5 de janeiro de 2016

A predestinação e a providência de Deus


Consideremos agora o seguinte: tendo-se em vista de que a Aliança da Vida não é pregada igualmente a todos, e também onde é pregada não é recebida igualmente por todos, vê-se nessa diversidade um admirável mistério do juízo de Deus. Não há dúvida nenhuma que essa variedade atende ao seu beneplácito, agrada ao seu querer. Pois bem, como é evidente que isso é feito pela vontade de Deus - que a salvação oferecida a uns e os outros são deixados de lado - daí decorrem grandes e altas questões, as quais só se resolvem ensinando aos crentes o que eles podem compreender da eleição e da predestinação de Deus.

1. Divisão da matéria 

Esta matéria compõe-se de duas partes. Primeiramente, devemos resolver a questão sobre o motivo pelo qual uns são predestinados para salvação e outros para condenação. Depois é preciso demonstrar como o mundo é governado pela providência de Deus, visto que tudo o que se faz depende de sua ordenação e do seu comando.

Antes, porém, de tratar desse argumento, devo fazer um estudo preliminar sobre duas classes de pessoas. Porque, além de o presente tema ser em si mesmo um tanto obscuro, a curiosidade dos homens o torna complexo e complicado, e mesmo perigoso. Por quê? Porque o entendimento humano não pode refrear-se e conter-se, mas sempre tende a desgarrar-se, metendo-se em grandes desvios e rodeios, e a subir alto demais em suas pretensões. Seu desejo é, se possível, não deixar nenhum segredo de Deus sem a sua investigação minuciosa. Pois vemos muitos caírem nessa audácia e nessa presunção. Além disso, muitos há que não são maus, mas que carecem da nossa admoestação no sentido de dominarem e se controlarem nessa área.

Em primeiro lugar, então, quando os homens quiserem fazer pesquisas sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intromete com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que esse penetre a sua infinidade eterna. Pois ele quer que a sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que ele achou bom comunicar-nos, ele nos testificou em sua Palavra. Ora, ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso.

Se alguma vez nos ocorreu ou nos ocorrer este pensamento: que a Palavra de Deus é o único caminho que nos leva a inquirir tudo quanto nos é lícito conhecer sobre ele; e mais, que ela é a única luz que nos ilumina para contemplarmos tudo quanto nos é lícito ver – ela nos poderá manter afastados de toda atitude temerária. Porque saberemos que, saindo dos limites próprios, caminharemos fora do caminho e vagaremos na escuridão total. E assim só poderemos errar, tropeçar e nos ferir a cada passo. Tenhamos, pois, em mente que será uma loucura querer conhecer todas as coisas relacionadas com a predestinação, exceto o que nos é dado na Palavra de Deus. Estejam igualmente apercebidos de que, se alguém quiser caminhar por entre rochas inacessíveis, irá mergulhar nas trevas.

2. Certa ignorância é mais douta que o saber

E não nos envergonhemos por ignorar algo deste assunto, no qual há certa ignorância mais douta que o saber. Melhor faremos em dispor-nos a abster-nos de um conhecimento cuja exibição é estulta e perigosa, e até perniciosa. Se a curiosidade da nossa mente nos solicitar que investiguemos tudo, sempre temos em mãos esta sentença para rebater essa pretensão: Quem esquadrinhar a majestade de Deus será oprimido por sua glória (Pv 25.2). Muito bom será que nos desenterremos dessa audácia, pois vemos que ela não pode nos fazer outra coisa senão precipitar-nos na desgraça.

3. O outro extremo: Omissão negligente 

Por outro lado, há outros que, desejando remediar esse mal, esforçam-se para fazer com a lembrança da predestinação seja enterrada; quando menos, eles nos advertem de que tomam cuidado para não inquirir nada a respeito dela, considerando-a uma coisa perigosa. Embora seja louvável a modéstia de querermos abordar os mistérios de Deus com grande sobriedade, descer tão baixo nisso não dá bom resultado para os espíritos humanos, porque estes não se deixam domar tão facilmente.

4. O equilíbrio da Escritura

Por isso, para que tenhamos aqui bom equilíbrio, devemos examinar a Palavra de Deus, na qual temos excelente regra para o entendimento firme e correto. Porquanto, a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, assim como nada que seja útil e salutar conhecer é omitido, assim também não há nada que nela seja ensinado que não seja válido e proveitoso saber.

