2. A APLICAÇÃO DO DOM DE LÍNGUAS E SUA RELAÇÃO COM OS NÃO CRENTES (14.12-25)
Tendo tratado acerca do dom de línguas
relacionado aos crentes, Paulo, agora, discorre sobre o dom de línguas
relacionado aos não crentes. O apóstolo enfatiza a importância da mente para o
entendimento do que ocorre no culto público. Ele ensina que os atos “no Espírito”
envolvem o uso do intelecto (vs.12-17), e instrui os coríntios no uso das
línguas em face dos visitantes no culto (vs.20-25).
a) A
aplicação das línguas (vs.12-25)
Paulo aplica o princípio do entendimento
das línguas ao crente que as fala, aos
demais crentes da congregação e, por fim, aos não crentes. Vejamos, pois:
A parte a do versículo 12 é a
conclusão do versículo anterior. Tendo utilizado a ilustração de dois estrangeiros
que conversam entre si, porém ambos desconhecem o idioma um do outro, Paulo
conclui o versículo, dizendo: Assim
também vós. Era como se o apóstolo dissesse: “Isso também acontece entre
vocês quando há línguas não traduzidas no culto”.
Todavia, Paulo reconhece que os coríntios
desejavam ter os dons espirituais; e ele não os repreende por isso (12.31;
14.1,39). Antes, Paulo os corrige com relação ao modo pelo qual pensavam em obter os dons; os coríntios desejavam os
dons como se fosse uma expressão de espiritualidade superior. Assim, Paulo emprega a
edificação da igreja como o alvo da busca pelos dons espirituais. Era com esse
pensamento que os crentes deveriam exceder nos dons espirituais que fossem mais
adequados para isso.
No
versículo 13, ele instrui os crentes em como as línguas deveriam ser exercidas
no culto para que houvesse a edificação da igreja. Ele escreve que, se alguém
possui o dom de línguas, o tal deve orar
para que a possa interpretar. Como entender essa expressão? Aquele que falava em línguas
no culto não entendia o que estava dizendo. Se ele entendia, por que orar pela
interpretação? O objetivo de quem falava em línguas não era em si a auto edificação,
mas buscar com que os outros fossem edificados. Para isso, o falante deveria
orar para que pudesse traduzir as línguas.
A primeira vista, parece que Paulo está
ensinando que a mesma pessoa que fala em línguas também pode interpretá-las.
Porém, essa interpretação contradiz a regra estabelecida por Paulo com relação
ao entendimento das línguas no culto, ou seja, que uma pessoa falasse em línguas e outra
pessoa as traduzisse. Variedade de línguas e interpretação de línguas são dons
distintos conferidos a pessoas distintas nas duas listas de dons que Paulo
descreveu nesta carta (12.10,30).
Quando o apóstolo trata do uso
das línguas no culto, ele demonstra que uma pessoa falava em línguas e outra as
interpretava (vs.26-27). O sinal para que o falante em línguas deveria se calar
era a ausência do tradutor (vs.28). Portanto, a melhor
interpretação, seria entender que Paulo estava orientando aquele que falava em
línguas a orar para que Deus concedesse o dom de interpretação de línguas a
outro; assim, como resposta de oração, o que falava em línguas teria a sua
mensagem traduzida.
Para
confirmar a sua instrução, Paulo enumera alguns motivos utilizando como exemplo
a oração e o ato de louvar a Deus em línguas (vs.14-15). Senão vejamos:
1) Paulo escreve hipoteticamente como se
estivesse participando de um culto público. A sentença inicial do versículo 14
implica uma “condição” – Porque se eu
orar. Paulo não diz que ora em um idioma
estrangeiro no culto; pelo contrário, ele apenas afirma o que aconteceria se
orasse em uma língua desconhecida dos irmãos da igreja em Corinto: o seu
espírito estaria orando e recebendo a atuação direta do Espírito Santo, o que é
algo bom, porém não seria a forma adequada de exercer o dom, uma vez que a mente
estaria ausente para a compreensão intelectual do conteúdo da mensagem em
línguas.
Assim, não somente o falante
em línguas não entenderia a sua oração, mas também os demais irmãos na igreja.
