Texto base: 1 Coríntios 14.2,4a, 13-17, 21-25, 27-35
INTRODUÇÃO
No capítulo 14, Paulo estabelece algumas
diretrizes para corrigir a forma desorganizada de culto que a igreja de Corinto
estava realizando. Para isso, o apóstolo se concentra em dois dons espirituais
– o dom de profecia e o dom de línguas. Segundo Paulo, esses dons estavam sendo
usados no culto público de maneira equivocada, e, portanto, não estava promovendo
a edificação dos participantes.
Todavia, os coríntios pareciam não se
importar com relação à ausência de entendimento que havia nos cultos públicos.
Eles sequer procuravam compreender tudo o que acontecia. Esse desprezo pelo uso
da mente para a compreensão intelectual das coisas estava sendo substituído por
um culto eivado pela histeria e focado nas experiências emocionais, as quais
eram confundidas com verdadeiras experiências espirituais.
Por outro lado, muitas destas experiências espirituais que os crentes de Corinto experimentaram possuíam influência demoníaca (12.2-3). Tudo isso residia na prática usual de muitos “falarem em línguas” ao mesmo tempo sem interpretação, num estado de “êxtase frenético”, o qual privava os participantes de edificação espiritual (14.14-17,27-28).
O mesmo ocorria com o dom de
profecia; todos que possuem esse dom “profetizavam” ao mesmo tempo, o que
gerava confusão, em vez de compreensão da mensagem transmitida (14.29-31). A ênfase de Paulo neste capítulo é
ressaltar como critério a edificação
coletiva, e não um tipo de edificação
individual, conforme ressalta os continuacionistas na questão das línguas.
O apóstolo ensinou em Efésios
4.12-13 que os dons foram distribuídos pelo Espírito Santo para o
aperfeiçoamento e a edificação dos crentes como igreja. Na lista de alguns dos
dons espirituais descrita no capítulo 12 de 1 Coríntios, as línguas se
encontram em último lugar (12.28). Agora, no capítulo 14, as línguas se
encontram em segundo lugar de importância, estando em primeiro lugar a profecia. Logo, os dons de profecia e línguas deveriam
ser exercidos para que promovessem a edificação de todos que estavam presentes
no culto público.
Podemos dividir o esboço analítico da
seção sobre o dom de línguas em quatro partes:
1) O dom de línguas com
relação aos crentes (14.2,4a,21-25). 2) O dom de línguas com relação aos não
crentes (14.21-25). 3. A limitação do dom de línguas (14.26-28).
4) Equívocos relacionados ao dom de línguas pelos Coríntios, pelos pentecostais e neopentecostais no presente.
EXPLANAÇÃO
1. O dom de línguas com relação aos crentes (14.2, 4a, 6-11)
Paulo inicia sua argumentação no capítulo
14 doravante à conclusão de sua argumentação sobre a importância do amor no
capítulo 13. No versículo 1 do capítulo 14, ele tece dois imperativos diretos e
um indireto.
Em primeiro lugar, o apóstolo
ordena que os crentes sigam ou busquem com intensidade e determinação o amor.
Em segundo lugar, retomando o seu argumento descrito no capítulo 12.31, ele
instrui os crentes para que sejam diligentes na procura dos dons espirituais e,
de modo indireto, que eles prefiram o dom de profecia em relação
aos outros dons.
No entanto, obter o dom de
profecia depende, primeiramente, da soberania de Deus; Ele, mediante o seu
Espírito, concede os dons a quem quer e como quer. Por conseguinte, obter um
dom depende também daquele que o requer. Portanto, os dons que o Espírito Santo confere aos
crentes devem ser empregados com amor para o benefício espiritual e material da
igreja (veja Rm 12.4-8).
