Tendo apresentado aos nossos leitores o conceito calvinista de biocosmovisão, elaborado pela tradição neocalvinista holandesa, iniciaremos, desta vez, uma série de duas publicações de textos do professor, teólogo e filósofo calvinista Herman Dooyeweerd. O presente artigo é resultado de uma palestra proferida no dia da Juventude anti revolucionária, em 3 de outubro de 1936. A palestra está publicada no livro Estado e Soberania, Ensaios Sobre Cristianismo e Política.
Indubitavelmente, os argumentos
apresentados por Herman Dooyeweerd ao longo do artigo surgem como uma poderosa
arma não só contra o reducionismo gnóstico que restringe o cristianismo a
esfera da vida privada, mas também contra a ideia nociva do Estado total
defendida pelos ideólogos e pensadores de esquerda que, infelizmente, ganhou
vida nos últimos anos na América Latina e no Brasil.
A IDEIA CRISTÃ DO ESTADO
Falar da ideia cristã do Estado diante da atual disparidade de pensamento entre os próprios cristãos pode parecer uma meta ousada. Talvez tenha sido possível durante a Idade Média sob a supremacia da Igreja Católica Romana, mas, com certeza, as incontáveis divisões dentro da igreja e a diversidade de grupos políticos cristãos hoje fazem parecer um tanto presunçoso, se não impossível, conjecturar em termos gerais acerca da ideia cristã do Estado.
EMIL BRUNNER REJEITA A IDEIA
CRISTÃ DO ESTADO
Mesmo os próprios protestantes
consideram – e sempre consideraram – a ideia de um Estado cristão uma falácia
católica romana. Emil Brunner, uma das principais personalidades da teologia
suíça fundada por Barth, fez a seguinte declaração enfática em seu conhecido
livro Das Gebot und die Ordnungen (1932): "O Estado cristão nunca existiu, nem
existirá". De acordo com ele, foi exatamente um dos conceitos fundamentais da
Reforma o fato de o Estado, instituído por causa da Queda, não pertencer ao
“Reino de Cristo”, mas sim as ordenanças naturais, seculares. Ele alega que um
Estado cristão é tão impossível quanto uma cultura cristã, uma educação cristã,
uma economia, uma arte ou mesmo uma ação social cristã. Brunner pensa que toda
vida no mundo temporal, permeada como está pelo pecado, pertence ao domínio da
natureza. Aqui, “ordenanças mundanas” são válidas. Trata-se da área da lei como uma regra destituída de
amor, da qual os cristãos foram libertos de sua vivência interior de graça.
Assim, passam a poder agir segundo o mandamento de Cristo de amar conforme o
momento. “Natureza” (a área da vida ordinária temporal, sujeita a ordenanças
inflexíveis) e “graça” (a área da fé pertencente ao reino supratemporal de
Deus, sujeita ao mandamento do amor que, no cristão, rompeu com a lei e a
colocou de lado, como algo não mais concebido, como uma regra universalmente
válida) são para Brunner inevitavelmente separadas. A Igreja Católica Romana,
ele argumenta, errou ao propagar a ideia de uma “vida cristã ordinária”. De
acordo com ele, tal abordagem só se torna possível se uma hierarquia
eclesiástica temporal for aceita como governante tanto do Estado como de outras
relações sociais – um tipo de governo que a reforma rejeitou para sempre.
NACIONAL-SOCIALISMO, FASCISMO
E A IDEIA DO ESTADO CRISTÃO
Se pararmos para analisar a
evolução recente do termo “Estado cristão’ pelo nacional-socialismo e pelo
fascismo, o quadro de caos espiritual completa-se. Isso porque ambos reúnem de
uma forma tentadora tanto a noção pagã de um Estado total, abrangendo todas as esferas da vida, como o conceito
cristão de solidariedade e amor ao próximo. De fato, a ideia do Estado
cristão pareceu ser tão problemática como hoje!
Acrescente-se a isso que o
caos espiritual da nossa época tão conturbada penetra de forma alarmante em
nossas circunstâncias, de modo que muitos dificilmente compreendem que poder
positivo de atração podem ter os princípios políticos calvinistas, e é
compreensível a indiferença parcialmente velada com a qual muitos cristãos
falam da ‘ideia cristã do Estado”.
