1 de janeiro de 2016

Calvinismo e Política (4/4)


No quarto e último  artigo  sobre Calvinismo e Política,  retirado da obra Calvinismo, de Abraham Kuyper, encerramos  a série de transcrições que fizemos das palestras proferidas pelo grande teólogo holandês no Princeton University and  Seminary em 1898. Esperamos, sinceramente, contribuir para o justo entendimento que o Calvinismo que tanto amamos e respeitamos não se resume a soteriologia, mas, antes, é um completo sistema de compreensão do mundo criado, fundado estritamente na perfeição da Palavra de Deus. Homens como Abraham Kuyper são baluartes incontestáveis da Teologia Reformada. Sua obra surpreendentemente rica e vasta contribuiu, sobremaneira, para o ajuste preciso entre a correta hermenêutica e a Glória de Deus. 

A Soberania na Igreja

Como terceira e última parte desta palestra, a discussão gira em torno de uma questão ainda mais difícil que a anterior, a saber, como devemos conceber a Soberania da Igreja no Estado.

Liberdade do Estado e da Igreja

Chamo a isto um problema difícil, não porque estou em dúvida quanto às conclusões, ou porque duvido da concordância de vocês a estas conclusões. Pois, até onde observo a vida americana, toda incerteza a este respeito está removida pelo que sua Constituição a princípio declarou – e mais tarde foi modificado em suas Confissões – a respeito da liberdade de adoração e a coordenação da Igreja e Estado. E no que pessoalmente me diz respeito, há mais de um quarto de século, escrevi em meu Jornal Semanal o moto – “Uma Igreja livre num Estado livre.” Em meio a uma dura luta este moto sempre foi levantado ao alto por mim, e nossas Igrejas na Holanda também estão prontas a reconsiderar o artigo em nossa Confissão que toca nesta matéria. A Dificuldade – Intervenção do Estado em Matérias de Religião A dificuldade do problema encontra-se noutra parte, encontra-se na fogueira e feixes de Serveto. Encontra-se na atitude dos Presbiterianos para com os Independentes. Encontra-se nas restrições da liberdade de adoração e nas “incapacidades civis”, sob as quais por séculos os Católicos romanos têm sofrido até mesmo na Holanda. A dificuldade encontra-se no fato de que um artigo de nossa velha Confissão de Fé calvinista confia ao governo a tarefa “de defender contra e de extirpar toda forma de idolatria e falsa religião, e de proteger o serviço sagrado da Igreja.” A dificuldade encontra-se no conselho unânime e uniforme de Calvino e seus epígonos, que exigia a intervenção do governo em questões de religião.Portanto, é natural a acusação de que, optando pela liberdade de religião, não estamos privilegiando o Calvinismo, antes nos opomos diretamente a isto.

A fim de proteger-me desta suspeita indesejável, antecipo a regra – que um sistema não é conhecido pelo que ele tem em comum com outros sistemas precedentes; mas que ele é distinguido por aquilo em que difere daqueles sistemas precedentes.

Origem Histórica da Interferência – Desde Constantino

O dever do governo de extirpar toda forma de religião falsa e idolatria não foi descoberta pelo Calvinismo, mas data de Constantino o Grande, e foi a reação contra a horrível perseguição que seu predecessor pagão no trono imperial infligiu sobre a seita do Nazareno. Desde aquele dia este sistema tem sido defendido por todos os teólogos Romanistas e aplicado por todos os príncipes cristãos. No tempo de Lutero e Calvino, era a convicção universal que esse sistema era a única verdade. Cada teólogo famoso da época, Melanchton para começar, aprovou a morte de Serveto pelo fogo; e o cadafalso que foi erigido pelos Luteranos em Leipzig para Krell, o calvinista radical, foi infinitamente mais repreensível quando visto de um ponto de vista protestante.

Calvinistas – mais Mártires do que Executores

Mas enquanto os calvinistas, na época da Reforma, produziram dezenas de milhares de vítimas, enviadas ao cadafalso e às fogueiras (as dos Luteranos e Católicos romanos nem valem a pena contar), a História tem sido culpada da grande e extensa injustiça de sempre lançar no rosto dos calvinistas esta única execução de Serveto no fogo, como um crimen nefandum. Apesar de tudo isto, não somente deploro aquela única estaca,mas incondicionalmente reprovo seu uso; todavia não como se fosse a expressão de uma característica especial do Calvinismo, pelo contrário, como o efeito secundário fatal de um sistema cinza como a época que o Calvinismo encontrou existindo, sobre o qual tinha amadurecido, e do qual não tinha ainda sido capaz de livrar-se inteiramente.

O Calvinismo Quebrou a Visão Monolítica da Igreja

Se desejo saber o que, a este respeito, deve seguir dos princípios específicos do Calvinismo, então a questão deve ser colocada completamente diferente. Então devemos ver e reconhecer que esse sistema de levar diferenças em questões religiosas para a jurisdição criminal do governo era o resultado direto da convicção de que a Igreja de Cristo sobre a terra deveria expressar-se somente em uma forma e como uma instituição. Na Idade Média, somente esta única Igreja era a Igreja de Cristo, e tudo que diferia dela era visto como hostil a esta única Igreja verdadeira. O governo, portanto, não era chamado para julgar, ou para examinar ou para decidir por si mesmo. Havia somente uma única Igreja de Cristo na terra, e era a tarefa do Magistrado proteger esta Igreja de cismas, heresias e seitas.