Em seguida, Paulo se concentra num longo
trecho sobre a questão das línguas. Ao escrever o capítulo 14, o apóstolo
imagina um culto público. Seu intuito é corrigir a maneira equivocada com que
esse dom estava sendo exercido no culto como sinal de imaturidade espiritual
dos crentes da igreja de Corinto (3.1-4). Assim, ele esboça algumas
características do dom de línguas com relação aos crentes. Vejamos, pois:
a) A
natureza das línguas (vs.2)
Paulo afirma que aquele que fala em uma língua
humana γλωσση (glossa) não interpretada no culto público não comunica nenhuma
mensagem que tenha sentido às pessoas ali reunidas, pois elas não são capazes
de entender o que está sendo dito; como consequência, não há edificação ou
instrução alguma. Logo, somente Deus entende o que está sendo transmitido em
outra língua.1
Em Atos 2.4-11, todos os judeus
estrangeiros [aqueles que residiam em outros locais onde se falava outras
línguas] que estavam reunidos em Jerusalém para a festa do pentecostes
compreenderam os idiomas humanos ou dialetos διαλέκτω (dialektos) que foram falados pelos apóstolos. Este não foi um
milagre “auditivo”, onde a multidão ali reunida foi miraculosamente capacitada
a entender em sua própria língua aquelas palavras. Antes, o milagre foi
realizado nos apóstolos, os quais falaram sobrenaturalmente idiomas que
desconheciam.
No texto a lume, Paulo não menciona nada
referente a interpretação. Pelo contrário, ele escreve que a mensagem
transmitida em outra língua sem tradução não é dirigida às pessoas, como no
pentecostes, mas a Deus. Assim, os pentecostais e
neopentecostais sugerem que as línguas faladas na igreja de Corinto e nas
igrejas do século 1 não eram idiomas, como no pentecostes, mas uma língua
espiritual incompreensível aos homens, talvez até uma língua de anjos (1Co
13.1), visto que somente Deus a entende.2
Porém, a expressão ainda que eu falasse a língua dos anjos
em 1 Coríntios 13.1 é uma hipérbole, isto é, uma figura de linguagem que
aumenta ou diminuiu exageradamente uma verdade. Desse modo, Paulo não diz que
ele falava a língua dos anjos, pois o texto não menciona nada acerca da
natureza da língua falada pelos anjos. Ele também não afirma sobre a
possibilidade de os crentes falarem a língua dos anjos. Antes, o apóstolo descreve que
ainda que fosse possível ele falar na língua dos anjos [e se realmente existe
essa língua], e tivesse todos os dons (13.2), mas se não tivesse amor, ele não
seria nada. Portanto, assim como no pentecostes, as línguas descritas em 1
Coríntios 14 também são idiomas humanos.
No fenômeno moderno das falsas línguas,
podemos notar que as supostas interpretações são geralmente repreensões,
revelações de segredos, predições vagas do que Deus está por fazer e exortações
gerais por vezes indefinidas. Uma vez que os pentecostais e
neopentecostais afirmam que o que fala em línguas dirige-se a Deus, e não aos
homens, as interpretações não deveriam ser uma mensagem do “homem para Deus”, e não
de “Deus para o homem”?! Com isso, percebemos um concomitante anacronismo em
relação ao verdadeiro dom de línguas.
b) O
meio pelo qual as línguas são emitidas (vs.2b)
Se alguém que fala em uma língua
estrangeira não interpretada não fala às pessoas, mas a Deus, visto que somente
Ele entende o que está sendo falado, isto é através do “espírito”. A palavra
grega πνενματι (pneuma) pode ser traduzida se referindo tanto ao “espírito”
humano quanto ao “Espírito Santo”. Assim, fica difícil saber com exatidão se
Paulo faz menção ao “espírito humano” ou ao “Espírito Santo”.3
Dentro do contexto do capítulo
14, Paulo salienta o “espírito humano” duas vezes (vs.14,32). Pessoalmente,
acredito que ele tinha em mente aqui o “espírito humano”. Então, aquele que
falava em línguas, o fazia pela atuação do Espírito Santo “em seu espírito” sem
transmitir a informação à mente. Por isso, aquele que falava em línguas “em
espírito” não entendia o que falava.
c) O
conteúdo das línguas (vs.2c)
Paulo, agora, declara que aquele que fala
em línguas estrangeiras fala a Deus mistérios.