Por isso Paulo escreve [utilizando ele mesmo como exemplo] que a mente daquele
que falava em línguas sem interpretação no culto ficaria infrutífera, e que ele, se estivesse participando de um culto,
preferia instruir os irmãos na própria língua do que o fazer em outra língua
que fosse desconhecida (vs.19).
Adiante, o apóstolo declara que deve haver um
equilíbrio no exercício do dom de línguas no culto público. A maneira adequada,
diz ele, seria orar com o espírito e utilizar a mente para a compreensão
(vs.15). Note que Paulo deixa claro que orar em línguas sem o uso da mente é
fazer mau uso do dom e, portanto, um erro que deve ser evitado (vs.16-17). “Espírito” [humano] e mentes
estão conectados, e ambos devem ser usados no exercício do dom de línguas para
que haja a edificação da igreja. Paulo
quer dizer que ele [e o que possuí o dom de falar em línguas estrangeiras] deve
orar numa língua conhecida por todos no culto para que haja o entendimento
mental.
Simon Kistemaker esclarece:
Como o espírito e a mente
funcionam? A mente humana, que tem a capacidade de pensar e entender, está
intimamente ligada ao espírito humano. Quando o Espírito Santo controla tanto o
espírito como a mente, uma pessoa geralmente viceja e prospera. Mas quando o
espírito humano não é governado pelo Espírito Santo, a mente permanece
espiritualmente ociosa e o resultado é a esterilidade. [...] É possível o
espírito e a mente funcionarem separadamente, mas Paulo dá a entender que o
espírito e a mente de uma pessoa precisam estar envolvidos igualmente para
serem produtivos. O espírito e a mente devem operar juntos no exercício da
oração para pronunciar palavras inteligíveis. Precisam edificar os membros da
igreja que ouvem essas palavras. Portanto, Paulo insiste que os coríntios orem
num idioma que seja conhecido por todos os que estão presentes no culto. Ele
diz aos coríntios que tanto o espírito como a mente devem orar com eficácia
para o benefício da igreja.12
Calvino escreve:
Se alguém era dotado com o dom
de línguas e falava de forma simples e inteligível, então seria estranho que
Paulo falasse de “o espírito ora, porém o entendimento fica infrutífero”, pois
o entendimento deve agir em sintonia com o espírito. [...] Portanto, se formulo
orações numa língua que não é conhecida, e o espírito [humano] me supre com
palavras, é evidente que o próprio espírito que regula minha língua, nesse caso
orará, minha mente, porém, ou estará vagando sem rumo ou, ao menos, não tomará
parte alguma na oração.13
Por
outro lado, o mesmo acontece com o louvor entoado a Deus em línguas (vs.15).
Paulo ressalta que ele [e outro que possua o dom de falar em línguas
estrangeiras] pode cantar em “espírito”, porém utilizando a mente como o meio
de entendimento do conteúdo do louvor. Todavia, reconhecendo a
prática equivocada do cantar em línguas
sem tradução, a qual é vigente em algumas em ramificações pentecostais e
neopentecostais, Carson observa corretamente que “não existe evidência de que
isso justifique uma total participação da congregação. Para começar, isso
violaria o princípio de Paulo de que nem todos têm o mesmo dom; e, além disso,
uma vez que isso também é uma forma de falar em línguas, a interpretação deve
ser exigida”.14
O segundo motivo que Paulo salienta para
corroborar suas orientações acerca do uso adequado das línguas no culto,
utilizando como exemplo a oração e o ato de louvar a Deus em línguas,
encontra-se no próximo subtópico:
ii.
O princípio do entendimento das línguas
aplicado aos demais crentes da congregação (vs.16-20)
2) No
versículo 16, Paulo afirma que, se alguém realizar uma oração a Deus em outro
idioma no culto público, o indouto
não poderá dizer amém, pois não compreende o que foi dito. Como Paulo tinha
mente um culto imaginário ao escrever o capítulo 14, temos, aqui, um diálogo
hipotético ou imaginário. O apóstolo supõe um diálogo
com um crente “espiritual” que tinha o hábito de orar em línguas durante o
culto sem preocupar-se com o indouto ao
seu lado. Sendo assim, quem seria esse indouto?15
Existem duas possibilidades acerca da identidade desta pessoa.
