2) CRISTÃOS CASADOS COM NÃO
CRISTÃOS (7.12-24)
Na primeira parte deste capítulo (vs.2-7), vimos que Paulo argumenta sobre os direitos conjugais em
relação ao casamento (Gn 2.24). Em seguida, ele se dirige aos solteiros,
divorciados e as viúvas da igreja (vs.8-9); depois orienta os casais
(vs.10-11). Agora, as últimas pessoas a receber o conselho do apóstolo são os
crentes casados com incrédulos. Paulo escreve: Aos mais digo eu (vs.12a).
Neste trecho, Paulo não
discorre sobre o casamento misto, ou seja, o casamento entre um cristão e um
incrédulo. O ensino do apóstolo sobre isso é claro: o casamento deve ser no
Senhor (7.39). Por ter um modo de vida diametralmente contrário ao do não
cristão, e para que inúmeros problemas conjugais sejam evitados, Paulo orienta
que o cristão deve se casar com cristão (2Co 6.14-15).
A igreja de Corinto era uma
igreja nova. Algumas pessoas se converteram ao evangelho depois de casadas. De
repente, apenas a mulher se converteu e o marido permaneceu incrédulo, ou
apenas o marido se converteu e a mulher permaneceu incrédula. Essa é a
problemática que Paulo trata aqui.22
Com efeito, em 1 Coríntios 7,
Paulo não contradiz o ensino de Cristo sobre o divórcio, mas expande o assunto.
Ele trata de alguns detalhes que Jesus não abordou nos evangelhos, tal como o
casamento misto e outras razões para o divórcio que não fosse apenas o
adultério. É provável que alguns crentes da igreja de corinto estivessem
imaginando que por serem casados com incrédulos, estavam de certa forma se
contaminando. Porém, a verdade é exatamente o oposto disso (vs.14).
É um ato de desobediência um
cristão casar-se com um incrédulo. Mas se a pessoa se torna cristã depois de
ter se casado, ela não pode usar esse acontecimento como motivo para separação.
Pelo contrário, ela precisa exercer a influência que tem como cristã para mudar
e transformar o seu lar, e quem sabe levar o seu cônjuge à conversão. Paulo está
dizendo que a conversão não altera as nossas obrigações sociais.23
2.1 O poder do casamento (vs.14)
Paulo escreve que, no
casamento misto, o cônjuge incrédulo é santificado na convivência com o marido
ou com a esposa crente. Por causa disso, os filhos desse casal não seriam
impuros, mas santos. Evidentemente, a santificação do cônjuge incrédulo não se
refere à salvação, pois, se fosse o contrário, ele não seria denominado de
incrédulo. A santificação que Paulo tem mente aqui é matrimonial e familiar,
não pessoal ou espiritual. O casamento não é um meio de conversão. O marido ou
a esposa que é crente santifica o casamento, traz benefícios para a sua
família. Sendo assim, o cônjuge incrédulo fica exposto a influência do
Evangelho.
O apóstolo não está dizendo
que a esposa ou o marido descrente torna-se moralmente santo por meio do
cônjuge crente. O homem não é capaz de santificar o seu próximo. O apóstolo
quer dizer que, através do cônjuge crente, o marido ou a esposa descrente é, de
algum modo, influenciado pela santidade do cônjuge crente.
A conduta do cônjuge descrente
“é afetada pela conduta do cônjuge cristão. O cônjuge não cristão concorda em
viver com a pessoa cristã em quem habita o Espírito de Deus, cumpre as
obrigações que advém da instituição do casamento (Gn 2.24) e conserva intacto
seu casamento em obediência aos preceitos de Jesus (Mt 19.6). Os dois vivem num
ambiente santificado, porque o lar é consagrado pela leitura, aplicação da Palavra
de Deus e pela oração”.24 Calvino escreve que a piedade de um faz o
casamento mais santo do que a impiedade do outro para torná-lo impuro.25
Ou seja, a santidade de um cônjuge exerce uma influência santificadora maior do
que a possível corrupção que advém do outro. O inverso também se aplica: a
pessoa não santificada é, de certa maneira, influenciada pelos preceitos do
mundo que se opõe aos preceitos de Deus.
Adiante, Paulo também declara
como santos os filhos que nasceram antes ou depois da conversão de um dos
cônjuges. A santificação dos filhos aqui também é familiar, e não “espiritual e
moral”. Ele deixa latente que os filhos são santificados com base na fé do pai
ou da mãe que é cristão. Eles não são considerados impuros pela ausência de fé
do cônjuge incrédulo. A fé prevalece sobre a supressão da fé na família.
