Sl 115:3; cf Ef 1:11).
Todavia, dizemos que a vontade
de Deus é que todos os homens sejam salvos (1Tm 2:4), e que todos cheguem ao
arrependimento (2Pe 3:9). Como podemos reconciliar essas duas declarações
aparentemente contraditórias? Uma reposta é encontrada na distinção entre a
vontade preceptiva de Deus e sua vontade decretiva.
Considere Êxodo 4:21-23 e a
dureza do coração de faraó. Deus, através de Moisés, ordenará que Faraó deixe o
povo ir. Esta é a vontade preceptiva de Deus, isto é, sua vontade de preceito
ou ordem. Ela é o que Deus diz que deveria acontecer. Outros fazem referência a
isso como a vontade revelada de Deus ou sua vontade moral. Mas Deus também diz
que endurecerá o coração de Faraó, de sorte que Faraó recusará a ordem de
deixar o povo ir. Esta é a vontade decretiva de Deus, ou seja, sua vontade de
decreto ou propósito. O que Deus tem ordenado acontecerá. Ela é também
conhecida como sua vontade oculta, ou vontade soberana ou vontade eficiente.
“Assim, o que vemos [em Êxodo] é que Deus ordena que Faraó faça algo que a
vontade do próprio Deus não permite. A boa coisa que Deus ordena ele impede. E
aquilo que ele traz envolve pecado” (John Piper, “Are There Two Wills in God?”,
114).
Assim, a vontade decretiva de
Deus refere-se ao secreto, tudo que engloba seu divino propósito de acordo com
o que ele predestinou, seja o que for que venha a acontecer. Sua vontade
preceptiva refere-se às ordens e proibições nas Escrituras. Alguém necessita
contar com o fato de que Deus pode
decretar aquilo que ele tem proibido. Ou seja, a sua vontade preceptiva
pode ter ordenado que o evento X deve ocorrer, ao passo que nas Escrituras, a
vontade preceptiva de Deus, ordena que o evento X não deva ocorrer.
John Frame coloca isto da seguinte forma:
A vontade de Deus é às vezes frustrada porque ele assim o
quer, pois ele tem dado a um dos seus desejos precedência sobre outro. (No
Other God, 113)
Deus não planeja causar tudo o
que ele valoriza, mas ele nunca falha em causar tudo o que ele planejou. (113) Ou
novamente: Deus está frequentemente
satisfeito em ordenar sua própria insatisfação.
Talvez o melhor exemplo seja
encontrado em Atos 2:22-23 e 4:27-28. Aqui nós encontramos em certo sentido
Deus “desejoso” de entregar seu próprio Filho, enquanto em outro sentido “não
desejoso” porque era algo pecaminoso para seus executores cumprirem isto. Como
Piper explica:
O desprezo de Herodes por Jesus
(Lucas 23:11), a conveniência da covardia de Pilatos (Lucas 23:24), o
'Crucifica-o! Crucifica-o!' dos judeus (Lucas 23:21), e a zombaria dos soldados
gentios (Lucas 23:36), também foram atitudes e atos pecaminosos. Ainda em Atos
4:27-28 Lucas expressa seu entendimento da soberania de Deus nestes atos,
registrando a oração dos santos de Jerusalém: “porque verdadeiramente se
ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes
e Pôncio Pilatos, com gentios as pessoas de Israel, para fazerem tudo o que a
tua mão e o teu propósito predeterminaram”! Herodes, Pilatos, os soldados, e o
grupo de judeus levantaram suas mãos para se rebelar contra o Altíssimo somente
para provar que a rebelião deles era um serviço inconsciente (pecaminoso) nos
inescrutáveis planos de Deus... Portanto, sabemos que não era a “vontade de
Deus” que Judas, Pilatos, Herodes, os soldados gentios e os judeus
desobedecessem a lei moral, pecando ao entregar Jesus para ser crucificado.
Assim, sabemos que Deus, em certo sentido, Deus quer o que, em outro sentido,
Ele não quer. (111-112).