A primeira possibilidade é que o indouto seria um descrente que visita um
culto público da igreja. Esse indouto
é identificado como alguém que não é instruído na Palavra de Deus. Esta palavra
forma um par com a palavra incrédulo
no versículo 23, referindo-se a alguém que visita a igreja. Se o indouto for mesmo um “descrente” que participa de um culto público,
seria estranho ele dizer amém após
presenciar os demais crentes “adorando a Deus” através de orações de gratidão e
louvores. A segunda possibilidade é que o indouto
é alguém que não possui o dom de interpretação de línguas ou que desconhece
o idioma que está sendo falado. Em outras palavras, era um leigo, uma pessoa simples (NTLH), mas um crente.
A palavra indouto ιοιωτον (idiotes), no grego, significa “desinformado”;
“alguém que não é instruído”. Portanto, acredito que a segunda possibilidade é
a melhor interpretação; ou seja, o indouto
é um crente simples que não possuía o dom de interpretar línguas humanas ou
que desconhecia o idioma que era falado no culto (vs.23-24). Era um “indagador” cuja posição estava
entre o descrente e o crente mais informado.16 O
cerne desse problema não é a incapacidade do indouto para entender as verdades da fé cristã, mas a incapacidade
de entender o idioma falado no culto sem a tradução.
Prosseguindo o seu argumento, Paulo faz
uma pergunta hipotética ou imaginária ao que fala em línguas no culto
público: E, se tu bendisseres apenas em
espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? O indouto ou a pessoa como
menos instrução não poderá dizer amém17 às ações de graças daquele que fala em
línguas estrangeiras, visto que o tal não compreende o que está sendo dito. Acerca
do significado da palavra amém,
Augustus Nicodemus Lopes escreve:
O povo de Deus no período do
Antigo Testamento, por vezes, expressava seu assentimento à Lei e seu desejo de
submeter-se a ela dizendo “amém” após a sua leitura (Dt 27.15; Ne 5.13). Às
vezes, diziam “amém” em aquiescência à oração de outros (1 Rs 1.36) ou em ação
de graças (1 Cr 16.36; veja SI 106.48). As igrejas cristãs primitivas seguiram
o exemplo de Israel em associar-se audivelmente com as orações e ações de graça
em seu favor. O artigo definido antes de “amém” (o amém) em 1 Coríntios 14.16
mostra que essa era a prática comum.18
No entanto, se a oração era realizada
em outro idioma, os menos informados não poderiam dizer amém. No versículo 17
temos uma repreensão. Paulo não tece uma crítica ao ato de gratidão que o
falante em línguas presta a Deus em oração, pois é algo bom; antes, ele critica
a forma que a oração é realizada – em
línguas. O apóstolo censura aquele que
ora em línguas pela desconsideração para com os desinformados, os quais não
recebem nenhum benefício espiritual porque não entendem o idioma falado.
Concluindo as razões que confirmam suas
orientações sobre o uso adequado do dom de línguas no culto público, Paulo
escreve no versículo 18: Dou graças a
Deus, porque falo em outras línguas mais do que vós. Praticamente não sabemos
de nenhuma situação em que Paulo falou em línguas estrangeiras. Não há nenhum registro
no livro de Atos e nas cartas de Paulo que denote que ele falou em vários
idiomas em diferentes lugares. É somente por meio dessa
revelação pessoal, feita com o objetivo de reforçar seu argumento contra o uso
das línguas não interpretadas na igreja, que sabemos que o apóstolo também
falava em línguas. Falar em línguas fez parte da experiência dos demais
apóstolos pelo menos uma vez, no Pentecostes (At 2.4), e, provavelmente, fazia
parte do equipamento sobrenatural mencionado por Paulo em 2 Coríntios 12.12 que
visava autenticar o ministério apostólico.19
Apesar de falar mais idiomas humanos que os coríntios
pelo poder do Espírito Santo, percebemos, com esta afirmação, que Paulo se
mostrava bastante reservado com relação ao uso deste dom. A repreensão contra a prática
inadequada das línguas no culto não era porque Paulo não tinha a experiência
pessoal de falar em línguas; pelo contrário, ele falava mais línguas
estrangeiras que os demais crentes em Corinto. Aparentemente, este dom não
consistia apenas na habilidade de falar uma mesma língua pelo poder
sobrenatural Espírito Santo, mas várias línguas.20
Por
vezes, os pentecostais e neopentecostais costumam argumentar que se os crentes
tradicionais, opositores do hábito de falar em línguas “estranhas”,
experimentassem este dom, indubitavelmente mudariam de opinião. Entretanto,
vimos que Paulo falava vários idiomas humanos e mesmo assim era reservado
quanto ao uso que os coríntios faziam desse dom nos cultos.