Porém, mesmo santificados pelo
cônjuge crente, o marido ou a esposa descrente e os filhos, ainda assim,
necessitam ser convertidos ao Evangelho para serem, de fato, crentes.
Baseando-se no contexto histórico de 1 Coríntios, vemos que Paulo está
enfrentando um grupo de ascetas gnósticos que consideravam o sexo como algo
pecaminoso, até mesmo dentro do casamento. É bem provável que ele esteja
defendendo a “santidade” da relação sexual e a santidade dos filhos em
casamentos mistos.
Quando a fé cristã entra em um
lar descrente, ela deve ser uma ponte de novas bênçãos, e não de novas
desavenças. O fato de um cônjuge incrédulo viver com um cônjuge crente
possibilita a esse cônjuge incrédulo conhecer o Evangelho e ser abençoado por
ele. O cônjuge incrédulo é trazido para mais perto de Deus ao conviver com um
cristão na mesma casa.26
2.2 A dissolução do casamento (vs.15-16)
Paulo enuncia que, se o
cônjuge descrente quiser se divorciar, o cônjuge crente deve permitir. O
apóstolo afirma que, nessa condição, ambos os cônjuges não estão obrigados a
insistir no casamento. Por conseguinte, Paulo esclarece sua instrução com uma
pergunta: Pois, como sabes, ó mulher, se
salvarás teu marido? Ou, como sabes, ó marido, se salvarás tua mulher? (Almeida
Século 21)
Se o cônjuge incrédulo
discorda da fé do cônjuge crente, e se recusa a conviver numa atmosfera cristã,
optando pelo divórcio, o cônjuge crente fica livre para dissolver o casamento.
Anteriormente, Paulo orientou a mulher cristã a não se divorciar do seu marido
(vs.10-13). No entanto, se a esposa ou o marido incrédulo, obstinado, quer romper o
casamento, a melhor decisão é concordar com a separação para conservar a paz na
família, uma vez que o bem estar dos filhos está em jogo nestas situações.
MacArthur observa que alguns
poderiam estar relutantes quanto a deixar o cônjuge não salvo partir, o qual
queria ir embora e estava criando discórdia no lar – achando que poderiam
evangelizar o cônjuge, insistindo no propósito de vê-lo convertido. Paulo diz não
haver essa certeza e diz ser melhor separar-se e ficar em paz, caso o
companheiro não salvo queira acabar com o casamento desse modo.27
Além do adultério, Paulo
destaca a segunda condição exceptiva para o divórcio – a saber – o abandono
inexorável. Antes de adentrarmos nesse assunto, acredito ser importante
analisarmos mais detidamente Mateus 5.31-32, 19.3-9; Marcus 10.2-12 e Lucas
16.18, a fim de compreendermos melhor a primeira condição exceptiva para o
divórcio. Em ambas as passagens, Jesus
ressalta que o novo casamento é proibido, e que o divórcio só é permitido em
caso de relações sexuais ilícitas [adultério e vários tipos de pecados
sexuais], conforme relata Mateus 5.31-32. Segundo a narrativa de Mateus 19.7-9,
os fariseus interpretavam Deuteronômio 24.1-4 erroneamente. Lá, Moisés não
promove nem desencoraja o divórcio explicitamente. Não era um mandamento de
divórcio, mas uma limitação ao segundo casamento na eventualidade de um
divórcio. Embora considerasse a legitimidade do divórcio quando um homem
encontrasse coisa indecente (Dt 24.1) em sua esposa [pecado sexual, de acordo
com a interpretação de Jesus no versículo 9 de Mateus 19], Moisés não deu um
mandamento sobre o divórcio.28
John Frame enfatiza que
Deuteronômio 24.1-4 é um precedente legal (jurisprudência) [veja o capítulo
13], que descreve uma determinada situação (vs.1-3) e, então, estabelece um
mandamento que tem ligação com essa situação (vs.4). Os versículo 1-3 são uma
cláusula “se”, estabelecendo a hipótese, e o versículo 4 é a cláusula “então”,
indicando a consequência.29 MacArtur, por sua vez, realça
que Deuteronômio 24.1-4 não ordena, não louva, não desculpa e nem mesmo sugere
o divórcio. Pelo contrário, reconhece que o divórcio ocorre e é permitido apenas
em bases muito restritas. O caso apresentado aqui se destinava a comunicar o
fato de que o divórcio produz contaminação se não fosse pelo motivo de
adultério. O que constitui essa contaminação? Somente uma coisa é possível: a
mulher foi contaminada ao casar-se novamente porque não havia motivo para o
divórcio. Portanto, quando se casou de novo, tornou-se adúltera e tão
contaminada que seu primeiro marido não pode recebê-la de volta. O divórcio
ilegítimo faz com que o adultério prolifere.30
Na época de Jesus, havia uma
veemente discussão teológica entre os rabis Shammai e Hillel e seus discípulos
acerca dos motivos corretos para o divórcio. Havia divergência de opinião entre
ambos. Os Sahamaítas eram rígidos na interpretação da lei, e permitiam o divórcio
somente em caso de adultério. Os epígonos de Hillel assumiam uma posição mais
liberal e pragmática, e permitiam o divórcio por motivos triviais. Portanto, em
sua discussão teológica com os fariseus sobre o divórcio, Jesus enfatiza que o
mesmo somente é permitido em caso de infidelidade conjugal. Quem se divorcia
por motivos banais incorre em pecado (Mt 19.9).