O que Deus tem eternamente
decretado que acontecerá pode ser o oposto do que ele, nas Escrituras, diz que
deve ou não deve acontecer. É importante manter em mente que nossa
responsabilidade é obedecer à vontade de Deus revelada, e não especular sobre o
que está oculto. Somente raramente, como no caso da profecia preceptiva, Deus
nos revela a sua vontade decretiva. Exemplos da vontade preceptiva ou revelada
incluem: Ezequiel 18:3; Mateus 6:10; 7:21; Efésios 5:17; e 1Ts. 4:3. Algumas
também seriam colocadas nesta categoria: 1Tm 2:4 e 2Pe 3:9. Exemplos da vontade
decretiva ou escondida de Deus incluem Tiago 4:15; 1Coríntios 4:19 e Mateus
11:25-26.
Outro exemplo é encontrado em
Apocalipse 17:16-17. Claramente “empreender guerra contra o Cordeiro é pecado e
pecado contrário à vontade de Deus. Contudo o anjo diz (literalmente), Porque em seu coração incutiu Deus [os dez
reis] que realizem o seu pensamento, o executem a uma e deem à besta o reino
que possuem, até que se cumpram às palavras de Deus (v.17). Portanto Deus
desejou (em um sentido) influenciar os corações dos dez reis de maneira que
eles fariam o que era contra sua vontade (em outro sentido)”. (Piper, 112;
minha ênfase).
Em Deuteronômio 2:26-27, lemos
o pedido de Moisés para que os israelitas pudessem passar através da terra de
Seom, rei de Hesbom. Teria sido uma “boa” coisa que aquele rei tivesse
permitido. Porém, ele não permitiu porque o Senhor “endureceu seu espírito e
obstinou seu coração” (Dt 2:30). Assim, “foi a vontade de Deus (em um sentido)
que Seom agisse de uma forma que fosse contrária à vontade de Deus (em outro
sentido), ou seja, que Israel fosse abençoado, e não amaldiçoado” (115).
Uma situação semelhante é
encontrada em Josué 11:19-20, onde somos informados que o Senhor “endureceu os
corações” de todos aqueles em Canaã para resistir à Israel, de maneira que ele,
o Senhor, pudesse destruí-los assim como disse que o faria.
De acordo com 1Reis 22:19-23 (2Cr 18:18-22),
Acabe estava procurando formar uma aliança com Josafá, rei de Judá, de forma
que juntos pudessem atacar Ramote-Gileade, a qual estava sob o controle da
Síria. Josafá insistiu para que primeiro eles consultassem o profeta para ver a
perspectiva de Deus. Acabe, de outro lado, ajuntou 400 dos seus profetas e
disse a eles para atacar Ramote-Gileade e que seriam vitoriosos. Josafá
consultou o profeta Micaías, o qual lhe contou a visão que teria tido quando
viu o Senhor assentado no seu trono, e todo o exército do céu estava junto a
ele. Nesta visão, Deus perguntou quem enganaria a Acabe, para que suba e caia
em Ramote-Gileade? Um “espírito” (anjo?) se apresentou para ser o espírito mentiroso na boca de todos os
profetas de Acabe (v.22). Deus concordou. O espírito foi e assim o fez;
Acabe ouviu a voz dos profetas, e foi para a batalha, onde veio a morrer.
Alguns argumentam que o
“espírito” era de fato o diabo, todavia, não há indicação disto no texto. O
espírito é retratado simplesmente com um em meio aos outros. Não há evidências
de que ele tinha uma posição superior ou especial. Seria um anjo caído, um
demônio? Provavelmente. Realizou uma função má: incitou os profetas de Acabe a
mentir. Apesar do espírito não ser o diabo em si, existem inegáveis paralelos
entre este texto e o de Jó 1. Também, a passagem parece atrair uma distinção
entre o espírito que inspira os profetas de Acabe e o que inspira Micaías (v.
24). “A implicação é que Micaías e os profetas de Acabe poderiam não ter
recebido as mensagens da mesma fonte. Existe, naturalmente, duas fontes
distintas, mas é Micaías quem tem a fonte correta. Afinal de contas, é a sua
profecia que vem e acontece” (página 79).
Observe que mesmo este
espírito demoníaco está absolutamente sujeito à vontade de Deus. É o comando de
Deus. Está claro para Micaías que era Deus quem pôs o espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas; e o
Senhor falou o que é mau contra ti (v.23). Assim Deus pode e frequentemente
usa espíritos demoníacos para satisfazer seus propósitos. Novamente, vemos que
a pergunta, “Quem fez isto, Deus ou o Diabo?” pode ser respondida, “Sim”. Porém
Deus é sempre último. [Um paralelo próximo a essa passagem é encontrado em
Juízes 9:23, onde Deus suscitou um espírito de aversão entre Abimeleque e os
cidadãos de Siquém.]
