“O Senhor me falou!”
“Deus fala ainda hoje aos seus filhos fora das Escrituras
Sagradas!”
Quais as implicações teológicas imediatas destas
afirmações?
A NATUREZA NÃO CONFESSIONAL DA REVELAÇÃO MODERNA
1. Tal afirmação (“O Senhor me
falou”) é caracteristicamente proveniente da tradição teológica não reformada. A
Confissão de Fé de Westminster considera que Deus não fala mais aos homens por
meio profético-revelacional, mas sim, iluminatório e escriturístico. O seu texto
afirma essa teologia nas seguintes palavras:
Todo conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas. (Confissão de Fé de Westminster, cap 1, seção 6)
Nenhum dos reformadores deu
ênfase a este tipo de comunicação extra Escritura. Para os reformadores, toda e
qualquer inovação diferente da comunicação de Deus através das Escrituras nada
mais era do que um sinal de heresia e artimanha satânica. Os fenômenos de
“ouvir a voz de Deus” e “falar com Jesus”, depois da era apostólica, foram tratados
como manifestações bizarras que sempre culminavam em movimentos bizarros e em
doutrinas heréticas. O mesmo acontece nos dias atuais. Todas as pessoas que
começam “ouvindo a voz de Deus” terminam dando origem à heresias estranhas e absurdas, levando em conta ainda que todas elas desenvolvem
uma anomalia ministerial que acabam por dividir igrejas e tornam-se em movimentos
messiânicos, onde são os “enviados especiais de Deus” ou “os porta-vozes” de
Deus. Não demora muito e logo estarão profetizando o fim do mundo. A história
da igreja tem mostrado esse caminho tomado pelos Adventistas do Sétimo Dia,
pelos Mórmons e por vários movimentos “evangélicos” que começaram ouvindo “a
voz de Deus”. O caso mais recente deste fenômeno está acontecendo nos Estados
Unidos com a sociedade Vineyard, de John Wimber. Este movimento tem profetas e
revelações “fresquinhas” todos os dias. Não é de admirar que um dos membros
desta sociedade, chamado Jack Deere, um dos que ouvem a voz de Deus, tem sido
condenado pela comunidade teológica americana por chamar de satânica a doutrina
da suficiência das Escrituras.
Louis Berkhof, em sua Teologia
Sistemática, representa bem o pensamento reformado quando diz:
Todo conhecimento obtido por
quem recebe a graça divina é produzido nele por meio da Palavra e da Palavra
derivado. Esta posição deve ser sustentada em oposição a todas as classes de
místicos, que alegam revelações especiais e um conhecimento espiritual não
mediado pela Palavra, e que, com isso, nos levam a um oceano de ilimitado
subjetivismo.1
2. Tal afirmação é contrária à orientação e recomendação doutrinária da
Igreja Presbiteriana do Brasil
No texto das Cartas Pastorais,
pág 22, Edição Set. 1995, a comissão permanente de doutrina da IPB redigiu o
seguinte:
Todo ensino sobre as línguas e
profecias que entende a prática moderna como uma experiência revelatória, isto
é, uma experiência na qual nova revelação é recebida, é contrário ao caráter
final da revelação bíblica e à autoridade das Escrituras como única regra de fé
e prática.
A Igreja Presbiteriana do
Brasil entende, com este texto, que uma ideia moderna de revelação consiste
numa ameaça à autoridade das Escrituras e ao seu caráter final da revelação.
O que a comissão de doutrina
entende perfeitamente é aquilo que todo crente deveria entender: que a
revelação de Deus sempre implica em canonicidade, e, portanto, sempre
prejudicará o caráter de revelação última das Escrituras em qualquer sentido. Deus
dirige Seu povo não mais por palavras reveladas, mas pela Palavra iluminada. A palavra
revelada sempre será canônica, e sempre reivindicará inspiração,
infalibilidade e autoridade. O primeiro dano que as Escrituras sofrem com a
presença de uma palavra revelada é a perda de sua suficiência. Ora, se as
Escrituras fossem suficientes, por que deveria Deus continuar falando por
revelação nos dias de hoje? Se Deus ainda fala hoje, isso significa que somente
as Escrituras não bastam para preparar o crente para a maturidade nem para toda
boa obra, (2Tm 3:16). Neste erro caíram os Mórmons, pois compreenderam perfeitamente
que a palavra revelada implica em canonicidade. Por isso eles possuem mais dois
livros considerados sagrados que completam a Bíblia.