A IDEIA DO ESTADO CRISTÃO,
SEMPRE NOVA E INSPIRADORA, E AS CAUSAS DE SEU DECLÍNIO
Ainda assim, a ideia do Estado
cristão não será posta de lado como uma noção abstrata que meramente “sobrevive
à sua utilidade” e que agora pertence a uma tradição morta. Pelo contrário, ela
ainda permanece um tesouro espiritual, sempre renovado, sempre inspirador e
vivo, que toca o próprio coração da vida
cristã daquele que crê – um tesouro que deve ser preservado a todo custo.
A causa fundamental do
enfraquecimento interno do pensamento político cristão – na verdade, de todo o
modo de vida cristão dentre a diversidade de cristãos em nossos dias – reside
não tanto em fatores externos, mas em
uma decadência que ameaça o cristianismo desde o começo, em seu esforço positivo
em relação a cultura, educação, vida política e movimento social. Este também
foi o perigo a respeito do qual Josué, vocacionado por Deus, alertou os
israelitas quando eles chegaram à terra prometida, a saber, o perigo da
integração com povos pagãos e a busca de um compromisso entre o serviço de Deus
e a adoração a ídolos.
Tão logo o cristianismo
começou a comprometer a educação, a cultura e a vida política com uma filosofia
pagã e humanista, com sua visão de Estado e cultura, a sua força interna ruiu.
Naquele momento, o processo de “conformar-se ao mundo” teve início e foi
repetidamente contido através da graça de Deus por um “reveil” espiritual
(termo usado para referir-se ao avivamento espiritual que ocorreu no
protestantismo europeu no século XIX), uma reforma.
SÍNTESE E ANTÍTESE
Via de regra, tal reforma
tinha de afirmar a antítese intransigente contra a síntese e o espírito de
conformação ao mundo. É possível que, depois do último “reveil’ (calvinista)
sob a influência inspiradora de Kuyper, esse processo tenha se repetido
novamente? Será que o espírito de síntese se infiltrou de forma imperceptível
em nossos próprios círculos? Será que o calvinismo como um movimento político e
cultural perdeu sua eficácia? Será que ele se tornou atrativo e aceitável para
o mundo porque, aos poucos, ele passou a ser identificado como um liberalismo
com máscara cristã? Se assim for, então, este é certamente o momento de
constatarmos mais uma vez a antítese radical que separa a ideia Cristã do
Estado de todas as abordagens pagãs e humanistas.
NA VERDADE, HÁ SOMENTE UMA
IDEIA RADICAL E BÍBLICA DO ESTADO CRISTÃO
Não é verdade que a visão Cristã do Estado se subdivida em um sem-número de interpretações tanto quanto
há grupos ou movimentos políticos cristãos. Pelo contrário, essas distinções
são fruto da união deletéria entre o cristianismo e os movimentos da nossa
época, que são procedentes do espírito desse mundo.
A ideia genuinamente cristã do
Estado está arraigada na visão radical das Escrituras acerca da relação entre o
reino de Deus em Cristo Jesus e as estruturas sociais temporais nas quais a
graça geral ou comum de Deus enfraquece a decadência moral e espiritual causada
pelo pecado. Em que consiste, pois, essa visão?
O CONTRASTE ENTRE “NATUREZA” E
“GRAÇA” NÃO É BÍBLICO. A ESCRITURA POSICIONA O CORAÇÃO COM O CENTRO RELIGIOSO
DA EXISTÊNCIA HUMANA
A Palavra de Deus não ensina
um contraste entre “natureza” e “graça’, isto é, entre a natureza da criação de
Deus e a redenção em Cristo Jesus. Ela ensina apenas e exclusivamente a antítese intransigente e
radical entre o pecado e a redenção, entre o domínio das trevas e o reino de
Deus em Cristo.