Ele utiliza esta palavra no capítulo 4.1, onde se refere aos ministros do
evangelho como despenseiros dos mistérios
de Deus. Ele utiliza essa mesma expressão no capítulo 2.7-9 para enfatizar
Cristo e o Evangelho que foi revelado como o mistério de Deus que esteve oculto
na eternidade (veja também Cl 2.2).
No capítulo 13.2, Paulo
ressalta que conhecer todos os mistérios
é algo pertencente ao profeta. Esses mistérios
que eram revelados aos profetas das igrejas locais do Novo Testamento se
tratavam da exposição verbal dos aspectos do mistério de Cristo que fora
revelado aos apóstolos e, por conseguinte, registrado nas Escrituras.
Comunicar os mistérios não é adivinhar os segredos
das pessoas presentes no culto através de uma suposta revelação como fazem os
“profetas” modernos; antes, é simplesmente anunciar o grande mistério de
Cristo.
Todavia, poderíamos interpretar que os mistérios que Paulo se refere aqui em 1
Coríntios 14 é o mistério de Cristo, embora seja empregado o plural – mistérios. A lógica dessa interpretação
é que aquele que fala em línguas transmite o evangelho a Deus. Contudo, qual é
o sentido disso? Nenhum!
Também devemos rejeitar a
interpretação que ressalta os mistérios como sendo segredos conhecidos
somente por Deus e por aqueles que falam em línguas. Não existem “crentes
especiais” ou mais iluminados que possuem acesso a segredos particulares com
Deus. Essa interpretação, além de
ser gnóstica, é vigente em ramificações heréticas como o adventismo, mormonismo,
o neopentecostalismo, entre outras. Deus não tem filhos preferidos; Ele revelou
o Evangelho a todos os crentes. Outra interpretação que deve ser rejeitada é
que o dom de línguas foi concedido para os crentes se comunicarem com Deus de
forma mais espiritual, uma vez que falam mistérios.
Não obstante, o meio que Deus
concedeu aos crentes para se comunicarem com Ele é a oração realizada na
própria língua. Então, o que significa falar pelo espírito mistérios? Paulo está simplesmente dizendo que, quando um idioma
desconhecido é falado no culto sem haver tradução, a mensagem divulgada é
“misteriosa” ou incompreensível para os ouvintes.4
Calvino ratifica esta interpretação
em seu Comentário Expositivo de 1 Coríntios, dizendo que o termo mistérios possui um sentido negativo, “como
sendo certas expressões ininteligíveis, confusas, enigmáticas, como se Paulo
tivesse escrito: ninguém entende uma só palavra do que ele [o que fala em
línguas] diz”.5
d) O
foco equivocado das línguas (vs.4a)
Prosseguindo sua argumentação, Paulo
acentua que aquele que fala em línguas edifica6 a si mesmo. Este
trecho de difícil interpretação é o favorito dos pentecostais e neopentecostais
na defesa do falar em línguas em particular para a edificação individual. Essa
ideia foi chamada de o dom de pijamas, referindo-se ao ato de falar em
línguas em privado. Carlos Ortiz foi o criador desta expressão.
Por conta de uma interpretação
errônea desse trecho, ele assegurou que, diferentemente dos outros dons, que
foram conferidos para a edificação
coletiva [da igreja], as línguas foram conferidas especialmente para a
edificação individual do crente, como um tipo de hábito privado a ser realizado
pelo crente em casa, a sós com Deus. Apesar de alguns continuacionistas
afirmarem que não deve haver línguas no culto sem interpretação, através desta
passagem eles apoiam o hábito de falar em línguas em particular.