Deveríamos chegar a uma
compreensão lógica que, se admitirmos a palavra revelada hoje, teremos que
perder de vista a ideia de um cânon, e, consequentemente, a ideia de Escritura
Sagrada, pois o cânon nunca será apenas o que está registrado, mas também o
que está sendo revelado. Foi assim na época em que o Novo Testamento ainda não
havia sido escrito. O povo tinha um cânon que correspondia às Escrituras do
Velho Testamento juntamente com a revelação fresquinha dos apóstolos e dos
profetas do Novo Testamento que ainda não havia sido escrita. Cremos que esta
época já passou, pois os apóstolos e profetas que falaram inspiradamente já não
existem mais. Se não entendermos dessa maneira, cairemos em outro problema
ainda maior: considerar que, ora Deus fala como Deus (nas Escrituras), e ora
Ele fala como homem (revelação moderna). Ou seja, Deus falou inspiradamente
quando tratava-se das Escrituras Sagradas, mas agora Ele fala aos seus filhos
como qualquer outro homem, sem inspiração, de maneira errante e falível. Não
haveria ideia mais absurda a que pudéssemos chegar!
3. Não há registro desde os pais pós-apostólicos, até o início do século
XX, de que Deus tenha conduzido sua igreja por “revelação”
Além dos ensinos apostólicos,
nada mais foi escrito, e nada de novo foi revelado. Da mesma forma, até os dias
modernos, nada há que tenha superado as Escrituras ou se colocado ao seu lado.
As revelações ou visões modernas são estruturadas em cima de elementos bíblicos
já revelados, e possuem um caráter extremamente particular e subjetivo. As
revelações objetivas e públicas são extremamente perigosas para o profeta moderno
porque o expõem à avaliação e ao fracasso. A revelação dos tempos bíblicos sempre
era pública e objetiva, pois o profeta de Deus era inspirado e não estava
sujeito a erros como os profetas modernos, os quais não são inspirados nem
inerrantes. O profeta não inspirado nunca passava no teste da falsa profecia,
(Dt 18:20-22).
Depois da era apostólica, até
mesmo os que ousaram dizer O Senhor me falou, ou foram taxados de falsos
profetas, ou caíram em heresias, ou não foram levados a sério pela igreja
cristã daquela época.
Os reformadores e os grandes
avivalistas do passado nunca conduziram a igreja por meio de revelações ou
profetismo, no entanto, conduziram multidões ao conhecimento de Cristo, coisa
que dificilmente se consegue hoje, mesmo com tantas “revelações” e “operações
do Espírito”. Se a revelação profética fosse
algo tão vital para a igreja hoje, por que então deixou Deus Sua igreja
pós-apostólica até o início do século vinte sem a prática profética revelacional,
quando muitos afirmam ter sido restaurada pelos primeiros pentecostais? Se dissermos
que foi porque os crentes do passado não buscaram revelações, cairemos em dois
sérios erros:
1) O erro de dizer que a obra
do Espírito não é soberana, e que o Espírito só faz aquilo que o homem O deixa
fazer. Veja o contrário disso em 1 Co 12:11;
2) O erro de dizer que o século XX foi outro Pentecostes. Desde a era pós-apostólica muitas pessoas e grupos enfatizaram a busca de revelações do Espírito, mas nunca conseguiram reacender a prática “revelacional” com expressividade como o movimento profético do início do século XX o fez. Por que isso? Acaso Deus mudou a maneira de falar com a Igreja e de dirigi-la? Por que somente a era apostólica e o século vinte provaram as “revelações do Espírito”? Por que a Igreja da idade moderna, responsável por tantos movimentos missionários e tantos reavivamentos nunca deu ênfase à prática revelacional? Era ela menos espiritual? Como então produziu tanto na evangelização?