Não obstante, o segundo motivo
exceptivo para o divórcio é o abandono inexorável. Essa expressão é abrangente,
e não se limita apenas na partida de um dos cônjuges. O abandono inexorável
envolve “omissão, negligência, desamparo e desdém” que um dos cônjuges
demonstra para com o outro. Hipoteticamente falando, o
homem que não cumpre o seu papel de marido como um dos provedores do lar por
ociosidade ou malandrice, que não zela pelo bem-estar físico e emocional da sua
esposa e dos seus filhos, sendo omisso no amor para com eles, é considerado um
“desertor inflexível”.
Imagine uma mulher cristã que
seja casada com um descrente que a agrida fisicamente de forma constante, e não
demonstra arrependimento algum por esse crime? Pelo contrário, esse homem é
inflexível e ainda ameaça matar ou agredir ainda mais sua esposa se ela o
denunciar à polícia. Imagine, ainda, uma mulher cristã que seja casada com um
descrente que seja viciado em drogas? Além de vender os objetos do lar para
sustentar o vício, esse homem, sob o efeito alucinógeno de entorpecentes,
também agride fisicamente sua esposa. Imagine, mais uma vez, que um
dos cônjuges, quer seja descrente, crente ou falso crente [visto que um crente
verdadeiro é passível de ruir em pecados hediondos por um tempo], se revele
bissexual ou pervertido sexualmente? É possível um homem ou mulher, na fase do
namoro, ocultar determinados pecados, desvios de comportamento e perversões
sexuais que são revelados somente mais tarde, no casamento, onde ambos os
cônjuges se conhecerão plenamente. Finalmente, imagine que um dos cônjuges vá
embora de repente e nunca mais volte, desaparecendo? O que o cônjuge
abandonado deve fazer? Primeiro, expor sua situação à igreja e solicitar
orientação pastoral; segundo, formalizar o divórcio diante do estado. Uma vez
que foi o incrédulo quem optou pelo divórcio, o crente apenas confirma a
situação, requerendo que o Estado ateste o status quo.
Tendo em mente as situações
supracitadas, o que o cônjuge prejudicado deve fazer, sabendo que o casamento
tornou-se praticamente insustentável? Indubitavelmente, Deus deseja a reconciliação, e não o divórcio, até mesmo em caso de adultério. John Frame
expressa que o fato de o divórcio ser permitido por imoralidade sexual não
significa que isso seja ordenado, necessário ou até mesmo desejável. Até mesmo
nessa situação, Deus odeia o divórcio e ama a reconciliação. No entanto, sendo
esse o caso, não é pecado se divorciar.30
Porém, existem circunstâncias
em que o divórcio é a melhor solução para obter-se a paz e até necessário para
resguardar a vida do marido ou da esposa de condições intoleráveis. Conforme
sintetizei, negligência em zelar pelo bem-estar da esposa e dos filhos,
ociosidade, malandrice, agressão física e perversão sexual, são tipos de
abandono ou deserção do casamento. Sendo assim, um novo casamento é permitido
para ambos os cônjuges [o culpado e o inocente], pois o divórcio cancela as
obrigações do casamento original (1Co 7.15). John H. Gerstner salienta que
a cláusula exceptiva do adultério ensinada por Cristo não negou, por
implicação, o ensino de Paulo sobre o abandono, e Paulo, positivamente, ensinou
o que Cristo não negou. Não há discordância entre o ensino de Jesus e o ensino
de Paulo.31
A limitação de Jesus acerca do
adultério como a razão para o divórcio não é incongruente com a adição de Paulo
sobre o abandono inexorável como outra razão para o divórcio. Nos evangelhos,
Jesus menciona a base ativa para o divórcio, e Paulo demonstra a base passiva.