Em
seguida, no versículo 19, Paulo acentua que, mesmo que fosse capaz de falar
milhares de palavras em idiomas estrangeiros, ainda assim preferia falar na
igreja poucas palavras na própria língua para que houvesse o entendimento da
mensagem e a igreja fosse edificada. A preferência do apóstolo em
instruir a igreja numa língua conhecida por todos não deveria ser observada
pelos pentecostais e neopentecostais? Eles não deveriam refrear o uso
inadequado que fazem das “supostas línguas” nos cultos? Ou eles não desobedecem
as regras estabelecidas por Paulo nos versículos 27-28? Claro que sim! Não
somente dois ou três falam em línguas no culto, mas vários, ao mesmo tempo e
sem tradução.
Não obstante, para corroborar a prática
da “oração em línguas” no âmbito privado, os pentecostais e neopentecostais
utilizam os versículos 18-19. Segundo eles, Paulo tinha o hábito de orar
em línguas em secreto. D.A. Carson afirma:
Não há defesa mais firme para
o uso privado do falar em línguas do que essa [passagem demonstra], e
tentativas de evitar essa conclusão se tornam marcantemente insignificantes sob
exame. [...] Não adianta supor que Paulo está aconselhando o uso privado e
silencioso de línguas durante um culto, enquanto outro ministra. [...] Já vimos
que Paulo vê a oração com o espírito como uma forma válida de oração e
adoração; o que ele não permitirá é a não inteligibilidade na igreja. A única
conclusão possível é que Paulo exercia seu impressionante dom de línguas em
particular.21
Carson tenta extrair dos versículos 18-19 o
que Paulo não disse, ou pelo menos não deixou claro em nenhuma de suas cartas.
Ele não especificou quando ou onde falou em diferentes línguas humanas. Alegar
que Paulo tinha e ensinou o hábito da “oração em línguas em particular” é uma
especulação pífia. Conforme assegura John MacArthur:
Em 1
Coríntios 14, Paulo certamente não fez uma apologia ao uso privado e egoísta do
dom de línguas. Ao contrário, ele confrontava o orgulho da congregação de
Corinto. Eles achavam que eram superiores porque alguns deles falavam em
dialetos que eles não conheciam; mas Paulo, que tinha milagrosamente falado em
línguas estrangeiras mais do que qualquer um deles, queria que entendessem que
o amor superava qualquer dom, não importava o quão espetacular ele fosse.
Quando Paulo exercia seus dons dentro do corpo de Cristo, sua prioridade sempre
era a edificação de outras pessoas na igreja. Qualquer noção do uso
autocentrado de um dom teria prejudicado todo o argumento do apóstolo em 1
Coríntios 12-14.22
iii. O
princípio do entendimento das línguas aplicado aos não crentes
(vs.21-25)
Quando Paulo estivesse na igreja para
ensinar, preferia falar palavras inteligíveis a falar em um idioma desconhecido
por todos. Sendo assim, onde o dom de línguas se encontra no plano de Deus? Anteriormente,
Paulo havia exortado severamente os coríntios, dizendo que não podia trata-los
como crentes maduros ou espirituais, pois ainda eram meninos na fé, imaturos e
carnais, e praticavam os pecados dos descrentes (3.1-4). Os
termos meninos ou crianças são usados de modo figurado nas
Escrituras para expressar a deficiência que alguns crentes possuem quanto ao
entendimento espiritual das coisas de Deus.
Enfatiza
um estado de ignorância ou de confusão intelectual das doutrinas da fé cristã
em oposição ao entendimento e a sabedoria (Mt 11.16-17; Ef 4.14; Hb 5.11-14). Assim,
os coríntios possuíam um entendimento deficiente e confuso acerca das línguas.
