4 de janeiro de 2016

Atos 19.11-12 corrobora o ato profético?


O ato profético é um ritual que faz parte de algumas igrejas pentecostais e das ditas igrejas neopentecostais. É uma influência mesclada do judaísmo do AT e suas implicações simbólicas, das religiões afro, do espiritismo, das artes mágicas e do ocultismo em geral. Neste artigo, não irei analisar detidamente as várias passagens no AT nem os elementos utilizados como um tipo de “ato profético. Limitei-me apenas em Atos 19.11-12, visto que é um dos principais textos utilizados pelos adeptos do ato profético como base para ratificar tal prática. Sendo assim, vejamos, pois, o que Atos 19.11-12 verdadeiramente quer dizer.  


Atos 19.11-12 – E Deus, pelas mãos de Paulo, fazia milagres extraordinários, a ponto de levarem aos enfermos lenços e aventais do seu uso pessoal, diante dos quais as enfermidades fugiam das suas vítimas, e os espíritos malignos se retiravam.

No texto em pauta, Lucas relata que quando os lenços e aventais de Paulo eram colocados sobre os doentes, eles eram curados. As pessoas pegavam os lenços e aventais do apóstolo e colocavam sobre os doentes. O lugar que ocorreu este fato foi na cidade de Éfeso, onde Paulo empreendeu sua terceira viagem missionária (At 19), permanecendo lá por cerca de três anos (AT 19.31). Éfeso era uma cidade mística e supersticiosa, onde imperava a idolatria e o culto a Diana dos Efésios (At 19.24-28; 18-19). 

Havia um templo nesta cidade onde esta falsa divindade era cultuada. Com relação ao misticismo sincrético que predominava em Éfeso, muitos que não eram cristãos e os que já haviam sido convertidos por Cristo Jesus através da pregação do Evangelho (é bem provável que Priscila e Àquila foram os fundadores da igreja de Éfeso) tinham pouco conhecimento da Escritura. Estes novos convertidos eram  leigos e incautos, e por isso tomaram os lenços e aventais de Paulo e colocaram sobre os enfermos, onde mesmo assim, por insipiência deles, Deus curou várias pessoas, conforme é descrito em Atos 19.11-12. Paulo amarrava os lenços ao redor da cabeça e costumava usar os aventais na cintura, quando fabricava tendas. 

Embora Deus tenha curado inúmeras pessoas através dos lenços e aventais de Paulo, conforme é mencionado no capítulo 19 de Atos, não encontramos em todo o Novo Testamento nenhuma permissão ou ordem de nenhum apóstolo ou até do próprio Senhor Jesus, nos Evangelhos, apoiando a prática de atos proféticos. Deus, em Atos 19, fazia maravilhas pelas mãos de Paulo, porém ele permitiu, pela sua misericórdia, que as pessoas fossem curadas pelos lenços e aventais do apóstolo, assim como a sombra de Pedro curava (At 5.15).

Os lenços e aventais de Paulo foram um canal do poder de Deus manifestado em sua vida bem como na vida dos demais apóstolos, que foram pessoas singulares na histórica da igreja. Porém, é deveras importante compreendermos o significado de outros objetos (além dos pedaços das roupas de Paulo) com poderes miraculosos utilizados por Deus no AT e NT para evitarmos interpretações equivocadas e heréticas. Dentre estes objetos, temos o cajado de Moisés (Êx 8.5, 16), o manto de Elias (2Rs 2.8, 14) e as vestes de Jesus, que tinha o poder de curar quem as tocasse, onde não somente a mulher do fluxo de sangue fora curada quando as tocou pela fé, mas também outras pessoas doentes foram curadas ao tocar nelas (veja Mt 14.36; Mc 6.56; Lc 6.19).

Augustus Nicodemus escreve:

O propósito das narrativas acerca do poder que havia neles [nos objetos descritos acima] foi mostrar o extraordinário poder de Deus na vida dos seus possuidores, comprovando que a sua mensagem vinha realmente da parte de Deus. O ponto é que esse poder era tão grande que até as coisas com as quais Moisés e Elias tinham contato diário se tornavam canais através dos quais ele era transmitido. [...] Devemos entender, entretanto, qual o objetivo dessas narrativas. Em todas elas, o conceito é o mesmo. Jesus e os apóstolos eram tão cheios do poder de Deus que as coisas com as quais tinham contato íntimo se tornavam como que em extensões deles, para curar e abençoar as pessoas. O objetivo é idêntico: enfatizar a enormidade do poder de Deus na vida deles e, assim, atestar que a mensagem pregada por eles, bem como pelos profetas do Antigo Testamento, vinha de Deus. A prova eram os poderes miraculosos tão extraordinários que até mesmo vestes, bordões, ossos, saliva, sombra e lenços desses homens transmitiam o poder curador de Deus que neles havia. É dessa maneira que devemos entender o relato de Atos 19 sobre o poder curador dos lenços e aventais de Paulo.1

Em contrapartida, é importante entendermos que Paulo não distribuiu e sequer orou consagrando os seus lenços e aventais para que estes fossem entregues ao povo em uma forma mística como vemos hoje nas ditas igrejas neopentecostais, que consagram os mais variados objetos como um tipo de amuleto ou talismã, os quais são apenas um símbolo para o exercício da fé ou são ativados pela fé do adepto, dizem alguns. Para os mais fanáticos, tais objetos possuem poderes sobrenaturais. 