Não obstante, quebrar esta única Igreja em fragmentos, admitir que a Igreja de Cristo pode revelar-se em muitas formas, em diferentes países; mais ainda, até mesmo no próprio país, numa multiplicidade de instituições; e imediatamente tudo o que era deduzido desta unidade da igreja visível desaparece de vista. E portanto, se não pode ser negado que o próprio Calvinismo rompeu a unidade da Igreja, e que nos países calvinistas uma rica variedade de todos os tipos de formações eclesiásticas revelou-se, então segue-se que não devemos procurar a verdadeira característica calvinista no que, por um tempo, ele tinha retido do velho sistema, mas antes naquilo que, novo e fresco, tem nascido de sua própria raiz.

A Igreja Católica – Igreja do Estado em Muitos Países

Os resultados mostram que, mesmo depois do lapso de três séculos, em todos os países distintivamente Católicos romanos, mesmo nas repúblicas da América do Sul, a Igreja Católica Romana é e continua sendo o Igreja do Estado, do mesmo modo como fazem as Igrejas Luteranas nos países luteranos. E as igrejas livres têm prosperado exclusivamente naqueles países que foram tocados pelo sopro do Calvinismo, i.e., na Suíça, na Holanda, na Inglaterra, na Escócia, e nos Estados Unidos da América.

Nos países Católicos romanos é ainda sustentada a identificação da Igreja invisível com a visível, sob a unidade papal. Nos países Luteranos, com a ajuda da “curius regio eius religio”, a Confissão do Tribunal foi monstruosamente imposta sobre o povo como a confissão da terra; ali os reformados foram tratados asperamente, foram exilados e ultrajados como inimigos de Cristo. Na Holanda calvinista, ao contrário, todos aqueles que eram perseguidos por causa da religião encontraram um porto de refúgio. Ali, os judeus foram recebidos hospitaleiramente; ali os Luteranos foram honrados; ali os Menonitas prosperaram; e até mesmo aos Arminianos e Católicos romanos foi permitido o livre exercício de sua religião em casa e em igrejas separadas. Os Independentes, fugindo da Inglaterra, encontraram um lugar de repouso na Holanda calvinista; e deste mesmo país o Mayflower zarpou para transportar os pais peregrinos para sua nova terra natal.

A História Comprova que o Calvinismo Enfatiza Liberdade de Consciência

Portanto, não me baseio em subterfúgio, mas apelo para fatos históricos claros. E aqui, repito, a característica latente do Calvinismo deve ser vista, não no que adotou do passado, mas no que criou de novo. É notável que, neste aspecto, desde o começo nossos teólogos e juristas calvinistas defenderam a liberdade de consciência contra a Inquisição. Roma percebeu muito claramente como a liberdade de consciência afrouxaria os fundamentos da unidade da Igreja visível, e por isso opôs-se a ela. Mas por outro lado deve ser admitido que o Calvinismo, louvando em voz alta a liberdade de consciência, em princípio abandonou toda característica absoluta da Igreja visível.
  
Calvino – Contra a Perseguição por Causa da Fé

Assim, que no seio de um e do mesmo povo a consciência de uma metade testemunhou contra a outra metade, a brecha foi produzida e slogans não eram mais de nenhuma utilidade. Já em 1649 foi declarado que a perseguição por causa da fé, era – “Um homicídio espiritual, um assassinato da alma, uma violência contra o próprio Deus, o mais horrível dos pecados”. E é evidente que o próprio Calvino escreveu sob as premissas da conclusão correta, por seu reconhecimento de que contra os ateístas até mesmo os Católicos são nossos aliados; por seu aberto reconhecimento da Igreja Luterana; e ainda mais enfaticamente por sua pertinente declaração: “Scimus tres esse errorum gradus, et quibusdam fatemur dandam esse veniam, aliis modicam castigationem sufficere, ut tantum manifesta impietas capitali supplitio plectatur.” Isto quer dizer: Ali existe uma tríplice divergência da verdade cristã; insignificante, que seria melhor ser deixada sozinha; uma moderada, que deve ser restaurada por um castigo moderado; e somente a impiedade manifesta deve ser punida capitalmente. Admito que esta é uma decisão severa, mas, contudo, uma decisão na qual em princípio a unidade visível é descartada; e onde esta unidade é quebrada, ali a liberdade desponta naturalmente. Pois aqui encontra-se a solução do problema: Com Roma, o sistema de perseguição era o resultado da identificação da Igreja visível com a invisível, e Calvino afastou-se desta perigosa linha. Mas o que ele ainda continuou defendendo foi a identificação de sua Confissão sobre a Verdade com a Verdade absoluta em si, e apenas desejou experiência mais plena para compreender que esta proposição também, verdadeira como sempre deve permanecer em nossa convicção pessoal, nunca pode ser imposta pela força sobre outras pessoas.



Calvinismo e Política (3/4)



Autor: Abraham Kuyper
Trecho extraído do livro Calvinismo, pág 105-109. Editora: Cultura Cristã