O que é importante para o
nosso propósito é o fato óbvio de que Deus ordena que suas criaturas não mintam
ou enganem. Mentir ou enganar é, portanto, contrário à vontade de Deus. Todas
as criaturas de Deus são moralmente obrigadas a dizer a verdade. Todavia, aqui
temos um exemplo no qual Deus coloca um espírito enganador nos lábios daqueles
homens. Neste sentido, pareceria que as palavras que eles falaram foram de
acordo com a vontade de Deus, ao mesmo tempo que, em outro sentido, as palavras
que eles falaram foram contra a vontade de Deus.
Outras casos são encontradas
em Romanos 11:7-9, 31-32 e Marcos 4:11-12. No primeiro texto vemos que “embora
seja a ordem de Deus que seu povo veja, ouça e responda em fé” (Is 42:18),
contudo, Deus tem suas razões para enviar de vez em quando um espírito de
estupor de maneira que sua vontade não seja obedecida” (115). Igualmente, “o
ponto em Romanos 11:31...é que o endurecimento de Israel por Deus não é um fim em si
mesmo, mas é parte de um propósito salvador que abraçará todas as nações. Mas,
durante um pouco de tempo, temos que dizer que ele deseja uma condição
(endurecimento do coração) que ele ordena que as pessoas lutem contra (Não
endureçais vossos corações [Hb 3:8,15; 4:7])” (116). No texto de Marcos, “Deus
deseja que uma condição prevaleça sobre uma outra que ele considera
repreensível. Sua vontade é que eles se arrependam e creiam no Evangelho (Mc
1:15), mas ele age de forma a restringir a realização dessa vontade” (115).
Em 1Samuel 2:22-25, lemos
sobre a maldade dos filhos de Eli; a maldade era claramente contra a “vontade”
de Deus. A “vontade” revelada de Deus era para que eles ouvissem a voz de seu
pai e parassem de pecar. Aprendemos ainda que a razão pela qual eles não
obedeciam a Eli (e Deus) era porque “o Senhor os queria matar.” Como Piper
nota, “isto faz sentido somente se o Senhor tivesse o direito e o poder para
parar a desobediência deles. Um direito e poder que ele desejou não usar.
Assim, devemos dizer num sentido que Deus desejou que os filhos de Eli fossem
fazer o que ele não ordenou que fizessem; não honrar seu pai e cometer
imoralidade sexual” (117).
Outros exemplos similares ao
de 1Samuel 2 são 2Samuel 17:14, 1Reis 12:9-15, Juízes 14:4 e Deuteronômio
29:2-4. Estes são todos incidentes, dentre vários outros que poderiam ser
citados, onde Deus escolhe (“deseja”) que certos comportamentos aconteçam, os
quais ele não ordenou (“não deseja ”) que acontecesse.
Ainda outro exemplo é
encontrado em Gênesis 50:20. Aqui José diz a seus irmãos, “Vós, na verdade,
intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como
vedes agora, que se conserve muita gente em vida”. Diz Grudem: “Aqui, a vontade
revelada de Deus para os irmãos de José era que os mesmos deveriam amá-lo e não
roubá-lo ou vendê-lo como escravo ou intentar plano de matá-lo. Mas a vontade
secreta de Deus era que na desobediência dos irmãos de José uma grande coisa
seria feita quando José, tendo sido vendido como escravo no Egito, ganhasse
autoridade sobre toda a terra e fosse capaz de salvar sua família” (Systematic
Theology, 215).