Justo González afirma:

A referência aos lenços e aventais de Paulo forneceram uma oportunidade para que alguns supostos evangelistas fizessem dinheiro com a venda deles e de outros itens que tinha abençoado. Contudo, observe que aqui, o texto não sugere que Paulo distribuiu ou proclamou o poder de seus lenços e aventais, mas, antes, que as pessoas os pegavam sem o conhecimento do apóstolo. Não é, como alguns declaram hoje, que Paulo abençoou lenços para que pudessem ser realizados milagres por intermédio destes.2

Em toda a narrativa de Atos 19, Deus não diz que devemos fazer isto hoje ou que ele aprovava a atitude dos Efésios. Os sinais e prodígios operados pelos apóstolos e por outros cristãos que não eram apóstolos, como Estevão, por exemplo, eram necessários nesta época “singular” em que o Cristianismo estava sendo expandido às nações para:

1. Apontar para a pessoa de Cristo como o filho de Deus, Deus e a sua obra redentora (Mc 2.1-12; At 2.1-38; 3.1-26); 2. atestar que a mensagem que o apóstolo anunciava e o próprio apóstolo vinha da parte de Deus (At 2.14-41; 5.12-16; 10.34-48); 3. fortalecer a fé dos cristãos (Jo 20.30-31; At 14.1-3).

Os profetas, na história de Israel no Antigo Testamento, e os apóstolos, na história de Israel e de lugares fora de Israel que foram evangelizados por Paulo, foram pessoas usadas por Deus de forma única e extraordinária para um propósito específico que se cumpriu historicamente. Nenhum cristão hoje é usado por Deus da mesma forma que estes homens do passado foram usados. Pedaços de roupas ou qualquer outro objeto de nosso uso pessoal não vai transmitir cura para as pessoas. Deus não vai usar hoje alguém como usou os profetas e os apóstolos no passado para escrever novas revelações, pois o cânon das Escrituras está completo com todas as revelações necessárias para a igreja. Hoje, Deus usa os pregadores, pastores e teólogos de outra forma que difere da maneira que usou os profetas e os apóstolos. Deus não muda em sua natureza, porém, ele muda a sua maneira de agir providencialmente na história (Hb 13.8).

John Stott atesta:

A atitude mais sábia perante os milagres dos lenços não é a dos céticos, que os declaram espúrios; nem a dos imitadores, que tentam copiá-los, como aqueles televangelistas que oferecem aos doentes lenços abençoados por eles, mas sim a dos estudiosos da Bíblia que lembram que Paulo via seus milagres como credenciais apostólicas e que Jesus mesmo foi condescendente com a fé tímida da mulher, curando-a quando ela tocou a orla de sua roupa.3  

Portanto, entendemos, pelas Escrituras, que os lenços e aventais de Paulo foram usados por Deus para o propósito de cura somente em Éfeso, no período em que o apóstolo esteve lá por três anos, evangelizando. Por outro lado, nas igrejas de libertação, os objetos são ungidos, abençoados, fluidificados e consagrados por meio da oração e da imposição de mãos dos pastores e obreiros, passando supostamente a terem poderes especiais. No entanto, em nenhum dos casos mencionados nas Escrituras, os objetos empregados nos milagres passaram, antes, por uma cerimônia de consagração. A Bíblia desconhece totalmente a unção das coisas com o fim de serem empregadas em atos miraculosos, para atrair a benção de Deus, ou ainda, para expelir demônios e doenças. É verdade que no Antigo Testamento alguns objetos, utensílios e mobília do tabernáculo e, depois, do templo foram ungidos com sangue e óleo. Porém, o propósito não era investir essas coisas de poderes especiais, e sim separá-las do seu uso comum para o uso sagrado nos rituais de sacrifício.4      

Finalmente, não devemos imitar ou adotar o ato profético hoje como uma norma ou sistema para igreja. Não há apoio em toda a Escritura para isto! 





NOTAS:

1. Augustus Nicodemus Lopes. O que você precisa saber sobre Batalha Espiritual, pág 148-149.
2. Justo González. Atos, pág 265.
3. John Stott. A Mensagem de Atos, pág 344.
4. Augustus Nicodemus Lopes. O que você precisa saber sobre Batalha Espiritual, pág 150-151.




Autor: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21