Entretanto, se analisarmos
meticulosamente o contexto imediato de 1 Coríntios 14, abrangendo também o
capítulo 12, 13, Atos 2, e o contexto teológico das línguas, entenderemos que
Paulo não está ensinando aqui uma prática das línguas como um devocional
privado. O apóstolo não ensina que esse é o propósito das línguas. Sendo assim,
vejamos três razões que demonstram outro entendimento:
i. Conforme disse anteriormente, quando
escreveu 1 Coríntios 14, Paulo tinha em mente um culto. Ele imagina a igreja
reunida para um culto de adoração a Deus quando trata da questão da profecia e
das línguas. Era como se Paulo fosse visitar a igreja quando estivesse reunida
para o culto público.
Desse modo, o apóstolo relata
o que acontece quando os irmãos se reúnem para o culto (vs. 26), e, assim, tece
as diretrizes necessárias com relação ao uso adequado dos dons no culto (vs.
27-40). Ele imagina o caso de um irmão falando em línguas e os demais irmãos ao
seu redor não entendendo o conteúdo do que está sendo emitido verbalmente (vs.9,16-17).
Ele afirma enfaticamente que,
ao estar presente num culto público, prefere instruir os irmãos na própria
língua, em vez de falar muitas palavras em línguas humanas desconhecidas para
eles (vs.19). Ainda que de forma implícita, vemos aqui a preocupação de Paulo
com a edificação coletiva.
No versículo 12, o apóstolo orienta
os irmãos da igreja em Corinto a progredir nos dons espirituais, tendo em vista
a edificação da igreja como um todo, e não a edificação pessoal do crente. Portanto,
no capítulo 14, vemos orientações acerca de como deve ser o procedimento dos
crentes no exercício dos seus dons no culto público.
Por outro lado, nesta primeira carta a
igreja de Coríntios, Paulo orienta os crentes a fazerem algumas coisas no
âmbito privado [ou seja, em suas
próprias casas], e não na igreja. Ele escreve que os crentes,
antes de participarem da celebração da santa ceia, devem comer em casa (11.34). Caso houvesse dúvidas bíblicas
por parte das mulheres no culto, elas deveriam buscar o esclarecimento em casa,
indagando os seus próprios maridos ao invés de interromper o progresso do culto
com interpelações (14.35). E, finalmente, os crentes deveriam reunir o dinheiro
das contribuições para os crentes da Judéia em casa (16.2). Portanto, se os crentes não
poderiam falar em línguas no culto sem haver tradução, mas pudessem fazer isso
em particular, seria bem provável que Paulo escrevesse orientações claras acerca
desta prática, como fez nos casos supramencionados.
Diante disso, percebemos que
Paulo não escreve nenhuma orientação sobre o uso das línguas sem interpretação
no âmbito privado. Neste capítulo ele está discorrendo sobre questões
relacionadas ao culto, isto é, quando alguém fala em línguas sem haver a
interpretação. Logo, os continuacionistas não podem utilizar este trecho para
justificar o hábito de falar em línguas em particular.
ii. A edificação ensinada por Paulo
ocorre somente quando os crentes compreendem as questões de Deus exercidas
pelos dons no culto. Sendo assim, a ideia de alguém edificar a si mesmo através
do hábito de falar em particular uma língua estrangeira sem tradução foge do
padrão estabelecido por Paulo. Acerca da contradição
existente na auto edificação, Charles Hodge, em seu Comentário de 1 Coríntios,
escreve que aquele que fala em línguas “se
edifica porque entende a si mesmo”.7
A interpretação de Hodge é interessante, porém se depara com o versículo 14,
que diz que aquele que fala em línguas não entende o que está dizendo.