Se o fenômeno revelacional
moderno é o mesmo da era apostólica ou sua continuidade, por que então nada de
novo foi revelado e escrito desde 1901 (início do movimento pentecostal) até
hoje? Com esse questionamento, parece que somos obrigados a chegar à conclusão
que há dois tipos de prática revelacional: uma é inspirada, a dos escritores
bíblicos, a outra é não inspirada, a dos profetas modernos. Se isso é
verdadeiro, Deus estaria falando de maneira diferente da que Ele sempre falou
(inspiradamente). Porém, qual a prova escriturística que temos para fundamentar
a ideia de que Deus fala revelacionalmente mas sem inspiração? Nenhuma! Isto é
prova de que esse ensino é humano, e parte de experiências subjetivas daqueles
não têm nem mesmo condições de interpretar sua própria imaginação.
4. Se a revelação moderna é a maneira de Deus falar com sua Igreja hoje,
por que então Deus só fala com denominações pentecostais, simpatizantes ou
somente com aqueles que já são ambientados com as ideias de revelação?
Uma constatação intrigante é a
ausência, em grande parte, nas denominações históricas no mundo inteiro, de
algo que, segundo os pentecostais, seria tão vital para a vida da igreja de
Cristo, como é a comunicação revelacional de Deus. Dizer que as denominações
históricas não recebem revelação porque não acreditam ou não buscam o fenômeno é deveras inconsistente. Esse é o argumento de Caio Fábio2 para
indicar a razão pela qual os reformadores não provaram destas experiências.
Em Pentecostes, os discípulos
tinham a promessa, mas não compreendiam o que aconteceria no dia do
derramamento do Espírito e nem buscaram revelações (At 2). Cornélio não cria no dom de
línguas e o recebeu sem buscar, (At 10). Os efésios nada sabiam sobre o
Espírito Santo. Depois de ouvirem o Evangelho, profetizaram e falaram em
línguas, (At 19). Deus revelou-se a Paulo quando este, além de não ter buscado revelação,
nem mesmo cria no Evangelho (At 9). Tanto Jesus quanto seus apóstolos fizeram
milagres na frente de seus inimigos incrédulos. Portanto, não há base bíblica
para tal afirmação que a revelação só vem aos que são crédulos. Não foi assim o
modelo bíblico.
Um outro problema com esse
argumento é a questão da natureza da revelação. Ora, revelação é, por natureza,
voluntária e soberana, e não precisa que alguém esteja buscando-a ou que
procure algum profeta em reuniões para-eclesiáticas (reuniões fora da igreja)
para receber revelação. Se Deus quis revelar-Se, Ele o fez quando quis, a quem
e como quis revelar-Se. Sempre foi assim no Antigo e Novo Testamentos. Deus é
soberano em seus atos e propósitos. Sempre foi Deus que decidiu revelar-Se. Ele
não Se revela por imposição, condição ou exigência dos homens. Não precisa que
o homem acredite ou não nisso para Deus revelar-Se. Doutra maneira, os
pecadores incrédulos nunca poderiam ser salvos, pois eles não podem crer, mesmo
assim é Deus quem lhes revela a verdade salvadora (Mt 13:11-12; Lc 10:21).
Portanto, Deus não escolhe revelar-Se apenas aos que creem, pois Ele revelou-se
muitas vezes aos que não criam em revelação. Esse é o propósito da revelação:
trazer os incrédulos à luz (Lc 2:32). Assim, é totalmente antibíblico considerar
a veracidade do movimento revelacional moderno se ele, além de divergir do modelo
bíblico, somente ocorre entre aqueles que, de alguma maneira, já têm
pressupostos revelacionais ou estão envolvidos com o movimento.
