É fascinante o quanto uma
filosofia herética dos primeiros séculos pode permear o pensamento cristão em
pleno século 21. Uma atividade interessante é se perguntar: Consigo imaginar
Jesus Cristo fazendo atividades comuns? Veja como sentimos uma aversão inexplicável
quando é sugerido que Cristo ria de piadas, tomava vinho com seus irmãos
judeus, assistia algum evento esportivo, conversava sobre temas políticos ou
apreciava uma música cultural. Parece-nos impossível que Jesus tenha ‘perdido
seu tempo’ com atividades ‘comuns’, porque no fundo, acreditamos que tudo –
exceto as conversas teológicas ou cultos religiosos – sejam banais para Deus.
Somente o espiritual tem algum valor.
É por isso que pode ser dito
que o gnosticismo dos primeiros séculos ainda permeia muito o pensamento cristão.
Os gnósticos, representando a filosofia grega daquela época, criam que a
matéria é má e somente o espírito é bom. De acordo com esse dualismo, nossos
corpos inúteis servem somente como vasos para nossos espíritos eternos. O alvo
de todo homem é buscar um conhecimento especial (gnosis) que o elevará à
perfeição. Uma boa feijoada é frívola; um salário melhor é banal; um bom filme
ou obra de arte é inútil. E, conforme o gnosticismo infiltrava as discussões
cristãs, argumentava-se que Deus só se agrada naquelas expressões espirituais:
tempo devocional, oração e meditação na Palavra.
Um pouco mais adiante, a
igreja Católica Romana ensinava que há uma distinção concreta entre o secular e
o sagrado. O trabalho do pedreiro é secular enquanto o padre se empenha naquilo
que é sagrado. Qualquer música que não seja de cunho religioso é secular, enquanto qualquer festa promovida pela igreja é santa. Aos poucos foi disseminada
a ideia que o religioso tem mais valor para com Deus do que o comum.
Não é tarefa difícil encontrar
traços destes pensamentos no meio evangélico. Por exemplo:
1. Supor que um pastor está em um
nível espiritual que dificilmente será alcançado por um leigo.
2. Definir como ‘carnal’ qualquer
coisa que traz benefícios ou agrado ao corpo humano. O uso de maquiagem, por
exemplo, é sinal de carnalidade.
3. Toda festa deve incluir um
momento de exortação espiritual. Se faltar, Deus não foi louvado pela comemoração.
4. Quanto mais cultos por domingo
(ou por semana) melhor, mesmo que cause exaustão nos membros.
5. Espera-se que quem faz um
curso de música a faz primordialmente para poder participar na adoração da
igreja.
6. Desejos sexuais são sujos e
devem ser tratados com tal. No casamento, a expressão sexual é um ‘mal
necessário’.
7. Entretenimento só é válido se
for breve e barato já que, para serem bem investidos, tempo e dinheiro deverão
ser investidos em missões.
8. Assume-se que um missionário
que sacrificou muito para estar em uma terra distante agrada muito mais a Deus
do que o simples cristão que alimenta e instrui seus filhos na sua cidade
natal.
9. A diversão, em grande parte, é
uma distração satânica. Quem é dedicado, não se diverte. As obras que
glorificam a Deus deverão ser sempre difíceis, dolorosas e de alto custo.
10. Um cristão não pode enxergar
beleza em quaisquer obras de arte se feitas por artistas não cristãos.
Entretanto, toda expressão artística feita por cristãos deve ser aplaudida pela
comunidade evangélica.
11. Tendo um dom ou chamado, não é
necessário estudar em ambientes acadêmicas, já que Deus já te deu toda a
capacitação santa que você necessita.
12. Toda e qualquer atividade
promovida pela igreja merece igual atenção e participação de todos os membros.
Versículos como Rm 7.24 (Quem
me livrará do corpo desta morte?) ou Rm 8.8 (Os que vivem na carne não podem
agradar a Deus) são interpretados pela lente gnóstica, insinuando que o corpo
só atrapalha a expressão perfeita do espírito.
Os exemplos acima compartilham
entre si a ideia de que a espiritualidade é de muito mais valor do que o
material. Por isso, muitos cristãos hoje não podem imaginar que Jesus Cristo
expressou sua humanidade até nas coisas materiais. Como garoto, Cristo não pode
ter um prato, uma roupa ou brinquedo favorito e nem se alegrava com presentes.
Como adulto, não apreciava músicas ou obras de artes, a não ser aquelas ligadas
diretamente com a mensagem Messiânica.
Uma das implicações deste
gnosticismo evangélico é a crescente isolação dos cristãos. Deixam de se
envolver nas artes, na economia, na política ou nas discussões populares. Não
veem valor em produzir profissionais cristãos, respeitados no mercado ‘secular’
ou estudantes bem lidos que interagem com seus professores no ambiente
acadêmico. Prevalece o sentimento que, já que nosso reino não é deste mundo,
não devemos participar no andamento do mesmo. A matéria pertence aos ímpios;
nós interagimos no meio espiritual, somente.
DEUS CRIOU O MUNDO
Entretanto, segundo o relato
de Gênesis, Deus criou tanto a matéria quanto a carnalidade (no sentido que
somos seres carnais). Não foi o pecado que deu a Adão e Eva a capacidade de
curtir a variedade de alimentos, se alegrar com os tons do pôr-do-sol, chorar
de rir de alguma brincadeira boba, sentirem românticos ou apaixonados, ou
curtirem uma praia e tomar água de coco. Não foi a nossa natureza caída que
criou os desejos sexuais, a apreciação de uma boa sobremesa ou a alegria
explosiva quando nosso time ganha o campeonato. Cada detalhe foi desenhado pelo
Criador. O pecado pode distorcer a criação divina, mas falta-lhe a capacidade de
criar algo do nada.
A REDENÇÃO RECRIA O MUNDO
A mensagem do Evangelho
promete um novo céu e nova terra. Mas isso não quer dizer que todas as
consequências da redenção são meramente futuras. Em todas as épocas da
história, se vê as bençãos da salvação: homens amando o próximo, servindo os
pobres, sendo honestos, corajosos e fiéis. Uma vida transformada pelo Evangelho
deve, sim, tocar outras vidas.
JESUS CRISTO FOI UM HOMEM
PERFEITO
Jesus Cristo não foi menos
humano do que nós. Na verdade, Ele foi o homem mais perfeito a existir, já que
sua humanidade não sofreu a corrupção do pecado. Sua perfeição não consistia em
anular sua humanidade, mas sim em expressar perfeição de forma tangível. O
apóstolo João combate a visão gnóstica quando afirma: “O que era desde o
princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e
nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida […] Sim, o que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos… (1 João 1.1,3) Cristo pode rir de piadas,
comemorar o casamento de amigos, torcer por um time esportivo com pureza, da mesma
forma que nós faremos na nova terra.
SOMOS SANTOS MUNDANOS
Os puritanos do século 17
foram chamados de santos mundanos, isto é, viviam no mundo sem participar do
mundanismo. Não ignoravam seus contextos, antes, aplicavam os princípios
bíblicos em todo aspecto da sua vivência. Longe de serem caracterizações
estoicas, chatas e desligadas da realidade, foram homens e mulheres alegres,
sinceros e festivos. Entenderam,
corretamente, que Cristo não veio nos salvar da nossa humanidade, mas sim, da
nossa incapacidade de glorificar Aquele que nos fez humanos.
Autor:
Daniel Gardner
Fonte:
daniel.gardner.nom.br