11 de janeiro de 2016

A ideia Cristã do Estado (1/2)



Tendo apresentado aos nossos leitores o conceito calvinista de biocosmovisão, elaborado pela tradição neocalvinista holandesa, iniciaremos, desta vez, uma série de duas publicações de textos do professor, teólogo e filósofo calvinista Herman Dooyeweerd.  O presente artigo é resultado de uma palestra proferida no dia da Juventude anti revolucionária, em 3 de outubro de 1936. A palestra está publicada no livro Estado e Soberania, Ensaios Sobre Cristianismo e Política

Indubitavelmente, os argumentos apresentados por Herman Dooyeweerd ao longo do artigo surgem como uma poderosa arma não só contra o reducionismo gnóstico que restringe o cristianismo a esfera da vida privada, mas também contra a ideia nociva do Estado total defendida pelos ideólogos e pensadores de esquerda que, infelizmente, ganhou vida nos últimos anos na América Latina e no Brasil.    

A IDEIA CRISTÃ DO ESTADO

Falar da ideia cristã do Estado diante da atual disparidade de pensamento entre os próprios cristãos pode parecer uma meta ousada. Talvez tenha sido possível durante a Idade Média sob a supremacia da Igreja Católica Romana, mas, com certeza, as incontáveis divisões dentro da igreja e a diversidade de grupos políticos cristãos hoje fazem parecer um tanto presunçoso, se não impossível, conjecturar em termos gerais acerca da ideia cristã do Estado.

EMIL BRUNNER REJEITA A IDEIA CRISTÃ DO ESTADO

Mesmo os próprios protestantes consideram – e sempre consideraram – a ideia de um Estado cristão uma falácia católica romana. Emil Brunner, uma das principais personalidades da teologia suíça fundada por Barth, fez a seguinte declaração enfática em seu conhecido livro Das Gebot und die Ordnungen (1932): "O Estado cristão nunca existiu, nem existirá". De acordo com ele, foi exatamente um dos conceitos fundamentais da Reforma o fato de o Estado, instituído por causa da Queda, não pertencer ao “Reino de Cristo”, mas sim as ordenanças naturais, seculares. Ele alega que um Estado cristão é tão impossível quanto uma cultura cristã, uma educação cristã, uma economia, uma arte ou mesmo uma ação social cristã. Brunner pensa que toda vida no mundo temporal, permeada como está pelo pecado, pertence ao domínio da natureza. Aqui, “ordenanças mundanas” são válidas. Trata-se da  área da lei como uma regra destituída de amor, da qual os cristãos foram libertos de sua vivência interior de graça. Assim, passam a poder agir segundo o mandamento de Cristo de amar conforme o momento. “Natureza” (a área da vida ordinária temporal, sujeita a ordenanças inflexíveis) e “graça” (a área da fé pertencente ao reino supratemporal de Deus, sujeita ao mandamento do amor que, no cristão, rompeu com a lei e a colocou de lado, como algo não mais concebido, como uma regra universalmente válida) são para Brunner inevitavelmente separadas. A Igreja Católica Romana, ele argumenta, errou ao propagar a ideia de uma “vida cristã ordinária”. De acordo com ele, tal abordagem só se torna possível se uma hierarquia eclesiástica temporal for aceita como governante tanto do Estado como de outras relações sociais – um tipo de governo que a reforma rejeitou para sempre.

NACIONAL-SOCIALISMO, FASCISMO E A IDEIA DO ESTADO CRISTÃO

Se pararmos para analisar a evolução recente do termo “Estado cristão’ pelo nacional-socialismo e pelo fascismo, o quadro de caos espiritual completa-se. Isso porque ambos reúnem de uma forma tentadora tanto a noção pagã de um Estado total, abrangendo todas as esferas da vida, como o conceito cristão de solidariedade e amor ao próximo. De fato, a ideia do Estado cristão pareceu ser tão problemática como hoje!

Acrescente-se a isso que o caos espiritual da nossa época tão conturbada penetra de forma alarmante em nossas circunstâncias, de modo que muitos dificilmente compreendem que poder positivo de atração podem ter os princípios políticos calvinistas, e é compreensível a indiferença parcialmente velada com a qual muitos cristãos falam da ‘ideia cristã do Estado”.