As revelações parecem algo que
é sugerido por praticantes ou simpatizantes do fenômeno. Dificilmente se fala
que Deus revelou-Se entre os crentes tradicionais ou entre aqueles que não
creem no fenômeno. Deus só tem Se revelado aos pentecostais/carismáticos? Ora,
se Deus tivesse tratando com o seu povo hoje por revelação, Ele o faria em
qualquer setor da Igreja, pois, ao estilo do Novo Testamento, Deus revelou-se
aos incrédulos, e isto implicaria em confirmação da sua verdade pregada ao
mundo. Não são os que já creem em revelação que deveriam receber revelações,
mas se o fenômeno é verdadeiramente moderno e necessário à vida da igreja, ele
deveria estar presente entre os que não acreditam na possibilidade de Deus
falar revelacionalmente nos dias de hoje, pois só assim o fenômeno seria
atestado como verdadeiro. Dessa forma, se Deus estivesse Se revelando hoje,
essa revelação não deveria ser unicamente para pentecostais. Acaso somente eles
são a Igreja?
Outra ênfase errada dada à
revelação nos nossos dias é a sua prática em movimentos separados da igreja
como um todo. Os profetas modernos parecem precisar de um ambiente só para
eles, para que possam ficar à vontade com seu profetismo. Assim, muitas
experiências proféticas modernas só acontecem em reuniões domiciliares ou para eclesiásticas.
Não há nenhum indício de tal prática no Novo Testamento. A profecia sempre foi
exclusividade da igreja e não de grupinhos de crentes que se isolam do resto da
igreja (1Co 14:19,23,28,34). Exceto os indivíduos que faziam parte do processo
históricoredentivo (como em Atos dos Apóstolos), Deus só falou
revelacionalmente à Igreja.
Uma outra característica da
profecia moderna é que ela é subjetiva e particular. É evidente que todo
movimento profético moderno começa em uma residência ou pequeno grupo separado
da igreja. Foi assim também o início do movimento pentecostal em 1901. O
caráter particular da revelação moderna está no fato de que ela quase sempre
acontece em reuniões exclusivas e particulares, quando grupos se excluem da
totalidade da igreja para reuniões de oração e revelação. É pejorativo constatar
que esse tipo de ambiente é propício a esconder o profeta em suas falsidades,
pois, diante de um grupo maior ele está mais exposto a ser avaliado. Com um
grupo pequeno, só comparecem lá aqueles que já têm seus pressupostos e suas
crenças na revelação. Mesmo que o profeta erre em suas revelações, ele nunca
passará vexame, pois o seu grupo que já é bem seleto lhe apoiará, caso haja
falsa profecia.
A característica subjetiva da
revelação é que nos dias modernos os profetas nunca se levantam com grandes
revelações como os profetas do passado. Os que tentaram um tão grande
empreendimento revelacional caíram em descrédito por falsa profecia. O que se
vê normalmente hoje é a típica profecia difícil de se averiguar ou avaliar.
Geralmente os profetas modernos trazem revelações em linguagem dúbia sobre as
coisas mais comuns e mais possíveis de acontecer na vida de qualquer pecador.
Mas o maior de todos os problemas é a interpretação dada por quem ouve. Os profetas
modernos não profetizam datas, lugares, indivíduos importantes da história,
nações, guerras, catástrofes, mortes ou grandes feitos de Deus na história.
Está provado que todos os aventureiros que fizeram isso falharam
vergonhosamente. Mas os profetas da Bíblia sempre fizeram isso. Suas profecias
eram objetivas. A revelação moderna parece não ter sido muito semelhante ao modelo
bíblico, pois depois da era apostólica, a revelação só tem tratado de
casamentos, negócios, doenças, pecado, etc. Seu uso deixou de ser da igreja,
e passou a ser de consumidores particulares.
NOTAS:
1. Louis Berkhof, Teologia
Sistemática, p. 614.
2. Caio Fábio, Espírito Santo, o Deus que vive em nós, p. 91.
Autor:
Moisés Bezerril
Fonte: Monergismo.com