A paixão que demonstravam por este dom confirmava isso. Eles deveriam ser
crianças na maldade e adultos no entendimento (vs.20). John MacArthur escreve:
Com relação ao mal, os
coríntios eram qualquer coisa menos meninos. Eles estavam altamente avançados
em todo tipo de pecado. Eles tiveram praticamente todas as manifestações da
carne e quase nenhuma do fruto do Espírito (Gl 5.19-23). Eles eram meninos
agitados de um lado para o outro e levados ao redor por todo vento de doutrina
(Ef 4.14). Pelo seu desejo egoísta de se auto edificarem, abusaram do dom de
línguas e estavam, entre outras coisas, ignorando o resto da família de Deus.23
Senão vejamos a maneira em que as línguas
são aplicadas aos descrentes:
b) A
função e o propósito das línguas (vs.21-22)
Nesta perícope, que abarca os versículos
21-22, Paulo esboça a questão das línguas na história do relacionamento entre
Deus e o seu povo. Ele cita no versículo 21 Isaías 28.11-12, dizendo que “as
línguas faladas por povos estrangeiros funcionavam em determinados contextos
como sinal do juízo de Deus sobre a nação de Israel (Is 14.21)”.24 Augustus
Nicodemus Lopes observa:
Isaías estava simplesmente
aplicando ao povo rebelde de seus dias as ameaças que Moisés havia feito, em
caso de desobediência. Entre as maldições que Deus havia determinado contra seu
povo, quando o rejeitasse, estava a invasão por povos estrangeiros (veja Dt
28.49,50). Os profetas que vieram depois de Moisés ocasionalmente mencionaram o
idioma desconhecido das nações que Deus usou para punir Israel como sinal do
juízo divino (Jr 5.15).
Isaías disse a mesma coisa:
Deus haveria de falar em juízo e julgamento aos israelitas rebeldes por
intermédio de um povo que levantaria para invadir e desterrar os judeus de
Canaã, povo esse cuja língua Israel não conhecia (Is 28.11,12). Historicamente,
essas ameaças proféticas se concretizaram quando os assírios e babilônicos
invadiram e desterraram os judeus cerca de 600 anos antes de Cristo. Os gritos
de guerra dos soldados invasores num idioma desconhecido para os judeus deveria
tê-los feito lembrar da maldição.25
Roy Ciampa e Brian Rosner salientam:
A interpretação paulina desse
texto mostra que Deus não conseguiu fazer com que seu povo lhe respondesse, nem
mesmo tendo lhes falado de uma forma que chamava tanta atenção. Paulo entende
que os judeus incrédulos de sua época ainda são culpados diante de Deus e
precisam de redenção. Isso mostra que, na opinião dele, nem mesmo o exílio
trouxe a nação de Israel de volta para Deus (cf. Rm 3.9-20; 9.2-8,27-33;
10.1-3; Gl 3.10-13; 4.4,5,25; 1Ts 2.14-16).26
Contudo,
Paulo reporta-se ao Antigo Testamento para ensinar aos coríntios que as línguas
estrangeiras tinham a função e o propósito de demonstrar o juízo de Deus sobre
os judeus incrédulos dentre o seu povo (vs.21-22). Os israelitas incrédulos que
estavam reunidos na festa do pentecostes ouviram os apóstolos falarem em
diversas línguas estrangeiras. Eles deveriam ter entendido
que, em breve, Deus enviaria o seu juízo sobre eles. A manifestação deste juízo
aconteceu poucos anos depois, quando Jerusalém foi invadida e assolada pelo
exército do general romano Tito, no ano 70. Este julgamento foi um dos
aspectos de um julgamento mais abrangente, que incluía, além disso, a
destruição do templo, da cidade e a dispersão dos judeus para outros lugares do
mundo. Estes últimos aspectos do julgamento de Deus sobre o Israel incrédulo
são similares aos castigos prometidos em Deuteronômio 28.49-50.