D.A.Carson, que apoia o hábito de falar
em línguas sem tradução em privado, foge das evidentes implicações descritas no
capítulo 12.7. Lá, Paulo assevera que os dons do Espírito são conferidos para o
que for proveitoso, e que, no contexto, refere-se ao que for proveitoso para
[ou que beneficie] a igreja. Carson reconhece isso, e afirma que, de acordo com
este trecho, “não existe nenhum benefício direto [para aquele que fala em línguas
sem interpretação em particular]”.8 Porém, o argumento de Carson
de que as línguas faladas em secreto traz algum tipo de “benefício indireto” é
tendencioso e incongruente. A prova que ele utiliza para sustentar essa
afirmação é ínfima e forçada. Ele escreve:
Todavia, a Paulo foram
concedidas visões e revelações extraordinárias que objetivavam somente seu
beneficio imediato (2Co 12.1-10); contudo, certamente a igreja recebeu ganhos
indiretos, pois essas visões e revelações, para não mencionar a questão do espinho
na carne, o capacitaram mais para o seu ministério e proclamação. [...] É
difícil ver como o versículo 7 torna ilegítimo o uso privado do falar em
línguas se o resultado é uma pessoa melhor, um cristão com mais consciência
espiritual: a igreja pode sim receber benefícios indiretos.9
Não
existe a comparação entre o que Paulo ensinou sobre os dons espirituais com as experiências
espirituais que ele teve em particular.
Também não existe nas cartas de Paulo uma proibição contra experiências espirituais particulares.
Porém, o ato de falar em línguas humanas é visto como um dom que foi
concedido pelo Espírito Santo a alguns para o beneficio da igreja (veja Ef
4.11-12; 1Pe 4.10-11). Portanto, o argumento de
Carson, que diz que a igreja recebe um “benefício indireto” com aquele que fala
em línguas em particular é frágil demais para acreditarmos, uma vez que a experiência espiritual particular não
edifica a igreja numa forma coletiva, mas apenas a pessoa que a teve.
iii. Por outro lado, na tentativa de
manter o equilíbrio na interpretação deste trecho, Augustus Nicodemus Lopes
sugere uma “posição intermediária”. Ele escreve:
Paulo está admitindo que
existe algum benefício espiritual para o que fala em línguas, mas que não é a
edificação que ele deseja para a igreja, apesar de usar a mesma palavra. Seria
uma espécie de compensação quando não houvesse intérprete na igreja, como um
consolo ao que falou mas não foi entendido. Paulo admite que o espírito de quem
ora, canta e bendiz a Deus em línguas, mesmo sem compreender o que diz (a mente
permanece infrutífera) recebe algum tipo de beneficio. (vs.14-17). Ele mesmo
recomenda que, no caso de não haver intérprete, o que fala em línguas “fale
consigo mesmo e com Deus”, como uma espécie de consolo diante da ordem para
calar-se (14.28).
Isso, entretanto, não
significa que o apóstolo encoraja a prática das línguas em privado O beneficio
que a mesma traz, na opinião do apóstolo, é inferior à edificação recebida na
comunidade, pelo ministério dos outros irmãos, pelos dons espirituais. A
compensação para o que fala em línguas é somente no caso de não haver
intérprete na igreja. É bastante diferente alguém querer falar línguas em
privado, já sabendo de antemão que não haverá interpretação.
Como entender, então, as
experiências relatadas por cristãos sinceros de que experimentaram o falar
línguas a sós? Pessoalmente, creio que Deus pode fazer exceções, mas o que ele
nos ensina no Novo Testamento é que as línguas, juntamente com os demais dons
do Novo Testamento, foram dados para a edificação da igreja e deveriam ser
exercidos durante os cultos.