Os arminianos tem
tradicionalmente objetado contra esta distinção entre “duas vontades em Deus”
quando diz respeito à questão da salvação individual. Estou pensando em
particular na declaração de 1Timóteo 2:4 e 2Pedro 3:9. Grudem destaca:
Mas, “no final, os arminianos
também devem dizer que Deus deseja algo mais fortemente do que ele deseja a
salvação de todas as pessoas, pois de fato nem todos são salvos”. Os arminianos
afirmam que a razão pela qual nem todos são salvos é que Deus deseja preservar
o livre arbítrio dos homens mais do que ele deseja salvar alguém. Mas isto não
está fazendo uma distinção entre dois aspectos da vontade de Deus? Por outro
lado, a vontade de Deus é que todos sejam salvos (1Tm 2:5-6; 2Pe 3:9). Mas
também em outro sentido sua vontade é de absolutamente preservar o livre
arbítrio. De fato, ele deseja a segunda mais do que a primeira. Portanto, isto
significa que os arminianos também necessitam concordar que em 1Timóteo 2:5-6 e
2Pedro 3:9 Deus não diz que ele deseja a salvação de todos de uma maneira
absoluta e não qualificada – eles também necessitam concordar que os versículos
fazem referência a um tipo ou a um aspecto da vontade de Deus (684).
Tanto Calvinistas como
Arminianos, portanto, devem concordar que existe algo mais que Deus considera
como mais importante que a salvação de todos:
Os teólogos reformados dizem
que Deus julga sua própria glória mais importante do que a salvação de todos, e
que (de acordo com Romanos 9) a glória de Deus é também promovida pelo fato de
que nem todos são salvos. Os teólogos Arminianos também dizem que algo é mais
importante para Deus do que a salvação de todos os homens, a saber, a preservação
do livre arbítrio dos homens. De maneira que no sistema reformado o mais alto
valor para Deus é sua própria glória, e no sistema Arminiano, o mais alto valor
para Deus é o livre arbítrio do homem. (684).
Adendo: Observações de Edwards
É importante tomar nota da
explanação de Jonathan Edwards sobre a distinção da vontade revelada e a vontade
secreta. Ele escreve:
Quando a distinção é feita
entre a vontade revelada de Deus e sua vontade secreta, ou seu desejo de
comando ou decreto, a vontade é certamente tomada em dois sentidos: Sua vontade
de decreto não é a sua vontade no mesmo sentido que sua vontade de comando.
Portanto, não difícil de forma alguma supor, que uma pode ser o contrário da
outra: sua vontade em ambos os sentidos é sua inclinação. Mas quando dizemos
que ele deseja virtude, ou ama a virtude, ou a felicidade de sua criatura,
então através disso, é pretendido que a virtude, ou a felicidade da criatura,
absoluta ou simplesmente considerada, está de acordo com a inclinação da sua
natureza.
Sua vontade de decreto é sua
inclinação para uma coisa, não tal para coisa absoluta e simplesmente, mas com
respeito à universalidade das coisas que foram, são ou serão. Assim, Deus,
embora odeie uma coisa como ela é simplesmente, poder inclinar-se para ela com
referência à universalidade das coisas. Embora ele odeie o pecado em si,
todavia, ele pode permiti-lo, para a maior promoção de sua santidade nessa
universalidade, incluindo todas as coisas, em todos os tempos. Assim, embora
ele não tenha nenhuma inclinação para a miséria da criatura, considerada
absolutamente, todavia, ele pode desejá-la, para a maior promoção de felicidade
nessa universalidade. Deus se inclina para excelência, que é harmonia, mas,
todavia, ele pode se inclinar para o sofrimento que não é harmonioso em si,
para promoção da harmonia universal, ou para a promoção da harmonia que há na
universalidade, e fazê-la brilhar com mais intensidade (527-528).
Novamente, ele insiste que:
Não há inconsistência ou
contrariedade entre a vontade decretiva e preceptiva de Deus. É bastante
consistente supor que Deus possa odiar a coisa em si, e, todavia, desejar que
ela aconteça. Sim, eu não receio em afirmar que a coisa em si possa ser
contrária à vontade de Deus, e ainda que possa ser agradável que sua vontade
venha a acontecer em outro caso. Supor que Deus tem vontades contrárias para
com o mesmo objeto, é uma contradição; mas não o é quando se supõe que ele
tenha vontades contrárias sobre diferentes objetos. A coisa em si, e que a
coisa que deva acontecer, são diferentes, como é evidente; porque é possível
que uma possa ser boa e a outra possa ser má. A coisa em si pode ser má, e
ainda pode ser bom que ela aconteça. Pode ser bom que uma coisa má aconteça; e
frequentemente, muito certamente e inegavelmente, é isso o que acontece, e provado
está. (542-543).
Autor: Sam Storms
Trecho extraído do livro Escolhidos: Uma exposição da doutrina da
eleição, pág 139-146.