Diante
de tudo, entendemos que as línguas foram concedidas por Deus primariamente como
um sinal de juízo para os incrédulos. O objetivo deste dom era que ele fosse um
sinal para os judeus, conforme a profecia de Isaías. Se observarmos atentamente
o livro de Atos, perceberemos que todas às vezes em que ocorreu a manifestação
das línguas, os judeus estavam presentes (veja At 2.4-6; 8.14-18; 10.45-46; 19.6). Portanto, os coríntios, os
pentecostais e os neopentecostais não deveriam ignorar esse aspecto das línguas
estrangeiras, mas terem outra atitude para com este dom; deveriam ser
cautelosos e não agirem como “crianças desprovidas de juízo” que ficam
excitadas com um brinquedo! A profecia, em contrapartida, foi concedida por
Deus com um duplo propósito: a edificação
coletiva dos crentes como igreja (vs.3,22b), e alcançar os incrédulos
através da exortação e consolação, para levá-los ao arrependimento de
seus pecados e adorar a Deus (vs.3,24-25).
Todavia, a função e o propósito das línguas
não era somente demonstrar o juízo de Deus; existia ainda outro fator que deve
ser observado. No plano histórico da salvação executada por Cristo Jesus, e,
por conseguinte, no contexto da igreja do primeiro século, as línguas tiveram
um papel crucial. Primeiro, as línguas serviram
para mostrar que uma transição estava ocorrendo, ou seja, a mudança da antiga
para a nova aliança (vs.21-22; veja At 2.5-21), e que o evangelho seria
divulgado em todo o mundo (At 1.8). Segundo, Paulo considera as línguas como um
dom que é útil para a edificação da igreja, desde que sejam exercidas no culto
público e acompanhadas pela tradução (vs.27-28). Porém, quando as línguas eram
usadas fora do culto público, denotava um sinal que autenticava o evangelho,
como foi no pentecostes. Embora Deus tenha usada a profecia para revelar o
evangelho à sua igreja, o dom de línguas foi uma adição de um milagre
linguístico impactante para corroborar a profecia e aqueles que anunciavam o
evangelho como enviados de Deus.
Pessoalmente, acredito que as línguas foram
concedidas e restritas ao período apostólico. Depois de cumprir o seu propósito
na história da igreja, com a expansão do evangelho no mundo, e a conclusão do
cânon das Escrituras, as línguas não foram mais necessárias e, portanto,
cessaram. Mas as línguas não ressurgiram
com o movimento pentecostal, no final do século 19? E o fenômeno das línguas modernas? É
verdadeiro ou falso? Tratarei dessas questões mais adiante.
c) O efeito das línguas usado de forma
equivocada (vs.23)
Paulo, agora, descreve o resultado que as
línguas produzem quando não são usadas conforme o padrão estabelecido nos
versículos 27-28. O apóstolo imagina toda a igreja reunida para um culto
público. De repente, muitos ou todos [ênfase
de Paulo] os crentes começam a falar em línguas em frenesi, e, assim, o culto é dominado pela histeria e por manifestações corporais espetaculares. Comportamentos
similares podem ser vistos nos populares “terreiros de macumba”, no pentecostalismo
e no neopentecostalismo. Exatamente no momento de “agitação espiritual”, Paulo
supõe que pessoas não instruídas ou incrédulas entrassem no culto, talvez
movidas pela curiosidade. Ao
se deparar com a cena, a reação dos indoutos
ou não instruídos [pessoas que não conhecessem
outras línguas; ou talvez pessoas que não tivessem o dom de interpretação] e
dos incrédulos [pessoas não crentes
que nada sabem acerca do evangelho], seria imaginar que todos os que falavam em
línguas desconhecidas de forma eufórica e irracional estariam loucos.