Cristo ensina que o cônjuge traído pode legar a carta de divórcio. Quem toma a
iniciativa do divórcio é a parte inocente. Paulo, por sua vez, amplia o
assunto, sublinhando que a iniciativa do divórcio advém não do cônjuge
abandonado, mas daquele que o abandonou. O cônjuge abandonado apenas reconhece
o fato. Jesus esboça que é a parte inocente é quem toma a iniciativa do
divórcio de forma voluntária. Paulo, entretanto, fala que a parte inocente é
quase que “coagida” a se divorciar por conta do abandono da parte culpada.
A Confissão de Fé de
Westminster, no capítulo 24, parágrafo 5 e 6, corrobora o adultério e o
abandono inexorável como os únicos motivos para o divórcio e um novo casamento.
Vejamos, pois:
No caso de adultério depois do
casamento, à parte inocente é lícito propor divórcio (Mt 5.31,32), e, depois de
obter o divórcio, casar com outrem, como se a parte infiel fosse morta (Mt
19.9; Rm 7.2,3). Posto que a corrupção do homem seja tal que o incline a
procurar argumentos a fim de indevidamente separar aqueles que Deus uniu em
matrimônio, contudo nada, senão o adultério, é a causa suficiente para
dissolver os laços do matrimônio, a não ser que haja deserção tão obstinada que
não possa ser remediada nem pela Igreja nem pelo magistrado civil (Mt 19.6-8;
1Co 7.15).
Se os votos conjugais não são
mais consistentes por conta da infidelidade sexual e do abandono inflexível, o
qual é caracterizado por abusos físicos e verbais, e pela lacuna em munir o
sustento do lar, “a igreja pode declarar o casamento original nulo e sem
efeito, deixando os parceiros livres para se casarem novamente. Como diz a CFW,
a “deserção” deve ser tal que não possa ser solucionada nem pela igreja nem
pelo magistrado civil. A igreja deve reconhecer o divórcio nesses casos apenas
quando todas as soluções disponíveis já falharam”.32
CONCLUSÃO
Peter Wagner 33
elenca cinco aplicações práticas do texto em voga:
1) Leve o dom do celibato a
sério. Celibato é dom.
2) Se você anseia pelo
casamento é porque não tem dom de celibato (7.8).
3) Se você não tem o dom do
celibato, case-se. O casamento é uma bênção e digno de honra entre todos. E o
próprio criador quem disse: Não é bom que o homem esteja só (Gn 2.18). Paulo
diz que é melhor casar do que viver abrasado (7.9).
4) Se você está para se casar,
certifique-se que o seu futuro marido ou esposa seja uma pessoa convertida
(7.39). Se você está casado com uma pessoa incrédula, faça todos os esforços
necessários para manter o seu casamento (7.16).
5) Se você quer que o seu
casamento seja feliz, nunca deixe de dar a seu cônjuge toda a satisfação sexual
que ele precisa e tem direito (7.3-5).
Em contrapartida, sugiro que
os casais cristãos que se divorciaram por motivos triviais que não são
justificados pelas Escrituras e se casaram novamente, confessem o pecado de
terem se divorciado injustamente e de terem desobedecido os preceitos bíblicos contraindo um novo matrimônio. Arrependidos, esses casais devem seguir suas
vidas em seu novo casamento na presença de Deus.
NOTAS:
22. Hernandes Dias Lopes. 1 Coríntios, pág 135.
23. Ibid.
24. Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 318.
25. Calvino. 1 Coríntios, pág 217.
26. Hernandes Dias Lopes. 1 Coríntios, pág 136.
27. Bíblia de Estudo MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1537.
28. Ibid, pág 1241.
29. John Frame. A doutrina da vida cristã, pág 734.
30. Ibid, pág 738.
31. John Gerstner. The
early writings, pág 96.
32. John Frame. A doutrina da vida cristã, pág 743.
33. Peter Wagner. Se não tiver amor, pág 60.
Autor:
Leonardo Dâmaso
Divulgação:
Reformados 21