Talvez pudéssemos justificar o
uso do dom de línguas em particular lembrando que dons como o de curar,
socorros e milagres provavelmente eram exercidos também fora do ambiente de
culto. Porém, olhando o argumento mais de perto, vemos que há uma diferença
fundamental: curas, milagres e socorros, exercidos em particular, sempre são
administrados por alguém a outro alguém. No fim, acaba sendo um membro da
igreja edificando outro membro da igreja. O mesmo não pode ser dito no caso de
falar línguas a sós.10
O problema dessa “interpretação
intermediária”, embora seja atraente, consiste no fato de não haver nenhuma
informação clara nas cartas de Paulo sobre a ideia de uma edificação parcial [“compensação”, segundo pressupõe Nicodemus]
quando um dom espiritual [no caso, as línguas] não é usado da forma que foi
estabelecida. Basear-se nos versículos 14-17 não soluciona o problema; é apenas
uma fuga mal sucedida.
Neste trecho, especialmente os
versículos 16-17, Paulo, de fato, elogia aquele que louva a Deus. Ele não
censura as expressões de gratidão a Deus, mas, sim, o modo em que este
agradecimento é manifesto, ou seja, em línguas não interpretadas. Paulo repreende aquele que ora
em línguas pela desconsideração para com o próximo, visto que a pessoa não entende o
que está sendo transmitido em outra língua e, portanto, não recebe nenhum
benefício espiritual. Assim, o versículo 17 é uma altissonante censura
desferida ao que fala em línguas no culto sem interpretação, uma vez que privou o
seu próximo da edificação.
Diante do fracasso das interpretações que
tentaram sanar a dificuldade existente no versículo 4, qual seria a melhor
interpretação? O que Paulo quis dizer quando escreveu que aquele que fala em
línguas edifica a si mesmo? Segundo o meu entendimento,
Paulo escreveu o versículo 4 em um tom de ironia.
Essa é uma figura de linguagem que esboça uma censura disfarçada de aprovação.
É o oposto do que se quer dizer, porém sempre ressaltando o sentido verdadeiro
da afirmação. Era como se Paulo estivesse
declarando uma verdade – o que fala em
línguas edifica a si mesmo – no entanto, essa “aparente verdade” é uma ironia. Nesta mesma carta Paulo escreve
outra verdade em tom de ironia (veja 1Co 4.6-8). Existem formas de ironia nas Escrituras que são praticamente sarcasmos (veja 1Sm 26.15; 1Rs 18.27). Portanto, a melhor
interpretação para o versículo 4 seria entendermos a declaração de Paulo como
uma ironia ao coríntios. Eles estavam
abusando do uso do dom de línguas para exibirem uma “espiritualidade superior”
aos demais; na verdade não passava de uma falsa espiritualidade egoísta e
equivocada (3.1-4). Os dons espirituais eram um símbolo de status para os
imaturos coríntios!
Interpretando o versículo 4, John Stott
ratifica que “certamente deve existir pelo menos uma ponta de ironia no que
Paulo escreve, porque a frase praticamente se contradiz em seus termos. A auto edificação
está completamente fora de cogitação quando o Novo Testamento fala de
edificação.11
Não
obstante, para fortalecer sua argumentação sobre a necessidade do entendimento
das línguas faladas para que a igreja seja edificada, Paulo utiliza como
exemplo três ilustrações. Ele fala sobre os instrumentos musicais (vs.7), uma
trombeta tocada que alerta sobre a preparação para uma batalha (vs.8), e as
conversas interpessoais (vs.9-11).
O versículo 6 é uma introdução para as
ilustrações subsequentes. Paulo pergunta aos coríntios qual seria o benefício
que obteriam se ele fosse visita-los e ministrasse na igreja deles num idioma
desconhecido. A resposta é: nenhum benefício! Haveria, sim, benefício se o
apóstolo ministrasse na própria língua, quer fosse como profeta [revelação e
profecia] ou como mestre [ciência e doutrina]. O tema desta seção poderia ser
resumido numa só frase: A manifestação dos
dons espirituais no culto deve ser inteligível para que haja a edificação de
todos! Por mais que as línguas sejam
espirituais, se não forem interpretadas, irão produzir o mesmo som confuso que
os instrumentos musicais soam quando são tocados por leigos. É o mesmo que
dizer de alguém que não sabe o toque de preparação de uma trombeta para a
guerra, e como se houvesse uma conversa entre dois estrangeiros que não
entendem o idioma um do outro. Vejamos, pois:
i. Os
instrumentos musicais (vs.7)
Se uma pessoa que é leiga na música
decide tocar uma flauta ou uma harpa, o som que emitirá desses instrumentos
será indefinido e confuso.