O verbo grego usado aqui para enlouquecer é empregado na Odisséia de
Homero para descrever o estado de frenesi ou delírio dos adoradores de Dionísio
ou Baco, o deus do vinho, durante os cultos orgiásticos celebrados em sua honra,
quando esses adoradores começavam a dar gritos de louvor a Baco em palavras ou
frases sem sentido ou nexo. Nos Escritos Herméticos, a palavra “loucos”
é usada para descrever a impressão que os iniciados, cheios da gnose, deixavam
nos estranhos.27
Para os demais moradores da cidade de
Corinto, o comportamento exaltado e desprovido de domínio próprio (Gl 5.23) destes crentes poderia se assemelhar ao
comportamento dos seguidores das religiões pagãs gregas de mistério. É bem
provável que Paulo quisesse evitar essa associação entre a igreja de Cristo e
os cultos pagãos ao escrever este trecho. Concordo
com Augustus Nicodemus Lopes, que afirma que o espetáculo de uma
igreja reunida com todos falando línguas ao mesmo tempo funcionaria como uma barreira
à conversão dos visitantes. Por outro lado, se a Palavra de Deus estivesse
sendo anunciada e explicada pelos profetas, ela penetraria como uma espada
afiada nos seus corações e consciências, produzindo convicção de pecado e
levando-os, humilhados, diante do trono da graça de Deus e dando-lhes
consciência de que Deus estava realmente presente entre eles (vs.24-25). As
línguas não poderiam produzir essa impressão. Mas a exposição da Palavra de
Deus, sim.28
Os
versículos 23-25 demonstram a preocupação evangelística de Paulo em não fazer com
que o culto a Deus pareça loucura aos menos instruídos e aos descrentes. Talvez
os coríntios considerassem as línguas como um sinal do poder de Deus se
manifestando no culto. Infelizmente, muitos [não todos] pentecostais e
neopentecostais têm este mesmo pensamento equivocado.
Entretanto, Paulo não ensina um
tipo de espiritualidade que ignora a razão e o bom senso. A impressão que os
coríntios passariam aos visitantes é de que eram loucos. Esta é exatamente a
imagem que muitos [não todos] pentecostais e neopentecostais refletem para
os visitantes de seus cultos.
Se os pentecostais e
neopentecostais querem demonstrar que Deus está presente no culto deles e se
agrada do que estão fazendo, que preguem a Palavra de Deus fielmente! É o
evangelho que levará os descrentes a se renderem a Deus e admitirem que Deus está presente no culto (vs.25), e
não “supostas línguas” não traduzidas.
NOTAS:
12. Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 682.
13. Calvino.
1 Coríntios, pág 423-424.
14. D. A. Carson.
A manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios
12-14, pág 106-107.
15. Além da
Escritura, a palavra indouto era usada para referir-se ao que não era membro
das religiões pagãs, mas que participava esporadicamente de seus cultos.
16. Simon
Kistemaker ressalta que assim como as sinagogas tinham os tementes a Deus, cujo
status estava entre os não-crentes e os prosélitos, assim também em sua
extensão evangelística a Igreja primitiva tinha discípulos ou “inquiridores” (1
Coríntios, pág 685).
17. Na conclusão
de uma oração numa sinagoga era costume o auditório pronunciar um amém
responsivo – um termo hebraico que significa “Assim seja!” – como sinal de
aprovação sincera àquilo que era dito. Esse costume continuou no culto da
Igreja primitiva, como é evidente nos escritos de Paulo e nos dos Pais da
Igreja. Os membros da igreja vocalizavam seu consentimento à oração que um
deles pronunciava. Se não entendiam uma oração expressa numa língua que lhes
era desconhecida, não poderiam dizer amém (Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág
685).
18. Augustus
Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 210.
19. Ibid, pág
212.
20. Não é
possível sabermos com exatidão como Paulo sabia que falava mais idiomas que os
crentes de Corinto, uma vez que aquele que falava em línguas não compreendia o
que estava dizendo. Esta era a prática normal deste dom; por isso necessitava
de um tradutor. Por outro lado, é bem provável que quando evangelizava em
lugares que Jesus não era conhecido, o Espírito Santo concedia
sobrenaturalmente o dom de línguas a Paulo para que falasse no idioma ou
dialeto do povo. O mesmo ocorria com os demais apóstolos que falaram em idiomas
que desconheciam no pentecostes.
21. D. A. Carson.
A manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios
12-14, pág 107-108.
22. John
MacArthur. Fogo Estranho, pág 172.
23. John MacArthur. 1 Corínthians.
24. Augustus Nicodemus Lopes. O
culto espiritual, pág 215.
25. Ibid, pág
215-216.
26. Roy E. Ciampa
e Brian S. Rosner, em o Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo
Testamento, pág 923.
27. Walter Bauer, F. Wilbur Gingrich e Frederick W.
Danker. A Greek English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian
Literature.
28. Augustus Nicodemus Lopes. O
culto espiritual, pág 218.
Autor: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21