A IDEIA DO ESTADO CRISTÃO, SEMPRE NOVA E INSPIRADORA, E AS CAUSAS DE SEU DECLÍNIO

Ainda assim, a ideia do Estado cristão não será posta de lado como uma noção abstrata que meramente “sobrevive à sua utilidade” e que agora pertence a uma tradição morta. Pelo contrário, ela ainda permanece um tesouro espiritual, sempre renovado, sempre inspirador e vivo,  que toca o próprio coração da vida cristã daquele que crê – um tesouro que deve ser preservado a todo custo.

A causa fundamental do enfraquecimento interno do pensamento político cristão – na verdade, de todo o modo de vida cristão dentre a diversidade de cristãos em nossos dias – reside não tanto  em fatores externos, mas em uma decadência que ameaça o cristianismo desde o começo, em seu esforço positivo em relação a cultura, educação, vida política e movimento social. Este também foi o perigo a respeito do qual Josué, vocacionado por Deus, alertou os israelitas quando eles chegaram à terra prometida, a saber, o perigo da integração com povos pagãos e a busca de um compromisso entre o serviço de Deus e a adoração a ídolos.

Tão logo o cristianismo começou a comprometer a educação, a cultura e a vida política com uma filosofia pagã e humanista, com sua visão de Estado e cultura, a sua força interna ruiu. Naquele momento, o processo de “conformar-se ao mundo” teve início e foi repetidamente contido através da graça de Deus por um “reveil” espiritual (termo usado para referir-se ao avivamento espiritual que ocorreu no protestantismo europeu no século XIX), uma reforma.

SÍNTESE E ANTÍTESE

Via de regra, tal reforma tinha de afirmar a antítese intransigente contra a síntese e o espírito de conformação ao mundo. É possível que, depois do último “reveil’ (calvinista) sob a influência inspiradora de Kuyper, esse processo tenha se repetido novamente? Será que o espírito de síntese se infiltrou de forma imperceptível em nossos próprios círculos? Será que o calvinismo como um movimento político e cultural perdeu sua eficácia? Será que ele se tornou atrativo e aceitável para o mundo porque, aos poucos, ele passou a ser identificado como um liberalismo com máscara cristã? Se assim for, então, este é certamente o momento de constatarmos mais uma vez a antítese radical que separa a ideia Cristã do Estado de todas as abordagens pagãs e humanistas.

NA VERDADE, HÁ SOMENTE UMA IDEIA RADICAL E BÍBLICA DO ESTADO CRISTÃO

Não é verdade que a visão Cristã do Estado se subdivida em um sem-número de interpretações tanto quanto há grupos ou movimentos políticos cristãos. Pelo contrário, essas distinções são fruto da união deletéria entre o cristianismo e os movimentos da nossa época, que são procedentes do espírito desse mundo.

A ideia genuinamente cristã do Estado está arraigada na visão radical das Escrituras acerca da relação entre o reino de Deus em Cristo Jesus e as estruturas sociais temporais nas quais a graça geral ou comum de Deus enfraquece a decadência moral e espiritual causada pelo pecado. Em que consiste, pois, essa visão?

O CONTRASTE ENTRE “NATUREZA” E “GRAÇA” NÃO É BÍBLICO. A ESCRITURA POSICIONA O CORAÇÃO COM O CENTRO RELIGIOSO DA EXISTÊNCIA HUMANA

A Palavra de Deus não ensina um contraste entre “natureza” e “graça’, isto é, entre a natureza da criação de Deus e a redenção em Cristo Jesus. Ela ensina apenas e exclusivamente a antítese intransigente e radical entre o pecado e a redenção, entre o domínio das trevas e o reino de Deus em Cristo.

