Nesta cultura pós-moderna, temos testemunhado um ressurgimento fascinante do gnosticismo. Os gnósticos
antigos eram chamados assim por afirmarem ter um tipo de conhecimento que era
superior até mesmo ao dos apóstolos do Novo Testamento. Diziam que a percepção
dos apóstolos era restringida pelas limitações naturais sofridas pelos seres
humanos, que estão vinculados à racionalidade. Para esses hereges, o verdadeiro
conhecimento seria alcançado não pela razão ou percepção sensorial, mas por uma
intuição mística altamente desenvolvida. De forma semelhante, temos visto no
mundo pós-moderno uma larga rejeição da racionalidade. Essa rejeição tem se
infiltrado à força na igreja. Vemos tentativas frequentes de excluir a fé
cristã de todas as considerações da racionalidade. Defende-se hoje em dia que a
revelação bíblica só pode ser inteligível por meio da intuição ou por uma
imaginação poética peculiarmente sensível. Isso traz consigo a ideia de que a
revelação bíblica é ininteligível por meio da razão.
Por um bom motivo, a igreja, nos últimos séculos, teve que rejeitar o racionalismo em suas várias facetas. Não há uma filosofia monolítica de racionalismo; o racionalismo, na verdade, possui várias facetas. De um lado, pensamos no racionalismo como sendo distinto do empirismo em relação a como chegamos a saber o que sabemos. Em segundo lugar, o racionalismo iluminista contrasta a razão não com a percepção sensorial, mas com a revelação, argumentando que esta é irracional e que a única verdade que pode ser conhecida é aquela que pode ser alcançada pela razão natural. A terceira e mais complexa forma de racionalismo é o racionalismo Hegeliano, que define a razão com um R maiúsculo e que a realidade é um desdobramento no espaço e no tempo da razão definitiva.
Nenhuma dessas correntes
filosóficas representa o cristianismo histórico. O cristianismo não tem bases
no racionalismo. Entretanto, a rejeição do racionalismo na igreja moderna
frequentemente traz consigo a rejeição da racionalidade. Essa rejeição é em si
irracional. Quando rejeitamos o humanismo, não rejeitamos a ideia de que somos
humanos. Se rejeitamos o existencialismo, não rejeitamos a existência. Assim,
se rejeitamos um “ismo” associado à razão, não significa que devemos rejeitar a
razão propriamente dita.
Qualquer debate sobre fé e
razão deve fazer a seguinte pergunta: “O que é fé?”. A resposta bíblica, de
acordo com o autor de Hebreus, é que fé é a garantia do que se espera e a prova
do que não se vê (Hb 11.1). O autor de Hebreus prossegue dizendo que pela fé
podemos entender que o mundo foi formado pela Palavra de Deus. A primeira coisa
que podemos observar nessa declaração é que a fé é algo substancial, não
efêmero. Em segundo lugar, ela representa um tipo de evidência; ela é a
evidência de algo que não pode ser visto. Na essência do conceito
neotestamentário, fé é a ideia de confiança, ou seja, envolve a confiança de
alguém em relação a algo. Nesse aspecto, todos os seres humanos estão sujeitos
a depender da fé em algum momento ou outro. Não sou especialista em medicina,
então devo depositar certa confiança no diagnóstico dado a mim por
especialistas da área. Essa confiança pode ser provisória até eu constatar que
ela não é baseada em um fundamento ou evidência. Nesse ínterim, porém, confiar
em algo que não vemos não é necessariamente uma questão de irracionalidade. Sem
a razão, o conteúdo da fé bíblica seria ininteligível e sem sentido.
Assim, dizemos que a fé
bíblica não é o mesmo que a razão, mas que ela é racional e coerente. A
primeira afirmação de que a fé é racional significa que ela é inteligível, ou
seja, não é absurda ou ilógica. Se a revelação bíblica fosse absurda ou
irracional, ela seria completamente ininteligível e sem sentido. O conteúdo da
Bíblia não pode penetrar a alma de uma criatura senciente sem primeiro passar
por sua mente. Agostinho declarou que a fé sem evidência é credulidade. Nesse
ponto, entendemos que, embora a fé seja racional, ela também é coerente. A fé
bíblica não chama pessoas a crucificar seus intelectos ou a dar saltos cegos de
fé nas trevas na esperança de que Cristo irá nos pegar. Ao invés disso, somos
chamados para saltar da escuridão para a luz.
Quando as Escrituras afirmam
que a fé é a prova do que não se vê, o que devemos entender? O exemplo dado é
que pela fé entendemos que o mundo foi formado pela Palavra de Deus. Nenhum de
nós foi uma testemunha ocular da ação de Deus na criação do mundo. Ainda assim,
confiamos que o universo veio a existir pelo ato divino do trabalho de Deus na
criação porque chegamos a acreditar, com base em motivos coerentes, que a
Palavra de Deus é fidedigna. Uma vez que estamos convencidos de que a Palavra
de Deus é fidedigna e que essa convicção é coerente, podemos confiar na Palavra
de Deus mesmo em relação às coisas que não podemos ver. João Calvino também
defendeu a visão de que a verdadeira fé não consiste em crer em oposição às
evidências. Ao invés disso, a verdadeira fé envolve confiar nas evidências que
Deus amplamente nos forneceu em Sua Palavra e por meio Dela. Essa fé não é
ausente daquilo que Calvino chamou de evidências. Ao contrário, é a fé que se
rende e se conforma com as evidências. Devemos estar sempre atentos e
vigilantes contra a intromissão da irracionalidade oriunda da filosofia
existencialista, da teologia neo-ortodoxa e do ressurgimento do misticismo
estabelecido no neo-gnosticismo. O que está em jogo é a coerência e a
inteligibilidade do divino trabalho de Deus.
Autor: R.C.
Sproul
Fonte: Ligonier