Portanto, devemos ter o cuidado de não impedir os crentes de procurarem saber o que há a escritura sobre predestinação, para não parecer que desejamos fraudá-los negando-lhes o bem que Deus lhes comunicou, ou que pretendemos discutir com o Espírito Santo, como se ele tivesse divulgado coisas que faria bem suprimir.

Permitamos, pois, que o cristão abra os ouvidos e o entendimento para toda doutrina dirigida a ele por Deus. Isso com a condição de que ele sempre mantenha equilíbrio, esta moderação: quando vir fechada a santa boca de Deus feche também o caminho da inquirição. Eis um bom marco memorial da sobriedade: se em nossa aprendizagem ou em nosso ensino seguirmos a Deus, tenhamo-lo sempre adiante de nós. Contrariamente, se ele parar de ensinar, paremos de tentar ouvir e a entender. Então, o perigo que a boa gente que citei não é tão importante que deva levar-nos a deixar de prestar atenção em Deus, em tudo que ele diz. Reconheço que os homens maus e blasfemos depressa encontram na doutrina da predestinação coisa para acusar, torcer, remoer e zombar. Mas, se cedermos à sua petulância, eles darão fim aos artigos de nossa fé, dos quais não deixaram um só que não fique contaminado por suas blasfêmias. Um espírito rebelde se porá a campo e, tanto ousará negar que numa só essência de Deus há três Pessoas, como também que, quando Deus criou o homem, previu o que lhe aconteceria no futuro. Semelhantemente, esses maus elementos não se absterão de rir quando lhes for dito que não faz muito mais que cinco mil anos que o mundo foi criado. Porque vão querer que lhes expliquemos como é que Deus ficou ocioso por tão longo tempo. Para reprimir tais sacrilégios, devemos deixar de falar da divindade de Cristo e do Espírito Santo? Devemos calar-nos sobre a criação do mundo?

Antes, muito ao contrário, a verdade de Deus é tão poderosa, tanto nesta questão como em tudo mais, que não teme maledicência dos ímpios. O que Agostinho confirma muito bem em sua pequena obra intitulada “Sobre o Benefício da Perseverança” (Du bien de persévérance). Porque vemos que os falsos apóstolos, ridicularizando e difamando a doutrina do próprio apóstolo Paulo, nada mais puderam fazer do que se tornarem objeto de vergonha.

5. Velhas objeções  

Há alguns que consideram esta discussão perigosa, mesmo quando mantida entre os crentes. Dizem eles que a doutrina da predestinação é contrária às exortações, abala a fé, perturba os corações e os abate. Mas essa alegação é fútil. Agostinho não dissimula o fato de que era criticado pelas razões acima citadas, pois ele pregava livre e abertamente a predestinação. Mas, com facilidade os refutou suficientemente. Quanto a nós, visto que fazem objeções com diversos absurdos contra a doutrina que apresentamos, melhor será deixar para resolver, mais adiante, uma por vez. Por ora, desejo conseguir que todos os homens, em geral, se juntem a nós neste propósito: que não procuremos as coisas que Deus quis manter ocultas e que não negligenciemos as que ele tornou manifestas. Isso para que, por um lado, não sejamos acusados de curiosidade exagerada, ou, por outro, de ingratidão. Neste sentido, esta sentença de Agostinho é muito boa: “ Podemos seguir com segurança a Escritura, a qual condescende com nossa pequenez, como a mãe condescende com a pequenez de seu bebê, quando quer ensiná-lo a andar”.

6. Definições de termos 

Os antigos explicavam diferentemente os vocábulos presciência, predestinação, eleição e providência. Nós, deixando de lado toda discussão supérflua, seguimos simplesmente a propriedade dos termos. Quando atribuímos presciência a Deus, queremos dizer que todas as coisas estiveram  e continuam estando sob os seus olhos, de modo que para seu conhecimento não há nada que seja futuro ou passado. Todas as coisas lhe são presentes, e de tal modo que ele não as imagina como que mediante algumas espécies ou categorias, como acontece com as coisas que temos na memória e que, lembrando-as, vêm diante dos nossos olhos pela imaginação, mas as vê e as observa real e verdadeiramente, como estando diante do seu rosto. Dizemos que esse pré-conhecimento abrange toda área do universo e todas as criaturas.

Denominamos predestinação o conselho eterno de Deus pelo qual ele determinou o que desejava fazer com cada ser humano. Porque ele não criou todos em igual condição, mas ordenou uns para vida eterna e os demais para condenação eterna. Assim conforme a finalidade para qual o homem foi criado, dizemos que foi predestinado para vida ou para a morte.