ii. A trombeta (vs.8)
De modo semelhante à questão
da música, se uma pessoa produzir um sonido indefinido com a trombeta, visto
que desconhece o sonido que deve ser tocado, como um exército se preparará para
a batalha? Haverá confusão ao invés de preparação.
iii.
As conversas interpessoais (vs.9-11)
Imagine você, um brasileiro, conversando
com um alemão. Ambos desconhecem a língua um do outro. Portanto, a conversa
será vã, pois não houve a compreensão da mesma.
Através destas ilustrações, Paulo ensina
que se alguém falar em outra língua sem interpretação no culto, a igreja não
poderá ser edificada, visto que o idioma falado é incompreensível para as
outras pessoas (vs.11). Para que ocorra a edificação deve haver o
entendimento.
NOTAS:
1 A expressão não fala a homens, senão a Deus, é
comumente usada por alguns estudiosos para confirmar que as línguas que
Paulo salienta em 1 Coríntios 14 não são idiomas humanos. Porém, a expressão
somente demonstra que as línguas são “uma
forma de oração” (veja 14.14-15). Em Atos 2.11; 10.46, as
línguas, aparentemente, eram uma forma de oração e louvor a Deus distintos da
profecia (veja também Atos 19.6).
2 Alguns estudiosos deduzem pela
expressão outras línguas, que ocorre algumas vezes em 1 Coríntios 14, como um
sinal de que Paulo está se referindo a uma língua espiritual diferente das
línguas humanas. No entanto, a palavra outras não aparece no grego, e
trata-se de um acréscimo de interpretação dos tradutores para o português.
3 Charles
Hodge, em seu Comentário Bíblico de 1 Coríntios, defende que Paulo se
refere no versículo 2 ao Espírito Santo, e não ao espírito humano. Ele ressalta
que "as Escrituras não fazem distinção entre o “nous” (mente) e o “pneuma”
(espírito) como faculdades diferentes da inteligência humana".
Porém, o apóstolo traça esse contraste nos versículos 14 e 15.
4 Augustus Nicodemus Lopes
corrobora que quando o Senhor apareceu a Paulo no caminho de Damasco, falou-lhe
em língua hebraica (At 26.14). Seus companheiros, possivelmente soldados
romanos cedidos por Pilatos aos principais sacerdotes para prender os cristãos,
viram a luz, ouviram a voz, mas não a entenderam (“ouviram”, veja At
22.9), visto que não falavam hebraico. A voz soou como um perfeito mistério para
eles. Talvez devamos interpretar 1 Coríntios 14.2 nesse sentido (O culto espiritual, pág 195).
5
Calvino. 1 Coríntios, pág 414.
6
A palavra edificar significa
literalmente “construir”; traz a ideia de se construir cidades, casas ou
sinagogas. É aplicada figuradamente à igreja como um todo (veja Mt 16.18; Rm
14.19; 15.2; 1Co 3.9; Ef 2.20-21; 1Ts 5.11; 1Pe 2.5). Desse modo, edificar passou a ser usada no sentido coletivo
de “fortalecer uns aos outros”; “fazer com que os outros cresçam em maturidade
espiritual”. Estas bênçãos espirituais só acontecem quando os dons são
ministrados aos outros como igreja.
7 Charles
Hodge. 1-2 Corínthians, pág 281.
8 D. A. Carson.
A
manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios
12-14, pág 37.
9 Ibid.
10 Augustus Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 198-199.
Autor: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21