Deus criou a humanidade à
imagem dele. No coração da humanidade – a raiz da religião, o centro da
existência humana – Deus concentrou toda criação para seu serviço. No coração,
ele colocou a raiz supra temporal de todas as criaturas temporais. Esse coração
humano, de onde, segundo as Escrituras, procedem as fontes de vida, transcende
todas as coisas temporais a serviço de Deus. Todo o sentido (significado)
religioso da criação de Deus reside em nosso coração, todo nosso ego, nosso
self completo. Esse coração em que, conforme a Palavra, a eternidade foi
colocada é o verdadeiro centro supra temporal da existência humana. Ao mesmo
tempo, é também o centro criatural de toda a criação de Deus. A apostasia do
coração, dessa raiz da criação, necessariamente varreu com ela toda a criação
temporal. Em Adão, além de toda humanidade cair, o cosmos temporal do qual a
humanidade era a cabeça coroada também caiu. E, em Cristo, a Palavra encarnada,
a segunda Cabeça da Aliança, Deus deu
nova raiz à sua criação remida. Nele, a verdadeira humanidade foi implantada
por meio da entrega.
Da realeza da humanidade na
criação imaculada de Deus não residia na natureza “racional moral” dos seres
humanos, mas sim neste grande mistério: que Deus concentrou toda sua criação
que ele fez de si mesmo, por meio da entrega do centro da existência, o coração.
A VISÃO PAGÃ DE QUE A “RAZÃO”
É O CENTRO SUPRA TEMPORAL DO SER DE UMA PESSOA
Contudo, a filosofia pagã
ensinou que a natureza de uma pessoa, o que inclui a natureza de todas as
coisas temporais, encontra seu centro supra temporal na “razão”. Mas essa “razão” é, na
verdade, nada mais que a combinação de funções do nosso “self”, aspectos de
nosso coração no sentido estrito bíblico.
A vida temporal orgânico- biótica, o sentimento, o senso de beleza, nossa
função no desdobramento histórico, na linguagem, na vida jurídica e econômica,
etc – todas essas são também funções do coração nesse sentido, no coração da
humanidade, no self integral de uma pessoa, e reuniu toda criação nessa mais
profunda unidade.
A Queda, a separação
fundamental de Deus, consistiu nisso: o coração humano rebelou-se contra sua
Origem Divina; a humanidade imaginou ser algo em virtude de si mesma e, com
isso, buscou a Deus dentro da temporalidade. Eis, então, a idolatria que se
manifesta na apostasia contra o Deus verdadeiro revelado no coração da
humanidade por meio de sua Palavra.
Uma manifestação dessa
apostasia foi também a visão pagã de que a existência humana tem sua origem na
razão, como se ela fosse o centro supra temporal, e de que o próprio Deus é a
Razão Absoluta, que é idolatria (Aristóteles). Infelizmente, o pensamento
cristão absorveu isso em ampla escala na área do chamado conhecimento
“natural”.
OS EFEITOS DA MISTURA ENTRE AS VISÕES CRISTÃ E PAGÃ. O
ESQUEMA DE “NATUREZA” E “GRAÇA” COMO PRODUTO DESSA MISTURA
Tão logo o pensamento cristão
misturou-se com essa filosofia pagã, a
relação verdadeiramente bíblica entre a vida temporal e o reino de Deus
deixou de ser compreendida, e construções filosóficas falsas começaram a obscurecer
a verdade clara e profunda da revelação de Deus.
O coração deixou de ser visto
no sentido bíblico porque as pessoas deixaram de entender a si mesmas; e elas
deixaram de entender a si mesmas porque obscureceram o verdadeiro conhecimento
de Deus com uma mistura impossível que incluía especulações filosóficas
apóstatas. O “coração” passou a ser identificado com uma função temporal
psíquica, considerada o estimulante da vontade. Foi por isso que os homens da
Idade Média começaram a se perguntar o que tem prioridade na natureza “humana”
e na “divina”: o intelecto (razão) ou a vontade, que, conforme a filosofia
grega, emerge da função dos sentimentos. E, dessa forma, eles também
construíram um falso contraste entre “natureza” e “graça”, porque a “natureza”
era considerada uma estrutura divinamente criada da realidade tal como
enxergada à luz da filosofia grega, e a “graça” era considerada a revelação
supra temporal de Deus, incluindo toda obra redentora de Cristo.
Autor:
Herman Dooyeweerd
Trecho extraído do livro Estado e Soberania - Ensaios sobre Cristianismo e Política. Editora: Vida Nova