O uso conseguiu impor que se chame providência à ordem que Deus segue no governo do mundo e na direção e condução de todas as coisas.

7. A doutrina da Predestinação  

Em primeiro lugar, trataremos da predestinação. Conforme o que a escritura mostra claramente, dizemos que o Senhor constituiu uma vez por todas, em seu conselho eterno e imutável, aqueles que ele quis tomar para a salvação, e aqueles que ele quis deixar em abandono. Quando aos que ele chama para a salvação, dizemos: que ele recebe por sua misericórdia gratuita, sem levar em conta a dignidade deles; que, ao contrário, o acesso à vida é vedado a todos aqueles que ele quis deixar entregues à condenação; e que isso é realizado por seu juízo oculto e incompreensível, conquanto justo e imparcial. Ensinamos, ademais, que a vocação dos eleitos é como uma demonstração e um testemunho da sua eleição. Semelhantemente dizemos que a justificação deles é outro símbolo e sinal dela, até quando eles chegarem a glória, na qual se dará o seu cumprimento e a sua consumação.

Pois bem, assim como o Senhor assinala aqueles que ele escolheu chamando-os e justificando-os, assim também, ao contrário, privando os réprobos do conhecimento de sua Palavra, ou da santificação realizada pelo seu Espírito, ele demonstra por tal sinal qual será o fim dele, e que julgamento está preparado para eles. Deixo de lado, nesta altura, muitas fantasias forjadas por numerosos tolos, na tentativa de derrubar a predestinação. Vou restringir-me unicamente a considerar os argumentos deles que têm lugar entre pessoas dotadas de saber, ou que poderiam gerar escrúpulos entre os simples, ou, ainda, que têm alguma aparência de verdade, podendo fazer crer que Deus não é justo, se assim o considerarmos.

O que ensinamos sobre a eleição gratuita dos crentes não é dito sem dificuldade. Porque em geral se considera que o Senhor distingue entre os homens segundo prevê os méritos de cada um deles. Assim sendo, ele adota e introduz no número de seus filhos aqueles cuja natureza ele prevê que deve ser tal que eles são indignos de sua graça. Ao contrário, dizem tais mestres, Deus deixa na perdição aqueles que ele sabe que devem ser inclinados  à maldade  ou à impiedade. E essa opinião, comumente aceita nesses termos, não pertence somente à gente comum do povo; em todos os tempos, ela tem tido a seu favor grandes escritores. O que eu declaro francamente, a fim de que não se pense que isso prejudicará muito a nossa causa, se acontecer contra nós.

Porque a verdade de Deus é tão clara neste campo que não poderá ser obscurecida; é tão certa e firme que não poderá ser abalada por nenhuma autoridade dos homens, Certamente o apóstolo Paulo, ao nos ensinar que “fomos eleitos em Cristo antes da fundação do mundo”, elimina toda e qualquer consideração por nossa dignidade ou merecimento. É como se dissesse: visto que na semente universal de Adão, o Pai celestial não encontrou nada que fosse digno de sua eleição, dirigiu o olhar para seu Cristo, a fim de eleger, como membros do seu corpo, aqueles que ele quis admitir vida. Fique, pois, definido e estabelecido este argumento entre os crentes: que Deus nos adotou em Cristo para sermos seus herdeiros, porque em nós mesmos não tínhamos capacidade para alcançar tão excelente posição. Isso o apóstolo registra igualmente bem noutro lugar, quando exorta os colossenses a darem graças a Deus por havê-los feito idôneos para participarem da herança dos santos.  Se a eleição de Deus precede a essa graça pela qual ele nos torna idôneos para obtermos a glória da vida futura, que encontrará ele em que nós que o mova a eleger-nos?

O que pretendo mostrar ficará mais bem expresso por  esta outra  sentença: Deus nos escolheu, diz ele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. Paulo coloca o beneplácito de Deus em oposição a todos os méritos que se possa mencionar, porque, onde quer que reine o beneplácito de Deus, nenhuma obra entra em consideração. É certo que ele não trata disso nessa passagem, mas devemos entender  essa comparação nos termos em que ele a explica noutro lugar, quando diz:  Deus nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos. As palavras que na passagem de Efésios ele acrescenta: para sermos santos e irrepreensíveis, não nos livram totalmente da inquietação. Sim, pois, se dissermos que Deus escolheu porque previu que seríamos santos, estamos invertendo a ordem seguida pelo apóstolo Paulo.




Autor: João Calvino
Trecho extraído das Institutas, volume 3, pág 37-43.