Deus criou a humanidade à imagem dele. No coração da humanidade – a raiz da religião, o centro da existência humana – Deus concentrou toda criação para seu serviço. No coração, ele colocou a raiz supra temporal de todas as criaturas temporais. Esse coração humano, de onde, segundo as Escrituras, procedem as fontes de vida, transcende todas as coisas temporais a serviço de Deus. Todo o sentido (significado) religioso da criação de Deus reside em nosso coração, todo nosso ego, nosso self completo. Esse coração em que, conforme a Palavra, a eternidade foi colocada é o verdadeiro centro supra temporal da existência humana. Ao mesmo tempo, é também o centro criatural de toda a criação de Deus. A apostasia do coração, dessa raiz da criação, necessariamente varreu com ela toda a criação temporal. Em Adão, além de toda humanidade cair, o cosmos temporal do qual a humanidade era a cabeça coroada também caiu. E, em Cristo, a Palavra encarnada, a segunda  Cabeça da Aliança, Deus deu nova raiz à sua criação remida. Nele, a verdadeira humanidade foi implantada por meio  da entrega.

Da realeza da humanidade na criação imaculada de Deus não residia na natureza “racional moral” dos seres humanos, mas sim neste grande mistério: que Deus concentrou toda sua criação que ele fez de si mesmo, por meio da entrega do centro da existência, o coração. 

A VISÃO PAGÃ DE QUE A “RAZÃO” É O CENTRO SUPRA TEMPORAL DO SER DE UMA PESSOA 

Contudo, a filosofia pagã ensinou que a natureza de uma pessoa, o que inclui a natureza de todas as coisas temporais, encontra seu centro supra temporal  na “razão”. Mas essa “razão” é, na verdade, nada mais que a combinação de funções do nosso “self”, aspectos de nosso coração no sentido estrito bíblico.  A vida temporal orgânico- biótica, o sentimento, o senso de beleza, nossa função no desdobramento histórico, na linguagem, na vida jurídica e econômica, etc – todas essas são também funções do coração nesse sentido, no coração da humanidade, no self integral de uma pessoa, e reuniu toda criação nessa mais profunda unidade.

A Queda, a separação fundamental de Deus, consistiu nisso: o coração humano rebelou-se contra sua Origem Divina; a humanidade imaginou ser algo em virtude de si mesma e, com isso, buscou a Deus dentro da temporalidade. Eis, então, a idolatria que se manifesta na apostasia contra o Deus verdadeiro revelado no coração da humanidade por meio de sua Palavra.

Uma manifestação dessa apostasia foi também a visão pagã de que a existência humana tem sua origem na razão, como se ela fosse o centro supra temporal, e de que o próprio Deus é a Razão Absoluta, que é idolatria (Aristóteles). Infelizmente, o pensamento cristão absorveu isso em ampla escala na área do chamado conhecimento “natural”.  
  
OS EFEITOS  DA MISTURA ENTRE AS VISÕES CRISTÃ E PAGÃ. O ESQUEMA DE “NATUREZA” E “GRAÇA” COMO PRODUTO DESSA MISTURA

Tão logo o pensamento cristão misturou-se com essa filosofia pagã, a  relação verdadeiramente bíblica entre a vida temporal e o reino de Deus deixou de ser compreendida, e construções filosóficas falsas começaram a obscurecer a verdade clara e profunda da revelação de Deus.

O coração deixou de ser visto no sentido bíblico porque as pessoas deixaram de entender a si mesmas; e elas deixaram de entender a si mesmas porque obscureceram o verdadeiro conhecimento de Deus com uma mistura impossível que incluía especulações filosóficas apóstatas. O “coração” passou a ser identificado com uma função temporal psíquica, considerada o estimulante da vontade. Foi por isso que os homens da Idade Média começaram a se perguntar o que tem prioridade na natureza “humana” e na “divina”: o intelecto (razão) ou a vontade, que, conforme a filosofia grega, emerge da função dos sentimentos. E, dessa forma, eles também construíram um falso contraste entre “natureza” e “graça”, porque a “natureza” era considerada uma estrutura divinamente criada da realidade tal como enxergada à luz da filosofia grega, e a “graça” era considerada a revelação supra temporal de Deus, incluindo toda obra redentora de Cristo.






Autor: Herman Dooyeweerd
Trecho extraído do livro Estado e Soberania - Ensaios sobre Cristianismo e Política. Editora: Vida Nova